Nosso Lar

Capítulo XLI

Convocados à luta



Nos primeiros dias de setembro de 1939, “Nosso Lar” sofreu, igualmente, o choque por que passaram diversas colônias espirituais, ligadas à civilização americana. Era a guerra europeia, tão destruidora nos Círculos da carne, quão perturbadora no Plano do Espírito. Entidades numerosas comentavam os empreendimentos bélicos em perspectiva, sem disfarçarem o imenso terror de que se possuíam.

Sabia-se, desde muito, que as Grandes Fraternidades do Oriente suportavam as vibrações antagônicas da nação japonesa, experimentando dificuldades de vulto. Anotavam-se, porém, agora, fatos curiosos de alto padrão educativo. Assim como os nobres Círculos espirituais da velha Ásia lutavam em silêncio, preparava-se “Nosso Lar” para o mesmo gênero de serviço. Além de valiosas recomendações, no campo da fraternidade e da simpatia, determinou o Governador tivéssemos cuidado na esfera do pensamento, preservando-nos de qualquer inclinação menos digna, de ordem sentimental.


Reconheci que os Espíritos superiores, nessas circunstâncias, passam a considerar as nações agressoras não como inimigas, mas como desordeiras e cuja atividade criminosa é imprescindível reprimir.

— Infelizes dos povos que se embriaguem com o vinho do mal, — disse-me Salústio; — ainda que consigam vitórias temporárias, elas servirão somente para lhes agravar a ruína, acentuando-lhes as derrotas fatais. Quando um país toma a iniciativa da guerra, encabeça a desordem da Casa do Pai, e pagará um preço terrível.

Observei, então, que as zonas superiores da vida se voltam em defesa justa, contra os empreendimentos da ignorância e da sombra, congregados para a anarquia e, consequentemente, para a destruição. Esclareceram-me os colegas de trabalho que, nos acontecimentos dessa natureza, os países agressores convertem-se, naturalmente, em núcleos poderosos de centralização das forças do mal. Sem se precatarem dos perigos imensos, esses povos, com exceção dos Espíritos nobres e sábios que lhes integram os quadros de serviço, embriagam-se ao contato dos elementos de perversão, que invocam das camadas sombrias. Coletividades operosas convertem-se em autômatos do crime. Legiões infernais precipitam-se sobre grandes oficinas do progresso comum, transformando-as em campos de perversidade e horror. Mas, enquanto os bandos escuros se apoderam da mente dos agressores, os agrupamentos espirituais da vida nobre movimentam-se em auxílio dos agredidos.

Se devemos lastimar a criatura em oposição à lei do bem, com mais propriedade devemos lamentar o povo que olvidou a justiça.


Logo após os primeiros dias que assinalaram as primeiras bombas na terra polonesa, encontrava-me, ao entardecer, nas Câmaras de Retificação, junta de Tobias e Narcisa, quando inesquecível clarim se fez ouvir por mais de um quarto de hora. Profunda emoção nos invadira a todos.

É a convocação superior aos serviços de socorro à Terra, — explicou-me Narcisa, bondosamente.

— Temos o sinal de que a guerra prosseguirá, com terríveis tormentos para o espírito humano, — exclamou Tobias, inquieto, — embora a distância, toda a vida psíquica americana teve na Europa a sua origem. Teremos grande trabalho em preservar o Novo Mundo.

A clarinada fazia-se ouvir com modulações estranhas e imponentes. Notei que profundo silêncio caiu sobre todo o Ministério da Regeneração.

Atento à minha atitude de angustiosa expectativa, Tobias informou:

— Quando soa o clarim de alerta, em nome do Senhor, precisamos fazer calar os ruídos de baixo, para que o apelo se grave em nossos corações.

Quando o misterioso instrumento desferiu a última nota, fomos ao grande parque, a fim de observar o céu. Profundamente comovido, vi inúmeros pontos luminosos, parecendo pequenos focos resplandecentes e longínquos, a librarem-se no firmamento.

— Esse clarim, — disse Tobias igualmente emocionado, — é utilizado por Espíritos 5igilantes, de elevada expressão hierárquica.


Regressando ao interior das Câmaras, tive a atenção atraída para enormes rumores provenientes das zonas mais altas da colônia, onde se localizavam as vias públicas.

Tobias confiou a Narcisa certas atividades de importância junto aos enfermos e convidou-me a sair, para observar o movimento popular.

