Dias Venturosos

CAPÍTULO 13

Contradição da verdade



O lago, naquele momento, era a pauta musical virgem, na qual Ele escreveria a música sublime da perene sinfonia do amor.

 

As notas melódicas eram suas palavras de sabedoria, assinaladas pelo compasso da verdade.

 

Bailavam no ar as ansiedades gerais.

 

A brisa amena soprava, dobrando o dorso do trigal maduro em espigas de ouro, a esparramar-se pelo vale verde e pelos outeiros próximos.

 

A multidão se encontrava expectante, alerta, em movimentação contínua.

 

As notícias a respeito dos seus feitos precediam-nO. Quando Ele chegava a algum lugar, já defrontava as dores e chagas humanas expostas, aguardando a sua providência misericordiosa.

 

Igualmente, misturados na mole humana, encontravam-se os inimigos do progresso, aqueles que se comprazem em confundir, em perturbar, malsinando os sentimentos de quem é bom e nobre.

 

Caracterizam-se pela adaptabilidade que têm às circunstâncias, facilmente gerando cizânias e falatórios, adversidades e crimes.

 

Ninguém que agasalhe ideais superiores consegue eximir-se à fúria desses famanazes, que vivem a soldo da própria morbidez.

 

Incapazes de triunfar através dos valores éticos e das realizações edificantes, transformam-se em verdugos gratuitos, alimentados pelos vis objetivos de lucros imediatos, que recebem de outros infelizes que os governam, que os comandam.

 

Jesus os enfrentaria com frequência: saduceus, samaritanos, herodianos, fariseus, todos aqueles que se atribuem valores e direitos que não possuem, aos outros os negando, gerando conflitos e fomentando ódios.

 

Naquele cenário especial, bordado de Sol, o Mestre, contemplando a massa, sentiu piedade dos homens e das suas misérias, como lhe era habitual.

 

Nesse momento, trouxeram-lhe um homem a quem um Espírito impunha cegueira, surdez e mudez.

 

A obsessão é enfermidade cruel, na qual os litigantes, em pugilato contínuo, se flagelam e estertoram sem cessar.

 

Filha dileta do ódio, alimenta-se do ressentimento, negando-se o afeto reconciliador, responsável pelo perdão.

 

A libertação das suas malhas intrincadas torna-se difí- cil, exceto quando os responsáveis se resolvem pela mudan- ça de comportamento para a fraternidade.

 

Jesus, por ser o Senhor dos Espíritos, tinha o poder de deslindar deles os que tombaram nas suas amarras, receitando-lhes vida nova.

 

Encarcerado na explanação dolorosa, vagava nas sombras; impedido de registrar os sons e emiti-los, era alguém emparedado nos limites da própria desdita.

 

No íntimo, ele anelava pela libertação, pela bênção da recuperação.

 

Já não se recordava da fulgurante claridade do dia, nem mais percebia na acústica mental o poema das músicas que cantam com a Natureza, que estrugem em todas as gargantas.

 

Gostaria de falar, de expressar-se, de louvar a vida. No entanto, o tormento se lhe afigurava irreversivel. Desanimado, entregara-se à situação, aceitando-a sem mais excogitar sobre suas causas ou suas terapias.

 

Empurrado na direção do Mestre, ele tropeçou e sentiu o estranho toque daquela mão especial.

 

Uma corrente de energia poderosa percorreu-lhe o corpo. Ele fremiu e, automaticamente, abriu os olhos. . .

 

Defrontou as duas fulgurantes estrelas na face do Estranho, sendo tomado de incontida emoção, que o levou a exclamar: - Rabi!

 

Concomitantemente, ouviu a própria voz, clara e musical.

 

Estava liberto. Haviam-se-lhe aberto as algemas: romperam-se as tenazes fortes.

 

Ele estava curado e gritou, feliz, saindo a correr. . .


Aquela emoção incomum produziu grande impacto na multidão, quando alguém exclamou:

– Não será esse o Filho de Davi?

 

A inveja, que começara a urdir a sua trama, espocou violenta nos seus cultivadores.

 

Disfarçados na massa, os fomentadores da intriga e da desdita puseram-se em campo a lançar dúvidas a respeito do que havia acontecido.

 

– É um charlatão! — Conclamou, áspero, amargo ancião. - Muito hábil, por sinal! - Arrematou uma jovem aturdida.

 

– Ele cura, sim - estabeleceu um fariseu odiento - porém o faz pela força de Belzebu, Príncipe das Trevas e dos demônios.

 

As opiniões se multiplicaram, soezes, cavilosas.

 

Uma onda de agitação percorreu o público, e as murmurações alteraram suas vozes.

 

O Mestre ergueu os braços e impôs silêncio com a sua autoridade.


Ante a turbação que acometeu aquele corpo inquieto, que é a multidão, o Senhor explicou:

– Se Belzebu expulsa Belzebu, está dividido contra si mesmo. Todo o reino dividido contra si mesmo ficará devastado; e toda a cidade ou casa dividida contra si mesma não poderá subsistir. . . E se eu expulso os demônios por Belzebu, por quem os expulsam vossos filhos? Eles serão vossos juízes. Mas se é pelo Espírito de Deus que eu expulso os demônios, quer dizer, então, que chegou até vós o reino de Deus. . .

 

A lógica dos argumentos encontrou ressonância nos ouvintes, aceitação de conteúdos, desarmando a truculência e a perversidade.


