Nosso Lar

Capítulo XXXIX

Ouvindo a senhora Laura



O caso Tobias impressionara-me profundamente.

Aquela casa, alicerçada em princípios novos de união fraterna, preocupava-me como assunto obsidente. Afinal de contas, também ainda me sentia senhor do lar terrestre e avaliava quão difícil para mim próprio seria semelhante situação. Teria coragem de proceder como Tobias, imitando-lhe a conduta? Admitia que não. A meu ver, não seria capaz de aborrecer tanto a minha querida Zélia e jamais aceitaria tal imposição por parte de minha esposa.

Aquelas observações da casa de Tobias torturavam-me o cérebro. Não conseguia encontrar esclarecimentos justos que pudessem satisfazer-me.

Tão preocupado me senti que, no dia imediato, deliberei visitar Lísias, num momento de folga, ansioso de explicações da senhora Laura, a quem votava confiança filial.

Recebido com enormes demonstrações de alegria, esperei o momento propício, em que pudesse ouvir a mãezinha de Lísias com calma e serenidade.

Depois de se ausentarem os jovens, a caminho de entretenimentos habituais, expus à generosa amiga o problema que me apoquentava, não sem natural acanhamento.

Ela sorriu, com a grande experiência da vida, e começou a dizer:

— Você fez bem em trazer a questão ao nosso estudo recíproco. Todo problema que torture a alma pede cooperação amiga para ser resolvido.

E depois de ligeira pausa, prosseguiu, atenciosa:

— O caso Tobias é apenas um dos inumeráveis que conhecemos aqui e noutros núcleos espirituais, que se caracterizam pelo pensamento elevado.

— Mas, choca-nos o sentimento, não é verdade? — Atalhei com interesse.

— Quando nos atemos aos pontos de vista propriamente humanos, essas coisas dão até para escandalizar; entretanto, meu amigo, é necessário, agora, sobrepormos a tudo os princípios de natureza espiritual. Nesse sentido, André, precisamos compreender o espírito de sequência que rege os quadros evolutivos da vida. Se atravessamos longa escala de animalidade, é justo que essa animalidade não desapareça de um dia para outro. Empregamos muitos séculos para emergir das camadas inferiores. O sexo participa do patrimônio de faculdades divinas, que demoramos a compreender. Não será fácil para você, presentemente, a penetração, no sentido elevado, da organização doméstica que visitou ontem; entretanto, a felicidade, ali, é muito grande, pela atmosfera de compreensão que se criou entre as personagens do drama terrestre. Nem todos conseguem substituir cadeias de sombra por laços de luz em tão pouco tempo.


— Mas temos nisso uma regra geral? — Indaguei. Todo homem e toda mulher, que se tenham casado mais de uma vez, restabelecem aqui o núcleo doméstico, fazendo-se acompanhar de todas as afeições que hajam conhecido?

Esboçando um gesto de grande paciência, a interlocutora explicou:

— Não seja tão radicalista. É indispensável seguir devagar. Muita gente pode ter afeição e não ter compreensão. Não esqueça que nossas construções vibratórias são muito mais importantes que as da Terra. O caso Tobias é o caso de vitória da fraternidade real, por parte das três almas interessadas na aquisição de justo entendimento. Quem não se adaptar à lei de fraternidade e compreensão, logicamente não atravessará essas fronteiras. As regiões obscuras do Umbral estão cheias de entidades que não resistiram a semelhantes provas. Enquanto odiarem, assemelham-se a agulhas magnéticas sob os mais antagônicos influxos; enquanto não entenderem a verdade, sofrerão o império da mentira e, consequentemente, não poderão penetrar as zonas de atividade superior. São incontáveis as criaturas que padecem longos anos, sem qualquer alívio espiritual, simplesmente porque se esquivam à fraternidade legítima.

— E que acontece, então? — Interroguei, valendo-me da pausa da interlocutora, — se não são admitidas aos núcleos espirituais de aprendizado nobre, onde se localizarão as pobres almas em experiências dessa ordem?

— Depois de padecimentos verdadeiramente infernais, pelas criações inferiores que inventam para si mesmas, — redarguiu a mãe de Lísias, — vão fazer na experiência carnal o que não conseguiram realizar em ambiente estranho ao corpo terrestre. Concede-lhes a Bondade Divina o esquecimento do passado, na organização física do planeta, e vão receber, nos laços da consanguinidade, aqueles de quem se afastaram deliberadamente pelo veneno do ódio ou da incompreensão. Daí se infere a oportunidade, cada vez mais viva da recomendação de Jesus, (Mt 5:25) quando nos aconselha imediata reconciliação com os adversários. O alvitre, antes de tudo, interessa a nós mesmos. Devemos observá-lo em proveito próprio. Quem sabe valer-se do tempo, finda a experiência terrena, ainda que precise voltar aos Círculos da carne, pode efetuar sublimes construções espirituais, com relação à paz da consciência, regressando à matéria grosseira, suportando menor bagagem de preocupações. Há muitos Espíritos que gastam séculos tentando desfazer animosidades e antipatias na existência terrestre e refazendo-as após a desencarnação. O problema do perdão, com Jesus, meu caro André, é problema sério. Não se resolve em conversas. Perdoar verbalmente é questão de palavras; mas aquele que perdoa realmente, precisa mover e remover pesados fardos de outras eras, dentro de si mesmo.

A essa altura, a senhora Laura silenciou, como quem precisava meditar na amplitude dos conceitos expendidos. Aproveitando o ensejo, aduzi:

— A experiência do casamento é muito sagrada aos meus olhos.

A interlocutora não se surpreendeu com a afirmativa e obtemperou:

— Aos Espíritos ainda em simples experiência animal, nossa conversação não interessa; mas, para nós, que compreendemos a necessidade da iluminação com o Cristo, é imprescindível destacar, não só a experiência do casamento, mas toda experiência de sexo, por afetar profundamente a vida da alma.

Ouvindo a observação, não deixei de corar, lembrando o meu passado de homem comum. Minha mulher fora para mim um objeto sagrado, que eu sobrepunha a todas as afeições; no entanto, ao ouvir a mãe de Lísias, ocorriam-me à mente as palavras antigas do Velho Testamento: (Dt 5:21) — “não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu jumento, nem o seu boi, nem coisa alguma que lhe pertença”. Num instante, senti-me incapaz de prosseguir, estranhando o caso Tobias. A interlocutora, porém, percebeu minha perturbação íntima e continuou:

— Onde o esforço de consertar é tarefa de quase todos, deve haver lugar para muita compreensão e muito respeito à misericórdia divina, que nos oferece tantos caminhos a retificações justas. Toda experiência sexual da criatura que já recebeu alguma luz do espírito, é acontecimento de enorme importância para si mesma. É por isso que o entendimento fraterno precede a qualquer trabalho verdadeiramente salvacionista. Ainda há pouco tempo ouvi um grande instrutor no Ministério da Elevação assegurar que, se pudesse, iria materializar-se nos Planos carnais, a fim de dizer aos religiosos, em geral, que toda caridade, para ser divina, precisa apoiar-se na fraternidade.

Nessa altura, a dona da casa convidou-me a visitar Eloísa, ainda recolhida ao interior doméstico, dando a entender que não desejava explanar outras minudências sobre o assunto; e depois de verificar as melhoras crescentes da jovem recém-chegada do planeta, voltei às Câmaras de Retificação, mergulhado em profundas cogitações.

Agora não mais me preocupava a situação de Tobias, nem as atitudes de Hilda e Luciana. Impressionava-me, sim, a imponente questão da fraternidade humana.