Chegados aos pavimentos superiores, de onde nos poderíamos encaminhar à Praça da Governadoria, notamos intenso movimento em todos os setores. Identificando-me o espanto natural, o companheiro explicou:

— Estes grupos enormes dirigem-se ao Ministério da Comunicação, à procura de notícias. O clarim que acaba de soar, só vem até nós em circunstâncias muito graves. Todos sabemos que se trata da guerra, mas é possível que a Comunicação nos forneça algum detalhe essencial. Observe os transeuntes.

Ao nosso lado, vinham dois senhores e quatro senhoras, em conversação animada.

— Imagine! — Dizia uma, — o que será de nós no Auxílio. Há muitos meses consecutivos, o movimento de súplicas tem sido extraordinário. Experimentamos justa dificuldade para atender a todos os deveres.

— E nós, com a Regeneração? — Objetava o cavalheiro mais idoso, — os serviços prosseguem consideravelmente aumentados. No meu setor, a vigilância contra as vibrações umbralinas reclama esforços incessantes. Estou avaliando o que virá sobre nós…

Tobias segurou-me o braço, de leve, e exclamou:

— Adiantemo-nos um pouco. Ouçamos o que dizem outros grupos.

Aproximando-nos de dois homens, ouvi um deles perguntando:

— Será crível que a calamidade nos atinja a todos?

O interpelado, que parecia portador de grande equilíbrio espiritual, replicou, sereno:

— De qualquer modo, não vejo motivo para precipitações. A única novidade é o acréscimo de serviço que, no fundo, constituirá uma bênção. Quanto ao mais, tudo é natural, a meu ver. A doença é mestra da saúde, o desastre dá ponderação. A China está sob a metralha, há muito tempo, e não mostrou você, ainda, qualquer demonstração de assombro.

— Mas agora, — objetou o companheiro, desapontado, — parece que serei compelido a modificar meu programa de trabalho.

O outro sorriu e ponderou:

— Helvécio, Helvécio, esqueçamos o “meu programa” para pensar em “nossos programas”.

Atendendo a novo gesto de Tobias, que me reclamava atenção, observei três senhoras que iam na mesma direção à nossa esquerda, verificando que o pitoresco não faltava, igualmente ali, naquele crepúsculo de inquietação.

— A questão impressiona-me sobremaneira, — dizia a mais moça, — porque Everardo não deve regressar do mundo agora.

— Mas a guerra, — disse uma das companheiras, — ao que parece, não alcançará a Península. Portugal está muito longe do teatro dos acontecimentos.

— Entretanto, — indagou a outra componente do trio, — por que semelhante preocupação? Se Everardo viesse, que aconteceria?

— Receio — esclareceu a mais jovem, — que ele me procure na qualidade de esposa. Não o poderia suportar. É muito ignorante e, de modo algum, me submeteria a novas crueldades.

— Tola que és! — Comentou a companheira, — olvidaste que Everardo será barrado pelo Umbral, ou coisa pior?

Tobias, sorrindo, informou:

— Ela teme a libertação de um marido imprudente e perverso.


Decorridos longos minutos, em que observávamos a multidão espiritual, atingimos o Ministério da Comunicação, detendo-nos ante os enormes edifícios consagrados ao trabalho informativo.

Milhares de entidades acotovelavam-se, aflitamente. Todos queriam informações e esclarecimentos. Impossível, porém, um acordo geral. Extremamente surpreendido com o vozerio enorme, vi que alguém subira a uma sacada de grande altura, reclamando a atenção popular. Era um velho de aspecto imponente, anunciando que, dentro de dez minutos, far-se-ia ouvir um apelo do Governador.

— É o Ministro Esperidião, — informou Tobias, atendendo-me a curiosidade.

Serenado o barulho, daí a momentos ouviu-se a voz do próprio Governador, através de numerosos alto-falantes:

— “Irmãos de “Nosso Lar”, não vos entregueis a distúrbios do pensamento ou da palavra. A aflição não constrói, a ansiedade não edifica. Saibamos ser dignos do clarim do Senhor, atendendo-Lhe a Vontade Divina no trabalho silencioso, em nossos postos.”

Aquela voz clara e veemente, de quem falava com autoridade e amor, operou singular efeito na multidão. No curto espaço de uma hora, toda a colônia regressava à serenidade habitual.