Os adversários do Bem, no entanto, não cessaram a maquiavélica ação e gritaram:

– Dá-nos, então, um sinal!

 

Sempre se pedirão sinais, que jamais serão aceitos. Haverá, invariavelmente, nova exigência, apoiada em teses absurdas, elaboradas somente para negar.

 

A negativa ainda é uma atitude cômoda, a mais fá- cil, porque descomprometida com a responsabilidade e o sacrifício. . .

 

Jesus olhou em derredor e compreendeu a ardilosa solicitação, que não serviria, por mais impressionante, para silenciá-los.


Adotando a postura de Educador, que o é, ripostou:

– Esta geração má e adúltera reclama um sinal! Que sinal lhe posso dar?

 

O sinal pedido é a contradição da verdade, atitude de desrespeito, de indignidade.


Ante o receio e a dúvida estampados nas faces congestionadas, Ele prosseguiu:

– O sinal é o de Jonas, não há outro, mas aqui está alguém que é maior do que Jonas.

 

Ninguém se adentra na casa de um homem forte para apoderar-se dos seus haveres, sem primeiro o manietar, ou sem que ele anua de próprio alvitre. Só então poderá saquear-lhe a casa.

 

Assim, quem não é comigo, é contra mim, porque aquele que não ajunta comigo, desperdiça.

 

Estava lançada a base musical da Sinfonia do amor em tema de fidelidade.

 

Ninguém poderia estar ao seu lado, preservando dú- vidas; caminhar com Ele, permitindo-se delíquios.

 

Não haveria lugar para aceitação dos seus postulados e negação dos seus feitos.

 

A contradição da verdade macera os homens de bem, os idealistas, os heróis que estão acima dos biótipos comuns.

 

Sofismar diante de verdades diamantinas, erguer barreiras ao rio da razão, gerar conflitos no espelho transparente da lealdade, da honestidade, constituem degradação de si mesmo, agressão à vida. Torcedores de palavras, que as ajustam aos seus interesses mesquinhos, refugiam-se em palácios como em casebres, em cenáculos e em templos, em assembleias nobres, assim como em núcleos de malfeitores. . . Eles têm como tarefa intelectual adulterar, inverter, confundir as mais lúcidas expressões, transformando-as em acusações contra aqueles mesmos que as enunciaram.


Foi por essa razão que Jesus, após contemplar esses desditosos sequazes do Mal, obtemperou:

– Eu sei o que murmuram entre vós. . .

 

Ele conhecia as tergiversações e debilidades humanas, os limites que a si impunham as consciências torpes.

 

Não lhe passavam despercebidos os instigadores profissionais, que se imiscuíam, se misturavam ao povo, espica- çando-o na sua fragilidade moral, na sua ignorância, no seu fragmentário volume.


Por isso, enérgico, elucidou:

– Todo pecado e blasfêmia serão perdoados aos homens, mas a blasfêmia contra o Espírito não lhes será perdoada.

 

Se alguém disser alguma palavra contra o Filho do Homem será perdoado; mas se falar contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado, nem neste mundo, nem no futuro.

 

Jesus estava acima das blasfêmias humanas e, por amor, volvia a buscar os que O acusavam, amparando-os, erguendo-os, perdoando-os.

 

No entanto, a consciência culpada pela agressão ao Espírito de Verdade, às Forças dos Céus, gerava conflitos insanos para si mesmo, que só a reencarnação pode lenir, perdoar. . .

 

Não apenas aqueles que combatem o Espírito Santo, mas também aqueloutros que mentem, exploram, enganam e vivem às expensas do seu nome. . .


A sinfonia cresceu, e Ele aduziu:

– Ou admitis que a árvore é boa e o seu fruto, bom, ou admitis que a árvore é má e o seu fruto, mau. Porque pelo fruto se conhece a árvore.


Fez uma pausa para reflexão, amadurecimento e logo deu curso:

– Raça de víboras! Como podeis falar de coisas boas, se sois maus? Porque a boca fala da abundância do coração. O homem bom, do seu coração tira coisas boas e o homem mau, do seu coração tira coisas más. Ora, eu vos digo: de toda palavra ociosa que os homens disserem, prestarão contas no dia do juízo. Porque pelas palavras sereis justificados e pelas palavras sereis condenados.

 

Era uma patética.

 

Cada um é autor de sua felicidade e desdita, liberta- ção e escravatura. . .

 

Cada um é livre para pensar, falar e agir, porém, é escravo do que haja pensado, falado e feito.

 

O Filho, todo amor, compreende a deficiência dos seus discípulos e lhes propicia novas oportunidades. Ele não viera para ser entendido, nem para ser amado. Mas, para entender e amar.

 

Dando-se conta da agressão à verdade, despertando em nível superior de consciência, o acusador insensato necessita reabilitar-se, em face dos danos que se impôs, assim como àqueles que perderam o rumo graças à sua maléfica indução.

 

O lago imenso e a multidão formavam a primeira pá- gina da Sinfonia que Ele viera imprimir nas almas.

 

Apesar das contradições da verdade e dos seus sequazes, emergia a Era Nova, anunciando o triunfo do amor sobre todos os impedimentos transitórios.

 

Todos morreram, e a Sinfonia prosseguiu musicando a Terra.

 

Havia mais para dizer, que seria dito.

 

Ele fez uma pausa, assinalada por infinita doçura, e cerrou os lábios. Porém, seria por poucos momentos.