Dias Venturosos

CAPÍTULO 19

Arrependimento e paz



Num intervalo das agudas perseguições, retornando da Samaria, onde falara para muitos conversos e curara com João, Pedro foi procurado por um jo-

vem, que trazia o corpo coberto de pústulas nauseantes, no afã da Casa do Caminho, sempre repleta de necessitados.

 

Desfigurado pela inflamação da face, eram apenas os olhos miúdos que brilhavam e a voz rouca suplicando comiseração.


Quando o apóstolo se aproximou, o enfermo prosternou-se, e exclamou:

– Homem santo de Deus!


Pedro interrompeu-o com veemência:

– Sou apenas um homem impuro como tu. . .

 

– Mas podeis curar-me - choramingou o visitante em desequilíbrio - Eu acabo de ser expulso da cidade, do convívio dos sãos, em razão da lepra que me devora o corpo e a alma infeliz. . .


Não pôde prosseguir. Quase em convulsão, tartamu-
deou:
– Tudo começou . . . no templo . . . no apedre. . . jamento. . . Pedro quase recuou horrorizado. Recordava-se da-

queles olhos perversos, frios, e dos gritos do agitador, que conclamava a turba em fúria para a lapidação de Estêvão. Jamais o esqueceria. Era jovem e guapo, ágil e violento. Gargalhava e apedrejava o prisioneiro indefeso. Apiedara-se dele a partir daquele momento.

 

Pedro conhecia a força do choque de retorno nas carnes, da própria alma. Orou por ele, então, naquela ocasião, e agora ele estava ali suplicante.

 

–Que te aconteceu?! - Interrogou, compungido.

 

–Não vos recordais de mim?! - Interrogou, desconsolado. - Apedrejei e conduzi a malta contra o vosso irmão até a sua morte, há pouco tempo. . .


Fez-se grande e dorido silêncio, que ele quebrou, dando prosseguimento:

– "A partir daquele dia - ainda me recordo da mirí- fica luz que vi brotar do mártir antes de morrer - perdi a alegria barulhenta de viver, eu que, alucinado, já não tinha paz. Os seus olhos, em chama e em tranquilidade, desvairavam-me. Tropecei no arrependimento mais cruel e fugi para a embriaguês dos sentidos, a que já me acostumara. Por mais desejasse esquecer, aumentava-me sempre a lembrança do crime, da crueldade perpetrada. " Silenciou por um pouco, e aduziu: "Passei a sentir comichão nos braços apedrejadores e dores nas articulações. Pequenos botões em flor de carne avermelhada surgiram-me na pele e começaram a explodir em pus. . . Depois, no peito, no ventre, nas pernas, no rosto, em todo o corpo. . . E a febre que me açoita, arbusto frágil que sou no vendaval, não cessa, enlouquecendo-me.

 

Os doutores receitaram-me unguentos, sacrifícios no Templo, que executei, sem resultado.

 

Hoje me expulsaram. . . O vale dos imundos será o meu lugar.

 

Recordei-me de vós, que curais as doenças do corpo e do Espírito, porque a minha é enfermidade da alma perversa, que se exterioriza no corpo infame.

 

Tende piedade, em nome do vosso Mestre! Mandaram-me procurar-vos, os parentes meus, que fogem de mim.

 

venho rogar perdão, antes de matar-me, pois que, mil vezes é melhor a morte com a honra do que a vida com desgraça!"

 

– Acalma-te, meu filho - ripostou o apóstolo - e não blasfemes. "A vida é bem de Deus, que a dá, a conduz e a interrompe no corpo, quando lhe apraz, a fim de trasladar a alma à eternidade, onde nada perece. Necessita viver, a fim de reparares o teu mal, o que fizeste aos outros, e encontrares a felicidade real, que ainda não desfrutaste.

 

Realmente, os erros aqui na Terra cometidos, como nos ensinou o Senhor, aqui serão resgatados. Arrepende-te sinceramente, e não apenas para recuperares a saúde, porque, enquanto não se dá a transformação interior, transita-se de uma enfermidade para outra, sem que se encontre a saúde real, que é paz de espírito. " O jovem, deformado pelas ulcerações, ainda ajoelhado e súplice, afogava-se no caudaloso rio das lágrimas.

 

Profundamente compadecido, o apóstolo orou a Jesus. Não terminara a prece sentida, quando vislumbrou Estêvão, nimbado de claridade diamantina, adentrando-se pelo recinto, sorrindo e acercando-se.

 

Simão ficou extasiado e começou a chorar suavemente.

 

"Pedro - falou o visitante iluminado - o amor e a caridade são as asas que nos elevam o ser a Deus, quando o conhecimento da verdade lhe sustenta o pensamento e lhe vitaliza o coração. Socorramos o pobre irmão, que corre pelo apertado espaço de sombras, no qual se encontra, para que reconquiste a saída para a luz libertadora. É da Divina Lei que retribuamos com o bem todo o mal que recebermos. Assim, não há outra alternativa, senão amar e ajudar.


As feridas que cobrem o corpo do enfermo são as energias negativas que o intoxicavam e agora são expelidas. O seu arrependimento e os propósitos para tornar-se melhor, secarão o poço de peçonha. Mas nós lhe devemos cicatrizar as chagas externas com o bálsamo da compaixão. " Simão, então, explicou ao enfermo:

– Os céus ouviram tuas súplicas, e Estêvão, vivo e puro, vem te auxiliar através das minhas mãos e do teu arrependimento real.

 

Colocando a destra sobre a cabeça e a sinistra sobre a fronte febril, Pedro orou, enquanto o doente estorcegava, afirmando arderem o corpo e as chagas, até cair exausto, banhado por álgido suor.

 

Terminando a aplicação de energias, o pescador de almas tomou-o nos braços fortes, acostumados a segurar as redes no mar da Galileia, e recolheu o paciente desmaiado à enxerga mais próxima.

 

Lentamente as feridas e intumescências vermelho-arroxeadas começaram a murchar, e a pele foi-se recuperando, até tornar-se lisa e sem mancha.

 

Deixando-o dormir, o discípulo abnegado recordou-se de Jesus e balbuciou comovido: Dias Venturosos - . . . E não tornes a pecar, para que não te aconteça algo pior.

 

Afastou-se em silêncio com o coração explodindo de alegrias e de gratidão a Deus, reflexionando na sabedoria e misericórdia das Leis da vida.