Luz do Mundo

CAPÍTULO 6

E ELE DORMIA



Duas vezes por ano, janeiro-fevereiro e março-abril, sobre as águas do mar generoso da Galileia cintilam mais cedo as estrelas. (Mateus 8:23-27 Marcos 4:35-41 Lucas 8:22-25) Antes que o poente de ouro desapareça de todo perpassam os suaves favonios enquanto coruscam os astros no firmamento.

Aquele mar cercado pelos povoados como conchas brancas nas bordas, piscoso e amado tornar-se-ia por todo o sempre o cenário incomparável que emolduraria a Sua pessoa na epopeia das Boas Novas.

Ali, nas claras manhãs ou nos entardeceres festivos, a Sua voz musicava com esperança os espíritos enfraquecidos nas lutas e os alentava.

Milhares de homens, mulheres e crianças naquelas paragens receberam das Suas mãos sublimes as fartas concessões da saúde, as dadivosas bênçãos do reconforto.

Seus lábios se entreabrindo traçaram as inconfundíveis diretrizes da legislação do amor — o fundamento essencial do Seu Messianato!

Mutilados do corpo e da alma, atormentados na forma e na essência, recorreram vezes incontáveis ao Seu concurso e receberam o auxílio lenificador de que careciam.

Nas águas plácidas e nas areias encharcadas, estavam sempre ao alcance os barcos para as jornadas às outras terras, ou para poder evadir-se, quando a insaciável avidez do povo teimava por tocá-Lo, na ânsia incontida de recolher mais auxílios e incessantes socorros...


* * *

Nos meses de Ticri e Nisan (nota abaixo) aquelas águas normalmente serenas, quase sempre mar-espelho, agitam-se de inopino, crescendo suas vagas a alturas desmedidas, sacudidas por ventos inesperados, tormentosos.

Nesses períodos os pescadores cuidam de não se adentrar pelas águas traiçoeiras entre o meio-dia e a meia-noite a fim de se pouparem às surpresas das arremetidas tempestuosas.

A mensagem alcançara as fronteiras indimensionais das almas, alastrando-se pelos países dos homens. De toda parte acorriam os necessitados de todo jaez a buscarem o Seu concurso.

À hora undécima o céu apresenta-se fulgurante e as águas tranquilas balouçam suavemente tocadas por ventos leves e cantantes.

— Saiamos daqui — diz Jesus. — Os barcos estão prontos?

— Sim, Rabi. — Retruca Simão.

— Devemos atingir a outra margem antes da alvorada, — elucida o Amigo Divino.

— Mas neste período — relata o velho pescador— as tempestades sopram de surpresa e colhem os incautos imprevistamente, ameaçando-lhes as vidas.

— Não temamos as coisas que promanam de Nosso Pai — esclarece Jesus. — Estou extenuado. Saiamos daqui.

Os barcos deslizam sobre as cristas das ondas eriçadas a arrebentar-se em renda de espumas.

O Rabi toma de um travesseiro, e na popa da barca em que seguem os irmãos Boanerges — João e Tiago — procura repouso.

A brisa amena e o ar transparente parecem confraternizar com os astros em festa de prata salpicante no alto.

Ao longe ficam as praias e Cafarnaum tem os olhos acesos, em candeias vermelhas e lâmpadas de barro fumegando...

As montanhas se recortam nas sombras em redor das águas no outro lado, desenhando múltiplas imagens grotescas.

As cidadezinhas da orla das águas rebrilham distantes com as suas luzes festivas, e de longe chegam canções trazidas pelas vagas...

O Mestre dorme em plácida serenidade.

Os vultos dos companheiros aparecem e se recortam na noite, próximos, nos outros barcos.

Os remos cantam nas águas e os lemes estão seguros com vigor.

Há uma inocente alegria conquanto algumas mesclas de preocupação.

Judas exclama: Não será uma temeridade esta viagem?

O Rabi está conosco, portanto, não há problema, — redargue João.

Simão, porém, sabe dos perigos, neste período — investe o Iscariotes.

De fato, se formos colhidos por um vendaval — obtempera Simão — nossas vidas estarão ameaçadas.

Mas Jesus está conosco — insiste André.

No entanto, dorme, — chasquina Judas — enquanto deveria vigiar; isto, para ser fiel às Suas próprias palavras...

Não temamos. Confiemos. — Conclama João. — A noite está serena e o Pai vela por nós.

