Único povo monoteísta da antiguidade oriental, os hebreus alimentavam-se de esperanças e revelações espiri-
tuais.
Periodicamente escravizado por nações mais prepo-
tentes e conquistadores mais audaciosos quanto perversos, sempre sofreu a canga do desprestígio e sorveu o vinagre da amargura.
Seus profetas e médiuns constituíram-lhe pórticos de futuras alegrias e expectativas em torno de um Messias que deveria libertá-lo do eito da submissão, da condição de hilota.
Assinalado pelo orgulho de raça e de nacionalidade — resultado da fusão das doze tribos —, a sua fé era o alicerce sobre o qual deveria erguer um império indestrutí- vel, superior a todos os conhecidos, onde o poder e a glória seriam as conquistas máximas alcançadas após as lutas milenárias, encarniçadas e dolorosas.
Por isso mesmo, as suas datas comemorativas eram celebradas em festas prolongadas, nas quais se uniam o prazer e a religião, disfarçando a hipocrisia e dando campo
aos conflitos retidos, como mecanismos de vitalização para aguardar o momento máximo. . .
Mesmo sob as dores mais excruciantes, suportara as provações, anelando pelo momento da chegada do Vingador que Deus lhe mandaria como retribuição à sua fidelidade.
Tratava-se de uma visão distorcida sobre a Divindade, de um conluio macabro entre Deus e o homem que lhe compensaria a crença e o sofrimento, impondo desgraça e hediondez ao seu adversário, como se esse não tivesse qualquer vinculação com Ele.
Infelizmente, ainda vige em muitos religiosos esse desejo mesquinho de lograr o triunfo sob o amparo superior com a destruição daqueles que se lhes opõem e não com a transformação deles para melhor, para a fraternidade.
São as paixões humanas projetadas em Deus, e não o seu amor refletindo-se nos indivíduos.
Herança infeliz, esse atavismo psicológico diminui a Realidade Criadora, amesquinhando-a.
Junto à Porta das Ovelhas, em Jerusalém, havia uma piscina com cinco pórticos chamada Betesda (Bezatha em hebraico), que desfrutava do privilégio de ter suas águas periodicamente movimentadas pelos anjos, o que lhes dava poder curador, propriedades especiais. Todo aquele que nelas se banhasse, em primeiro lugar usufruiria dos benefícios recuperadores da saúde. Como consequência, aquele era um lugar sagrado e, ao mesmo tempo, profano. A fauna humana ali se reunia ambiciosa sob variadas justificativas. Era constituída de enfermos desenganados, de pedintes ociosos, de vadios e exploradores, de vendedores ambulantes, de observadores insensatos. . .
A malta sempre aglutina os seus membros onde florescem as oportunidades de ócio, de zombaria, de lucros e contendas intermináveis.
Em Betesda não sucedia diferente. Disputava-se espa- ço e multiplicavam-se os infelizes em busca do milagre da facilidade.
As criaturas sempre desejam soluções sem esforço pessoal para os seus problemas, lucros sem sacrifícios e resultados bons distantes do merecimento, que não possuem.
Alguns pacientes daquele lugar se habituaram de tal forma à condição de inúteis que, entre os muitos que se acotovelavam em torno da piscina, um deles havia trinta e oito anos que era paralítico. Seu catre era trazido e reconduzido, havia muitos anos, e ele praticamente já não se importava com os resultados da movimentação, tal o desencanto de que se encontrava possuído.
Aqueles eram dias de festas, portanto, maior a soma de curiosos e de doentes que subiam a Jerusalém, passavam ou estacionavam nas áreas da célebre piscina, tumultuada pelo alarido das muitas vozes em dialetos estridentes e diversificados, dos gemidos dos enfermos, da cantilena dos mercadores e, de quando em quando, da confusão decorrente de furtos, de agressões e roubos. . .
Jesus, que se dirigia à cidade dos profetas acompanhado pelos amigos, deteve-se em Betesda e, diante da imensa e desditosa mole humana, tomou-se de compaixão.
Ele conhecia os escaninhos mais íntimos das criaturas, suas limitações e anelos, suas ambições e desconcertos. . . Igualmente estava informado das tradições e crenças, superstições e mitos ancestrais. Deteve-se por um pouco e observou o paralítico resignado no seu catre de miséria e quase abandono.
Indiferente ao que se passava — tantos foram os anos que tinha sido trazido inutilmente — o infeliz parecia distante, quase alienado, fora do bulhento mundo em que se encontrava.
Realmente, já não acreditava na cura, mas voltava sempre, distraía-se na turbamulta, conversava, dormia, tornava menos solitária a própria desdita, vivia das esmolas que lhe atiravam às mãos. . .
