Luz do Mundo

CAPÍTULO 14

ORDENA, SOMENTE



Os aquinhoados com a farta messe esparzida no Monte, há poucos dias, divulgam as lições que escutaram da boca do nobre Rabi.

Pastores e mulheres humildes, agricultores dos platôs e das encostas de vinhedos, das margens do lago, das férteis planícies e do vale do Jordão, pescadores do mar amigo e homens dalém, que ali se encontravam, fizeram-se naturais mensageiros das promessas de ventura com que foram aquinhoados e das bases seguras do novo Reino, de que Ele se fazia o Messias Divino.

As boas novas se desdobravam confortadoras, e magotes de sofredores acorriam de toda parte para O ouvirem e receberem das Suas mãos as migalhas de luz e as sementes da saúde que os sustentaria por muitos anos a-fio.

As dádivas de amor caíam nos corações como bagas de orvalho precioso após noite abafada, em madrugada refezante.

Multidões O acompanhavam sensibilizadas, formando expressivos grupos, jubilosos após estarem com Ele.

Ele, no entanto, não se alterava, permanecendo amigo, mas inatingível.


* * *

O dia estuava de luz de ouro, quando Ele chegou a Cafarnaum.

Amava aquela cidade onde a ternura dos corações singelos davam mostras de amor puro. Ali se refugiaria muitas vezes, encontrando a família ampliada na devoção das almas singelas que O cercavam de carinho.


Uma delegação de Judeus respeitáveis, os anciães da cidade, aproximaram-se e Lhe disseram:

— Senhor, o servo do centurião está enfermo e parece que sucumbirá se providência divina não o amparar... (Lucas 7:1-10 Mateus 8:5-13)

"Sabemos que podes fazer quanto queiras e te pedimos ir à sua casa para recuperares o seu servidor, a quem ele muito ama.

"Este é um bom centurião. Autoridade de respeito, não judeu, é "temente a Deus" e ajudou-nos, inclusive, a levantar a nossa Sinagoga.


"É amado por nossa gente... Nós te rogamos, Senhor!"

O olhar lúcido e transparente de Jesus derrama claridade envolvente sobre aqueles homens confiantes que O buscam.

Sim, já ouvira falar daquele Centurião. Homem justo sabia distribuir as leis do Império de que se fazia representante e a vara da videira que ostentava — símbolo da sua autoridade — nunca fora deslustrada por um mal proceder, no posto militar que ocupava com zelo e dedicação.


Passados alguns momentos de silêncio, em que o Mestre auscultava no recôndito do Seu ser o problema que se Lhe apresentam, concorda:

— Sim, irei até lá.

O grupo que O cerca se entreolha com espontâneo contentamento e põe-se em marcha.

Há uma envolvente melodia no ar. É primavera, e a música do vento perfumado traz o acre-doce odor das algas espalhadas nas praias imensas...

Os centuriões estarão mais de uma vez nos fastos da Boa Nova.


Após a crucificação, um deles, emocionado e convicto, confessou sem receios:

"Com efeito, Ele era o filho de Deus!" Soldado rude que presenciara repetidas cenas daquelas não se pôde furtar à apreciação do acontecimento nem conseguiu evadir-se ao contágio do Inconsumpto Amigo.

Tempos depois, Lucas anotará, nos At, a conversão do nobre Cornélio e dedicará emocionantes relatos à sua visão e ao seu encontro com Pedro. Mais tarde, quando Paulo é preso marchando para o martírio em Roma, sensibiliza Júlio, o centurião que comanda a hoste que o conduz, tornando-se seu amigo...

A esperança da liberdade incondicional alcança aqueles que no clima da força, impondo a dominação com o carro da guerra e com as armas da morte, sentem a asfixia do desespero e buscam a paz...

Penetra-lhes o odor da sublime paixão e renovam-se na atmosfera santificante do amor do Cristo.


Aquela Presença nunca ausente anestesia as paixões, produz alvorada estranha, grandiosa, n"alma.


* * *

Nova embaixada chega aos passos do Mestre antes que Ele alcance a vila do apelante afervorado.

— Não é necessário que te incomodes em ir até a sua casa — mandou-te dizer o centurião...


E após uma pausa, aclararam:

— Paulus reconhece a sua miserabilidade... A sua casa não é digna de Ti. Ele informa que é pecador e não se atreve a ter-Te nas sombras do seu reduto, a Ti que és o Sol do Meio-Dia...

Resfolegam, ansiosos os intermediários, para concluírem: Ele é militar: comanda e é também comandado. Dirige, mas é subordinado;

conhece de hierarquia... Ele diz ao seu subalterno: — "Vai ali!, ele vai; — Vem aqui!, ele vem; — Vai acolá! e ele atende. —" Ora. Rabi, se Tu ordenares aos Teus subalternos eles farão a Tua vontade, como os seus fazem as dele...

A emoção trabalha o grupo colhido de surpresa. Comumente os homens desejam ver para crer e vendo não creem; pedem para ouvir a fim de entenderem e escutando não compreendem; fatos e demonstrações exigem as grandes maiorias e após tê-los perdem-se no emaranhado das justificações inqualificáveis, das suspeitas calamitosas...

Há um silêncio que fala nos olhos e pelas bocas cerradas.

— Nunca vi tão grande fé em Israel...

A fase modulada com inflexão formosa nos Seus lábios é uma exaltação ao estrangeiro e uma discreta censura aos eleitos.

Tão grande fé e tão elevada consideração!

— Ide, voltai, dizei que eu quero que o seu servo sare, retome a saúde! Meus servidores já seguiram à frente: foram atender minha vontade. Dizei-lhe...

As duas embaixadas levantaram o pó do caminho, no rumo da vivenda do Chefe da Centúria, apressadamente.

— Quero! Ordeno!

O desejo continuava vibrando na acústica do momento.

Ainda não alcançaram o domicílio do romano e o ruído dos júbilos dizia à distância que o enfermo sarara e a felicidade retornara ao seu amo.

Todos aqueles que o viram, há pouco, a morrer, sorriem... e temem. Estava quase morto — agora vive!

— Eu sabia que bastaria que Ele ordenasse — repetia Paulus, comovido e confiante. Eu cria... Eu creio...


* * *

A quais servos se referira Paulus? — interrogou Simão ao anoitecer daquele dia, sob a argêntea gaze do luar e o marulhar das ondas arrebentando espumas na praia.

Não sabes que sou Rei? Não tenho falado do Reino do Amor? Os meus servos são aqueles que fazem a vontade do meu Pai e referendam, atendendo, a minha vontade, seguindo minhas ordens.

Simão o fitou, cenho carregado, interrogativo.


E para que o esclarecimento se fizesse inolvidável, o Mestre arrematou:

— Convoquei-te a pescar homens nas águas do mundo Simão faz pouco...

Esta é a minha vontade... Serás, também, logo mais, meu servo e, assim, recolherás aqueles que como Paulus estiverem soçobrando em águas torvas e agitadas. Far-me-ás a vontade: pescarás homens!

Simão compreendera. O rosto largo, requeimado, se abriu com ingênua alegria.


Nas sombras espessas sorriem estrelas — divinos diamantes em fulguração no veludo da noite — e o grande silêncio repete a palavra de ordem:

— Quero! Nunca vi igual à deste homem uma fé como esta em Israel.

O Reino se perdia já nas fronteiras indimensionais do infinito, começando a recolher os seus primeiros súditos, vassalos da felicidade, fora de Israel.