Eles haviam acompanhado com espanto crescente as cenas da cura do endemoninhado, no cemitério da cidade, e ainda não se haviam recuperado das emoções inusitadas.
Assustaram-se, no primeiro momento, quando o obsesso enfrentou o Mestre, interrogando-o com atrevimento, logo constatando a elevação, o poder do amigo, que dialogara com o ser espiritual inferior, expulsando-o daquele a quem atormentava.
Ato contínuo, viram, surpreendidos, o inusitado fenômeno dos suínos em debandada, atirando-se ao mar, como se houvessem ficado aterrorizados diante de algo incomum.
No entanto, o que mais os surpreendeu foi a atitude agressiva dos gadarenos para com o manso Rabi.
A hostilidade, expressa na face, com que o receberam, tornou-se quase violência, à medida que não desejavam ali a sua presença, exigindo-lhe que se fosse, o mesmo fazendo em relação aos seus, que O acompanhavam.
À alegria da vitória sobre as trevas, a amargura por vê-lO desconsiderado e mesmo humilhado.
Perceberam o véu de tristeza que desceu sobre o rosto do Senhor, que nem sequer tivera o direito de enunciar algumas poucas palavras.
Naquele acontecimento estava presente o ódio recí- proco que se permitiam judeus e gadarenos, em razão do seu desprezível comércio, ampliado pelo prejuízo que lhes foi infligido pela perda da vara de porcos. . .
O ardor, porém, da repulsa, assustou-os, e tiveram dimensão do que iria acontecer, tempos afora, com aqueles que divulgassem a Mensagem de esperança das Boas Novas, que ora chegava à Terra.
Os pequenos barcos - delicadas cascas de nozes - flutuavam levemente sobre as águas tranquilas do lago, trazendo-os de volta a Cafarnaum.
O céu apresentava-se transparente naquele momento do dia, e suave brisa soprava acariciando os cabelos e as faces contraídas do grupo de retorno, liberando a todos do constrangimento sofrido.
Ante o infinito que se desenhava para cima e a visão fascinante das colinas verdes, além das praias repletas de embarcações ali cravadas, como se fossem unhas escuras das mãos líquidas do querido mar, eles experimentaram novo júbilo inundar-lhes os corações.
Eles eram homens rudes e simples. Jamais haviam imaginado os sucessos de que se viam objeto acompanhando Jesus. Até há pouco, as suas eram vidas quase sem sentido, perdidas na conquista das pequenas metas que haviam elegido como realizações de felicidade interior e familiar. Contentavam-se com os labores do dia, os amigos das vizinhanças aldeãs, o vaivém cotidiano, as notícias do Torá e as revelações dos profetas antigos. Jamais haviam imaginado ver-se no fulcro dos acontecimentos, personagens da construção de uma Nova Era.
De certo modo, ainda não entendiam exatamente o que lhes competia realizar, nem como fazê-lo. No íntimo, experimentavam estranha e desconhecida emoção, uma nunca sentida alegria que lhes tomava as paisagens da alma, falando-lhes, sem palavras, de felicidade incessante.
Um pouco aturdidos seguiram o Cantor e cada vez mais se fascinavam com Ele.
Já haviam escutado falar sobre os Mensageiros de Deus, que haviam elegido a Casa de Israel para semear profecias e sustentar o seu povo. Nunca, porém, imaginaram que a convivência com um deles - que parecia maior do que todos os que vieram antes - fosse tão rica e encantadora quanto se apresentava.
Os fenômenos que Ele operava, recuperando a saúde dos enfermos, os fascinavam, embevecendo-os, e um certo orgulho de serem seus cooperadores deslumbrava-os.
Eram vistos na região como os amigos do Nazareno, e, não poucas vezes, foram procurados por personagens influentes para que intercedessem em seu favor, o que aprenderam a não fazer.
O Mestre era quem deliberava, nunca permitindo interferência estranha ao seu ministério. Ele o dissera, convidando-os à discrição e ao recolhimento, para que nunca se beneficiassem da posição de companheiros e discípulos, para auferirem compensações sociais ou pecuniárias. . .
Amavam, também, o que Ele dizia.