Desistira de ficar à borda da piscina, ou nunca ficara, para arrojar-se nas águas, quando, ou se, ocorresse o fenô- meno da movimentação pelas mãos invisíveis.
A distância era uma justificativa inconsciente para não ser o primeiro a beneficiar-se, pois que, até ser levado de onde estava e banhar-se, outros, os mais novos, os mais ambiciosos antecipavam-no e conseguiam melhores resultados.
Aquele era um lugar de fé, e ele já não a tinha, desencantara-se, deixara de acreditar. Também não mais lhe parecia importante, pois que poucos foram aqueles que se recuperaram durante o largo período em que ele permanecera no local.
O tempo é portador do condão de tudo modificar, especialmente nas pessoas desestruturadas, sem bases experiênciais positivas na vida.
Àquela hora, havia uma suave fragrância de balsamina no ar.
O dia inundava-se de tênue luz sem a incidência dire-
ta dos raios abrasadores do Sol.
Algo de especial pairava na psicosfera antes densa em Betesda.
Subitamente, um silêncio natural se impôs ao alarido, e uma grande expectativa tomou os corações.
Jesus acercou-se daquele paralítico, que expungira, nas quase quatro décadas de sofrimentos e limitações, todas as suas dores e débitos pregressos, e o interrogou:
– Queres ficar são?
– Senhor, respondeu-lhe o enfermo, não tenho ninguém que me lance na piscina, quando a água começa a agitar-se; e, enquanto eu vou, desce outro antes de mim.
Era, certamente, uma escusa. Se, em verdade, o desejasse, ficaria muito próximo, de forma que ele próprio se arrojaria sobre as águas.
O Homem-Luz penetrou-lhe o íntimo, leu-lhe a sentença a que se jungia e constatou a chegada do seu momento de libertação. Então, propôs-lhe:
– Levanta-te, toma o teu catre e anda!
A ordem era transmitida sob forte indução de energias recuperadoras. Não havia como duvidar.
O paciente, colhido de surpresa, deixou-se dominar pelas forças que dEle se exteriorizavam. Automaticamente ergueu-se, sentindo-se desenfaixar dos impedimentos que o impossibilitavam de mover-se. Tomou o catre infecto e começou a andar recuperado.
As exclamações da alegria explodiram-lhe do peito, nos lábios, e a emoção tomou conta da multidão.
Quando os curiosos correram para ver o ex-paralítico, o Senhor afastou-se sem ser percebido.
Passados os primeiros momentos de exaltação, de entusiasmo, os concorrentes e despeitados recordaramse de que aquele dia era um sábado, então disseram ao recuperado: - Não te é permitido levar o catre, pois hoje é sábado.
Ele, porém redarguiu:
– Aquele que me curou, disse-me: Toma o teu catre e anda. É o que eu faço, nada mais do que me foi imposto. Como posso andar, tenho direito de atender a ordem expressa até o fim.
Desconcertados, volveram à carga:
– E quem é ele?. . . o que te disse: - Toma o teu catre e anda?
Nunca faltam os indivíduos mesquinhos diante dos gigantes da alma. Incapazes de crescerem até alcançá-los, buscam as formas de menosprezá-los, de empanar-lhes o brilho, a grandeza.
Dispõem de exuberante arsenal de acusações, de argumentos sórdidos e sem sentido, investindo contra, furiosamente.
Enxameiam em toda parte. Jesus nunca deixou de ser-lhes vítima, assim como todos aqueles que vivenciam os grandes e nobres ideais da humanidade.
Mais tarde, naquele mesmo dia, o antigo enfermo espairecia no Templo, em gratidão, em exibição, quando o Mestre dele se acercou e disse-lhe:
– Foste curado; não voltes a pecar, para que não te suceda alguma coisa pior.
A terapia do amor libertara-o, sim, da escravidão ressarcidora dos débitos, porém, fazia-se-lhe necessária a dieta moral, a mudança de comportamento para a ação social dignificadora.
O homem, sem entender a exortação ao equilíbrio íntimo, aturdido, correu aos judeus e disse-lhes ter sido Jesus quem o curara. . .
Despeitados, invejosos, os inimigos acercaram-se dEle e repreenderam o seu ato, ao que Ele respondeu:
– Meu pai trabalha continuamente, e eu também trabalho.
Na impossibilidade de O alcançarem, de intimidarem, aqueles réprobos refugiaram-se na sordidez, formando partido para O perseguirem e matá-lO.
Não podendo fazer o que Ele fazia, os expedientes compatíveis eram a trama soez e a urdidura do crime a que se arrojariam, infelizes.
Ainda hoje é assim. . .
Ele não sabia, ninguém sabia. Tudo fora muito rápido.
João 5:1-17