Dias Venturosos

CAPÍTULO 17

Pão da vida



O mar da Galileia é um lago de expressiva proporção, que a generosidade do rio Jordão espalhou na imensa fenda abaixo do nível do Mediterrâneo, com pouco mais de duzentos metros.

 

Antigamente era muito piscoso. Nas suas margens floresciam aldeias e cidades que se tornaram famosas e se beneficiavam do seu clima agradável.

 

Em volta, as suas terras aráveis produziam legumes e frutas; ali pastavam os animais, e as vinhas eram exuberantes.

 

Ao tempo de Jesus, suas águas chegaram a receber milhares de pequenas embarcações.

 

Também chamado de Tiberíades, ou Lago de Genesaré, foi cenário de momentos culminantes da história do Cristianismo.

 

Em sua orla espraiavam-se as cidades de Cafarnaum, Betsaida, Tiberíades, Magdala, Dalmanuta. . .

 

Em uma montanha próxima, Ele entoou o Canto de libertação das criaturas, em inolvidável sermão; pelas suas praias Ele caminhou, curando, consolando, apontando rumos.

 

Suas gentes simples - os galileus - normalmente pescadores e agricultores, conviveram com Ele, acompanharam-nO, foram por Ele amadas e O amaram a seu modo, dentro dos seus limites.

 

A revolução que Ele pretendia não era percebida pela massa, que tinha fome de justiça, de verdade, mas sempre mais de pães e de peixes. . .

 

Do outro lado, acima das escarpas rochosas, erguia-se a Decápole - parte das dez cidades gregas erigidas antes, e então decadentes, com exceção de Gadara, que se celebrizaria em razão de obsesso que Ele curara.

 

Jesus amava aquela região, aquele povo, onde mais se demorou após iniciar a sua vida pública, quando os seus o rejeitaram. . .

 

Incapazes de penetrar no conteúdo profundo da sua mensagem, seguiam o Mensageiro, dominados por interesses imediatistas.

 

Ambicionavam o reino dos Céus, porém viviam na Terra, sofriam-lhe as injunções e carências, padeciam desconforto.

 

Ele representava-lhes o Libertador. Suas palavras sensibilizavam-nos, porém as suas ações deslumbravam-nos e atraíam cada vez mais.

 

Já não eram alguns que O seguiam, e sim verdadeiras multidões com suas chagas, agitações e problemas.

 

Com essa volumosa massa, Ele atravessou o mar e foi ensinar na outra margem, do alto de um monte.

 

Ali, percebendo a fome daqueles que O acompanhavam, nutriu-os com pães e peixes fartamente, deixando-os felizes, porque de estômagos satisfeitos.

 

Logo após, volveu em silêncio a Cafarnaum com os doze apóstolos.

 

Os acompanhantes, atendidos nas necessidades imediatas, não perceberam a sua ausência, porque naqueles momentos, não mais necessitavam dEle.

 

Só no dia seguinte perceberam que Ele se fora.

 

Outra vez, sentindo carência, volveram a Cafarnaum a buscá-lO, algo contrafeitos, por não O terem em mãos para o socorro contínuo aos seus caprichos.


Quando O encontraram, interrogaram-nO com uma quase exigência de justificação por tê-los deixado:

– Rabi, quando chegaste aqui?

 

Não se tratava de zelo, de cuidado pelo Amigo, mas de reprimenda, de cobrança indireta.


O Mestre fitou-os compungido, e respondeu-lhes com severidade:

– . . . Procurais-me porque comestes dos pães e ficastes saciados . . .


Fez uma pausa e prosseguiu:

– Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela que dura até a vida eterna, e que o Filho do Homem vos dará. . .

 

De um para o outro dia haviam alterado o comportamento.

 

viram os enfermos recuperarem-se ao influxo do seu poder; alimentaram-se em excesso; beneficiaram-se da sua presença. No entanto, à hora da decisão de se transformarem para melhor, de se permitirem permear pela sua palavra, apelavam para os textos antigos convenientes, que permitiam fugir das novas responsabilidades, indagando sobre novos sinais, recordando Moisés no deserto, o maná que descera do Céu. . . Não se davam conta que tudo provinha de Deus, e que eles haviam comido, às vésperas, um alimento da mesma procedência, que lhes dava vida, porém que saciava só por breve prazo.

