— Saiamos daqui!
As notícias da morte de João chegaram enriquecidas de detalhes...
Jesus tinha necessidade de orar e demorar-se em Soledade com o Pai.
A mensagem como grão de trigo feito luz se multiplicava, em farta sementeira por toda a parte.
Enfermos desenganados e espíritos marcados por fundas desilusões apressavam-se a buscá-Lo, depois de escutarem as narrativas empolgadas a Seu respeito.
Acorriam sob os panos sombrios das aflições e, ansiosos, O envolviam com as rogativas e lamentos lancinantes. Onde quer que se encontrasse, ao Seu lado estava a multidão de mutilados do corpo, da emoção, do espírito...
Infatigável Ele socorria com amor, abnegado, gentil. Suas mãos acionadas pela misericórdia e Seus lábios cantando ternura leniam todas as exulcerações e acenavam esperanças aos magotes numerosos, a se multiplicarem incessantemente.
— Saiamos daqui e atravessemos o mar, para a outra banda - falou o Senhor... (nota 2)
A missão dos Reformadores é toda aspereza; o sacerdócio do Amor se manifesta em rio de renúncias; a doação do Herói da Salvação se apresenta na oferenda da própria vida. Onde se encontram, aí estão as dores e as angústias, os desesperos e os desaires, rogando, aguardando, insaciáveis.
Era manhã de Abril.
A Primavera espoucava escarlate nas pétalas das anémonas em flor, o campo relvado em matizes brancos se salpicava de atrevidas madressilvas que sobressaíam e oscilavam no verde, ao sabor dos ventos leves, brincando a rés do chão. O céu azul e transparente parecia confraternizar com o mar tranquilo, aberto aos barcos de velas coloridas. Havia mesmo uma sinfonia discreta na manhã formada das onomatopeias generosas da Natureza.
A barca vence as distâncias deslizando com Simão ao comando. A festa dos júbilos sorri nos doze que estão acompanhando o Rabi na barca que entoa melodias nas vagas levemente encrespadas a se deixarem cortar...
A multidão, na praia, reflexiona, interroga e olha a barca movei no mar azul.
Alguém sugere a direção que segue a embarcação que conduze o amado Fugitivo.
Outrem opina que todos O sigam; surpreendê-Lo-ão adiante. Há uma alegria espontânea. A mole humana, volumosa, se movimenta. Muitos chegaram de longe e não podem perder a oportunidade.
O rumo é Bethsaida-Julíade, distante pouco menos de dez quilômetros: uma agradável marcha!
O povo se divide em grupos e canta; vence as distâncias; há que encurtar os caminhos e toma a ponte que atravessa o Jordão.
O dia espia em luz branda o movimento, a agitação.
Quando a barca alcança o ancoradouro da cidade a massa colorida, aguarda...
O Mestre contempla o poviléu.
O Rabi se comove.
Todos Lhe requerem o concurso.
As aflições humanas, densas, suplicam Sua compaixão e os homens são a Sua paixão.
Apontou um cerro próximo e o galgou. As criaturas O seguiram. Em volta, a vegetação rasteira com giestas em flor e a larga paisagem sob um céu transparente.
Ele começou a falar e o verbo claro cai nas almas, blandicioso e reconfortante, iluminando consciências, clarificando os íntimos problemas dos espíritos inquietos.
A palavra fluente cala e a saúde lhe sai do amor na direção dos padecentes que se refazem em Sua presença, ao Seu contato.
O dia avança e a hora está adiantada. Carinhosamente os discípulos O advertem: Despeçamos a multidão para que as pessoas se possam alimentar, pois este é um lugar distante, deserto...
"Dai-lhes vós de comer" — redarguiu o Mestre.
Senhor — responderam os discípulos preocupados — mas todos têm fome e não poderíamos comprar-lhes pães suficientes. Se fôramos adquirir repasto, necessitaríamos de uns duzentos dinheiros para os não deixar totalmente esfaimados... São muitos os que aqui estamos.
Que temos? — inquiriu, tranquilo, Jesus.
