Ele não mais voltaria à Galileia a partir daquele momento.
Os sítios queridos onde medravam a ternura e a simplicidade não volveriam a escutar-Lhe a voz.
Ficavam para trás as cariciosas convivências, os caminhos enflorescidos pela bondade espontânea e pela meiguice das gentes simples e humildes, afáveis e dóceis, marcadas pelas experiências primeiras da canção da Boa Nova.
Era Tishri do ano 29.
O pó se levantava pelos caminhos e a luz ardia nos olhos.
Começaria, agora, até o acume das dores, o período pela árida Judeia.
Poderia um profeta desincumbir-se do ministério sem viver e sofrer na Judeia?
Iniciavam-se agora e alongavam-se as rudes provas e os aturdimentos gerais, as controvérsias e as paixões fulminantes.
As ciladas armadas pela insensatez e os olhos vigilantes da inveja estavam abertos seguindo-Lhes os passos, a Sua atividade, provocando. . .
Em janeiro, passadas as Festas, quando Jerusalém acabara de receber magotes de viajantes de toda parte, o Seu verbo já se levantara e se fizera ouvir.
Os discípulos fascinados sentiam-se aturdidos face à coragem dEle.
O verbo desataviado e as atitudes desembaraçadas se espraiavam conclamando ao Reino de Deus.
Jesus desvelara-se por fim.
Chegava a hora.
Nenhum silêncio era possivel a partir de então.
Testemunhos e dores não O atemorizavam.
Indispensável inaugurar o período de libertação das consciências.
— Eu sou o Bom Pastor. . .
A voz soava meiga e poderosa.
Ao dizê-lo diante da multidão que O cercava, houve um estremecimento, seguido de sussurros enquanto a ira farisaica espuma e escorre na boca aberta dos adversários.
Há um infinito de amor naquelas palavras e nos gestos nobres que O ampliam além do tempo e pelos longes dos espaços.
A nebulosa de dúvidas se aclara e as incertezas se fazem convicção.
— Todo aquele que não entra pela porta do aprisco das ovelhas é um ladrão e um salteador — prossegue, no seu canto de dedicação. — Quem vai pela porta é o pastor, que ama as ovelhas. O salteador tenta seduzi-las, levá-las. . . As ovelhas, no entanto, conhecem a voz do seu pastor e o seguem, confiantes. "O Pastor faz-se seguido, porque defende as ovelhas, por isso, elas o amam. Ele logo chega, caminha à frente delas e as chama pelos nomes.
— Tem demônio. Fala pela sua boca a blasfêmia, o espírito das trevas. . .
— Diz a verdade!
Altercam-se os constantes contendores, os inúteis e esvaziados de ideais, os que falam e não agem, os que agridem em nome da fé, mais não vivem para a fé. . .
Ele não se altera, não modifica o tom de voz, a canção de esperança e de apoio.
O dia arde. O grupo aumenta. O silêncio concede-lhe espaço no campo da audição geral.
— O bom pastor dá a sua vida pelas ovelhas e, se alguma se extravia, vai ao seu encontro onde quer que esteja, sem importar-se com qualquer perigo, porque o amor vence os obstáculos, supera os impedimentos e é melhor dar a vida pela ovelha tresmalhada do que perdê-la. O pastor dá-lhes pastagens, guarda-as. . .
As almas solitárias, os corações sedentos de carinho, aqueles que jornadeiam em clima de necessidades, sob o açodar das dores que não se encorajam revelar, os que estão à borda da alucinação, porque cansados e exauridos, constituem, em todos os tempos, as ovelhas, o rebanho, a família que o amor deve reunir em um só grupo, sob o Seu comando.
Naquele momento há um altissonante apelo no silêncio que se faz natural.
— O mercenário cuida das ovelhas, mas não as defende. Quando o perigo se avizinha poupa-se a aborrecimentos e dores, fugindo, receando perder a vida, porque o rebanho não é seu, por isso não lhe dá amor. "Eu, porém, que vos amo, digo: eu sou a porta por onde as ovelhas entram no redil, a passagem de segurança, que conduz e apoia. . . " Lágrimas orvalham os olhos e emoções se avolumam nos sentimentos enregelados, nos ressequidos.
Aquela doação total e sem limite penetra com reconforto e dá força, ampara e levanta.
Todos sentimos necessidade de segurança, de ponto de referência, de certeza, para caminhar em paz.
A jornada solitária, o caminho pedregoso e áspero se dilatam além das perspectivas humanas. Para vencê-los, no entanto, só com a presença de Jesus.
Só Ele é o pastor, junto a quem as aflições se fazem paz e as precárias forças se transformam em alento.
Há pastores, todavia, que em Seu nome são mercenários, procurando tomar-Lhe o lugar nos corações.
Zelam por si mesmos, apaixonados e loquazes, susceptíveis e volúveis, buscando poder e glória, não excogitando dos interesses daqueles que os seguem.
Pensam no próprio eu antes que nos outros.
Assoberbam-se, na azáfama egoística, pressurosos e amargos.
Não desculpam aqueles que discordam das suas diretrizes, que os não seguem armazenando azedume e fazendo-se combativos no sentido negativo da luta.
Veem perigos, apontam falhas, mas não protegem as ovelhas.
São mercenários no curral.
Quando se não beneficiam de moedas, fazem-no pelo elogio, pela autopromoção, azorragados pela conquista das coisas nenhumas com que se inquietam, de que se abarrotam.
Estão passeando suas injunções através dos séculos, em nome de Jesus.
O pastor, porém, verdadeiro, afável, doando-se, é conhecido facilmente pelas ovelhas que lhe identificam a voz, os sentimentos, os instrumentos da ação e o conseguem porque são amadas, seguindo-o, confiantes.
O bom pastor, acima de todos os pastores, comanda as ovelhas com incomparável amor, porta e estrada, estrada de acesso e rota, cajado de comando e presença de apoio.
Antes, naquele ínterim, entre outubro e janeiro, Ele atendera publicamente à "mulher adúltera", cantou com inesquecível música a sinfonia do amor expressa na "parábola do bom samaritano", para depois de surpreender e escandalizar a hipocrisia e o puritanismo, apresentar-se na sublime condição de bom pastor, de porta.
Não mais a Galileia O escutaria, senão ao retornar do túmulo, para rápido convívio com os amigos, no aprazível mar de Genesaré, antes de encerrar, em definitivo, o ministério. . .
Jesus: Pastor e porta!