 

No mundo, as criaturas desejam refestelar-se na abundância de fora, no desperdício, e não se recordam, nessas horas, da escassez e dos outros esfaimados, esquecidos, em sofrimentos.

 

Desejam pão e prazer, conforto e ociosidade.

 

Cansam-se quando os têm e fogem para a insatisfa- ção, a revolta, a perda de objetivos da vida.

 

Sucede que a duração do corpo é sempre muito breve, a dos seus adereços menor, e a das suas imposições mais rápida. . . Por isso, a vida real, aquela que permanece sobre as cinzas das ilusões vencidas, é a do ser imortal.

 

Jesus veio demonstrar a imortalidade, dar significado à existência física do ser, não como fim, antes como meio para ser alcançada a plenificação.

 

Aferradas, todavia, aos sentidos grosseiros, as pessoas somente pensam no momento em que se encontram - embora lhe percebam a fugacidade - longe das aspirações transcendentes, as de longo, perene curso.

 

Aquela época difere desta pela face exterior, pelas conquistas da inteligência, que trouxeram outros valores para serem cultivados, outras metas para serem alcançadas. No entanto, o ser moral, o ser interior, parece-se muito com aqueles que O acompanhavam. . . Mesmo esses que diziam nEle crer e O seguem.

 

– Eu sou o pão da vida - exclamou Jesus - o que vem a mim jamais terá fome, e o que acredita em mim jamais terá sede. . .

 

Os circunstantes, em face dessa declaração robusta, sem eufemismos, entreolharam-se, duvidaram, não sabendo o que fazer.

 

Enquanto se alimentavam e sorriam, a vida lhes parecia tranquila, desde que houvesse quem os abarrotasse, a fim de que, sem preocupação nem esforço, pudessem banquetear-se sempre mais.

 

Tomar, porém, da charrua para conseguir a própria alimentação, mudava totalmente a paisagem do júbilo, que se tisnava ante as responsabilidades surgidas.

 

O esforço pessoal constitui sinal de valor moral, e o suor do sacrifício umedece a massa que prepara o pão da vida, que mata a fome em definitivo.

 

O ser inundado pelo ideal tem a sua sede de luz e de paz saciada através das conquistas valiosas das paisagens íntimas, antes sob tormentas desesperadoras.

 

O Mestre jamais negaceou, nunca se escusou.

 

Todas as suas asseverações foram claras, destituídas de disfarces ou ocultas em símbolos complexos.

 

Falando a linguagem de todos os tempos, a verdade, nunca se lhe notou dubiedade, insegurança.

 

Não havia promessas vãs nos seus discursos, nem alento para as atitudes frívolas. Inteiriço, sempre igual na proposta, na discussão e na conclusão, a sua era uma linguagem lapidar, inimitável, jamais superada.

 

O texto do passado tem sabor de atualidade, hoje apresentado.

 

Compadeceu-se do caído, mas não se apiedou do erro.

 

Apoiou o doente, no entanto verberou pela libertação da doença.

 

Amparou o pecador, todavia exprobrou o pecado.

 

Ajudou o vencido, porém conclamou-o ao soerguimento íntimo e à vitória sobre si mesmo.

 

Não acusou, não condenou, nem anuiu com o crime, a devassidão, a promiscuidade moral.

 

Pão da vida, Ele é saúde integral, alimento de sabor eterno.

 

Os galileus não poderiam, naquela época, entendê-lO.


O mesmo ocorre com os modernos fariseus que hoje O depreciam, que O subestimam e que, presunçosos, se esO condem nas catilinárias de palavras rebuscadas, em sofismas bem-urdidos, em falsas ciências, para não se transformarem moralmente, enquanto, jactanciosos, marcham para o tú-

mulo inexoravelmente, onde despertarão para a realidade. . .

 

Jesus é o pão da vida perene.

 

Aqueles que souberem alimentar-se dEle, nutrir-se-ão e viverão na paz de consciência e na realização espiritual.

 

João 6:22-40