Nada ou quase nada. Segundo me informaram, um homem trouxe cinco pães de cevada e dois peixes. Mas, que são?...
Trazei-os e mandai que o povo se sente em grupos.
Ali estavam quase cinco mil ouvintes e aflitos que se recobravam com o Seu hálito de transcendente poder.
Lá em baixo estavam o mar em espelho colossal, no rumo do oriente, mais ao longe a cidade ribeirinha e branca em claros e verdes: Cafarnaum; ao sul o casario de Magdala, avançando sobre as águas, nos outeiros, Tiberíade entre bosques espessos em construções de pedras; Corazim nas montanhas, encravada como uma rosa alvinitente.
As altas cordilheiras com a fímbria diluída no clarão do dia se destacam no cenário formoso.
Ergueu as mãos e orou em silêncio. O murmúrio do povo calou a boca da aflição.
"foram repartindo e multiplicando como semente, que fecundada, se desdobra em espigas ricas sob o milagre da terra, fazendo-se toda uma seara... (nota
3) Todos se acercam alegremente e cestos são apresentados; enchem-nos e repartem a messe com o povo que se nutre até ao enfartamento...
... E sobra o suficiente para encher mais alcofas com o que resta, excedente, abundoso. (nota 1 abaixo)
Salve, Rei de Israel! — grita uma voz.
Conduze-nos à conquista de Jerusalém! — clama outra. — Seguiremos contigo!
Aleluias explodem, espontâneas. Os discípulos exultam e O envolvem com inexcedível carinho, excessiva emotividade, numa ternura sem palavras, extravasante.
Os olhos do Mestre se nublam. Faz-se mais pálido e os lábios tremem como se sofresse uma dor surda, forte.
O ar acolhe a exaltação da massa convulsionada pelo espetáculo de há pouco e referta de alimento pelos Seus poderes.
Na febricidade geral, os companheiros percebem-No afastando-se, refugiando-se por detrás das sebes, nas sinuosidades das pedras.
— Deixa-me a sós. — Ele fala, triste; é uma ordem e uma súplica.
A multidão se dispersa, os discípulos descem o monte. O ar está morno. Eles retornam à barca e volvem a Cafarnaum...
... Lá O encontram.
"Eu sou o pão da Vida!
"Este pão não mata a fome.
"O pão que sou farta para todo o sempre...
"Credes porque vos alimentastes.
"Trabalhai não pela comida que perece, mas pela comida que permanece para a vida eterna, a qual o Filho do Homem vos dará; porque sobre Ele o Pai, que é, Deus imprimiu o seu selo.
"A obra de Deus é esta, que creais naquele que Ele enviou.
"Eu sou o pão da vida: o que vem a mim, de modo algum terá fome e o que crê em mim, nunca, jamais terá sede.
"Tudo o que o Pai me dá, virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora; porque eu desci do céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade Daquele que me enviou.
"A vontade daquele que me enviou é esta: que eu nada perca de tudo o que Ele me tem dado...
Pão da vida!
Este pão — o de todo dia é transitório; — aquele que Ele dá é perene, suprime as necessidades, todas as necessidades...
O mundo O busca e os homens O querem, mas desejam este pão transitório do monte, não aquele, o da vida, que também foi oferecido no monte.
Este, o do estômago, sim, pedem e querem hoje os homens.
Aquele, o da vida — talvez, depois; não, não sabem quando o querem os homens.
Era abril, em festa de Primavera.
Ele é o Pão da Vida.
Em soledade com o Pai e a multidão.
A multidão na Primavera e o Pão da Vida em todas as Estações.
Nota 1: Santo Agostinho estudando a "Multiplicação dos pães", interrogava: "Quem é que alimenta o universo, senão Aquele que, dum punhado de sementes, faz nascer as searas?
Nota 2: Mateus
Nota 3: Vide "A Gênese", de Allan Kardec, Capítulo XV. Item 48 a 51. Optamos pelo estudo segundo a narração dos Evangelistas.
Nota 4: João