Seus sermões, repletos de beleza, usando as imagens singelas que lhes eram habituais, sensibilizavam-nos, embora o sentido mais profundo passasse, não raro, desconhecido, necessitando de explicações mais particulares e minudentes, que interpretassem a forma parabólica responsável pelo ocultar do seu sentido real.
Ele falava-lhes, nessas ocasiões privadas, na sua doce intimidade, com admirável facilidade, ajudando-os a entender a revolução que se aprestava e que iria contar com eles.
Quando esses momentos aconteciam, experimentavam a carícia de brisas espirituais que lhes rociavam o coração e o Espírito, anunciando-lhes a vitória, antecipandolhes a ventura que não tinham forma de mensurar.
Assim mesmo, ainda pairavam muitas dúvidas e interrogações naqueles dias iniciais do ministério.
Quando os barcos aportaram nas areias úmidas, e as pessoas descobriram Jesus, correram na sua direção, ansiosas, em algaravia, homenageando-O e bendizendo-O, formulando súplicas e apresentando os filhinhos que conduziam nos braços.
As mulheres cercaram-nO, enquanto os homens, muito cuidadosos e receosos, mantiveram-se a certa cautelosa distância. . .
Ele amava aquelas gentes simples e as distinguia com carinho.
O encontro jovial desanuviou-lhe a face, que desenhou um sorriso meigo e enternecedor, facultando que os olhos fulgurassem com incomparável brilho.
Assentando-se na proa da embarcação de Simão, que era de maior porte, aureolado pela luz do Sol brilhante às costas, que O adornava de claridade refulgente do ouro novo, Ele começou a falar, enquanto todos silenciaram com expectativa: "Havia um homem que se relacionava com dois amigos. Um era gentil, devotado e generoso, estando sempre de coração aberto e sorriso amplo nos lábios. O outro era instável, ríspido e leviano, exteriorizando desconfiança injustificada em todas as situações.
Certo dia, foram ambos vítimas de uma circunstância infeliz e apelaram para o seu amigo, na certeza de que seriam atendidos. Ele, porém, não trepidou em socorrer aquele que o amava e que correspondia ao seu afeto, logo o liberando da situação afligente em que se encontrava.
Magoado, disse o outro: - Também sou teu amigo e me desprezas, em favor de outrem que, na minha opinião, não merece tal consideração!
Sem qualquer enfado, o homem respondeu: — Sempre te destaquei com bondade, jamais retribuída; com afeto, nunca correspondido; com respeito e confiança, que sempre me devolveste com azedume, medos e insegurança, como se eu te fosse explorar, mantendo-te armado, a distância. Assim, sempre fui teu amigo enquanto te tornaste um explorador da minha afeição. Ele, no entanto, sempre esteve aberto à minha amizade, sendo-me solidário e companheiro, gentil e dedicado, nunca me exigindo coisa alguma. Por isso, eu o tenho em conta de amigo, a quem ofereço a minha ajuda.
Assim será no dia da grande libertação, quando eu vier com os meus anjos e convidar os meus amigos a que se elevem comigo à glória solar, longe das sombras e das dores, das amarguras e dos conflitos, para que se enrique- çam de paz no meu reino. Aqueles que sofrerem por mim; que testemunharem em meu nome e no de meu Pai; que renunciarem às ilusões e prazeres por amor a mim; que se dedicarem aos seus irmãos, como se o estivessem fazendo em meu benefício; que sejam capazes de ceder em vez de tomar, de perdoar antes que odiar, de agradecer a luta ao invés de amaldiçoá-la, eu, que sou amigo de todos, elegê-los-ei como meus amigos, aqueles que me amam, e os apresentarei a meu Pai. " Os companheiros, que antes se encontravam tristes, começaram a exultar, compreendendo que, se prosseguissem seus amigos, seriam apresentados a Deus, no futuro. Por enquanto, havia muito ainda que viver, sofrer e prosseguir, realizando o melhor, a fim de O terem como amigo, tornando-se, por sua vez, amigos dEle.
No alto, nuvens prenunciadoras das borrascas repentinas do mar de Genesaré começaram a acumular-se, enquanto as primeiras bátegas caíam sobre a terra, espalhando a multidão.
Ele, que silenciara, seguiu com os amigos para a casa de Simão.
Os alicerces da sua mensagem estavam sendo colocados, e os tijolos de sustentação do amor eram fixados com a argamassa trabalhada com suores e júbilos.