— Contudo, é perigoso — retruca, mais uma vez, a inquietação de Judas.

— Rememos — propõe Pedro, na condição de timoneiro.

As terras da Decápole estão à vista, desenhadas nas sombras à frente.

— O dia fora exaustivo. — Relaciona o jovem Boanerges. — O Mestre atendeu a gentes de várias partes que levarão, agora, as notícias.

Seus olhos fulguram de alegria.

Eu vi um cego abrir os olhos — relata com palavras medidas, Simão bar Jonas — e as lágrimas cristalinas diziam da emoção incomparável daquele beneficiado.


E o leproso? — interroga Tiago — Nauseante, estava recurvado e exsudava putrefação. Cambaleando e rouquenho, acercou-se do Mestre. O olhar que o Rabi depositou sobre ele, comoveu-me. Vi a palidez no Seu rosto e uma indescritível tristeza se Lhe desenhou na face. Tocou-o e logo as carnes começaram a agitar-se, a transformar-se todo ele ante a minha admiração... Quando o homem saiu exultante, interroguei o Mestre: — "Por que, Senhor?" "Por ser enfermo o seu espírito calceta e leviano — respondeu, acrescentando: que lhe não aconteça nada pior!"

"Pior do que a lepra? — indaguei.

"Sim, redarguiu, — a perda da vida espiritual"... e seguiu adiante.

— Olhem as nuvens — gritou Judas, deixando transparecer um assomo de pavor.

Repentinamente as estrelas desaparecem sob nuvens escuras, borrascosas.

Sopraram ventos inesperados de várias direções e o pânico tomou vulto.

Os barcos oscilam nas águas a crescerem. Trovões espoucam após relâmpagos ligeiros.

No célere clarão pode-se ver o medo estampado nos homens receosos...

— E Ele dorme! — exclama André.

— Dorme enquanto perecemos! — grita Judas.

— Confiemos! — insiste João.

— O barco não suportará a borrasca — relata Simão.

Cai a tempestade. As forças em desgoverno sacodem o mar e o tumulto domina a paisagem.

Sombras e desgraça em algaravia de horror. Lutam os titãs da Natureza.

Adernam as embarcações e os viajantes se aparvalham.


— O Mestre dorme, Deus meu, e nós... — desespera-se Judas. — Acordem-n"O!

— Mestre, Mestre! — chama João, receoso e trémulo — pereceremos, se não nos salvares.

— Se não nos salvares? — repete, temeroso e revoltado, Judas. — Terá que nos salvar. A ideia da viagem perigosa foi Ele quem a teve.

Brame o mar e ululam os ventos.

Que tendes? — indaga, sereno, o Rabi.

— Perecemos, Amigo! — explica, tímido, o amado...

Ele se ergue, abre os braços. O relâmpago veste-O de claridade de prata e ouro, emoldurando-O, num átimo.

— Calai! Emudecei!

A voz supera a gargalhada das forças desconexas da Natureza.

— Aquietai!

O brado arrebenta-se nos longes das praias. Os ventos amainam e as águas desencrespam-se As estrelas olham com lampejos argênteos e a serenidade bonançosa veste novamente a paisagem.

Os sorrisos bailam nos lábios de todos e nova tranquilidade povoa as barcas, que deslizam cantando, ao cortarem as águas, agora calmas.


A tentação dissera há pouco por aquelas bocas:

— Não te importas que pereçamos? — quando indagara Simão, traduzindo as dúvidas gerais.

No entanto, Ele ali estava.

O tormento interior começou a crescer naqueles espíritos tímidos. E se interrogavam: — "Quem é este que até o vento e o mar lhe obedecem?" e todavia, viviam com Ele, mas não O conheciam...

Pelo amanhecer os barcos alcançaram as praias e as encostas de Gerasa, na Decápole.


* * *

Recordando a tempestade do mar da Galileia, merece que examinemos o mar da nossa alma e Á tormenta das paixões que nos açoitam com frequência inesperada, intempestivamente, enquanto o Cristo, que deveríamos trazer internamente, jaz adormecido sem que as nossas ações o despertem.

Era o mês de Ticri, à hora undécima, e no mar calmo; de repente espoucou a tempestade enquanto, plácido, Jesus dormia... (nota) Setembro, outubro, março, abril.

Outros historiadores informam que a tempestade ocorreu no mês de dezembro.

Preferimos situá-la em outubro de 28.