Apesar de ainda a Luz encontrar-se no mundo, já anoitecia nas consciências...
As sombras se adensavam e as vozes lúgubres recitavam a litania da paixão com todo o seu cortejo de dores e de angústias.
Na memória ficariam os dias festivos de esperança e de ingenuidade, quando as almas simples entoavam as baladas gentis da fraternidade.
A querida Galileia quedara para trás, emoldurada pela vegetação colorida que lhe caracterizava a exuberância semelhante às suas gentes espontâneas e puras, acostumadas à grandeza da simplicidade dos próprios corações.
A aridez da Judeia, de certo modo, ressequira os sentimentos daqueles que a habitavam e, porque fosse Jerusalém a capital, ali se alojavam, ao lado do dominador, a ambição abraçada à astúcia, a inveja guiada pela intriga e o despeito nas mãos da delinquência...
A Ceia pascal iniciava a Era da saudade, encerrando os dias de preparação...
Fechava-se o ciclo da oferta para abrir-se o período dos sacrifícios.
Sorrisos substituídos por lágrimas que preparariam as bases do edifício da paz, quando outros júbilos chegariam, então, sem fim.
Até esse momento, porém, as trevas dominariam com breves interregnos de claridade.
Ele estava preparado, pois que, para tal viera.
Ao ramo verde ateariam fogo, em vã tentativa de destruí-lo. Que se não faria à vara seca, ao galho desvitalizado pendente na árvore da vida?
No ar ameno da Ceia, pairavam ansiedades.
As instruções prenunciavam despedidas. Cada minuto era de importância vital, fazendo-se necessário sorvê-lo pelo conduto da mente no rumo do coração.
Evocava-se a festa judaica; preparava-se o sacrifício futuro.
Já uma saudade não definida emocionava os sentimentos.
Cada discípulo presente era uma coluna do edifício do porvir, no qual o amor albergaria a Humanidade.
Quais aqueles que suportariam o peso da construção?
A fragilidade humana é barro que deve ser cozido nos altos fornos do sofrimento, a fim de adquirir consistência, inteireza.
Todavia, quem estaria disposto a deixar-se transformar? Todos eram candidatos, mas, quais se permitiam eleger?
— "Simão, Simão, olha que Satanás te reclamou para te joeirar como o trigo. Mas eu roguei por ti, afim de que a tua fé não desfaleça... E tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos. " (Lucas
O futuro antecipava-se ao presente, estabelecendo balizas de comportamento. Poderia ser evitado; deveria ser vivido.
Surpreendido pela advertência sincera e oportuna do Benfeitor, o amigo retrucou, despercebido daquilo que enunciava: — "Senhor, Senhor, estou pronto para ir contigo até para a prisão e para a morte".
Honestamente, num momento, alguém daria a vida por outrem, a sua pela liberdade do seu amigo. Já, não, porém, noutro momento, num diferente estado emocional.
Não é covardia, nem indiferença.
São as circunstâncias. E todo o passado existencial assomando, reagindo pela evasão ou agindo na imolação.
— "Digo-te, Pedro, o galo não cantará hoje sem que, por três vezes, tenhas negado conhecer-me. " Quanto Ele conhecia os amigos!
Identificava-lhes a fraqueza, mas não os amava menos.
No mesmo tom prosseguiu, indagando e instruindo-os, preparando-os para as horas próximas.
O que sucedeu, deveria acontecer.
Seriam necessárias à Sua prisão e morte, mas não indispensáveis a traição, a negação, o abandono de quase todos.
Todavia, após a grande Treva, surgiu a madrugada da Ressurreição, o triunfo perene do dia sobre a noite.
Sem a morte não teria surgido a vida.
Sem o adubo fenecem as flores antes da frutescência.
O sangue e o sacrifício inundaram o solo, a fim de que germinasse e crescesse a árvore da esperança.
— "Não O conheço, mulher...
— "Homem, não sou...
— "Homem, não sei o que dizes... "
(...) E o galo cantou!
O Mestre, manietado e sob dilacerações, fixou os Seus nos olhos do discípulo, sem censura, sem mágoa...
Dando-se conta, caindo em si, o companheiro aturdido chorou copioso pranto.
Ficava-lhe a frase-consolação: — E tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos!
A noite densa reservava aos aflitos novas defecções e fugas.
As dores, em crescendo inesperado, alucinavam, e o medo, em desarticulação emocional, ensombrava as almas.
O galopar do desespero é mais infrene que o dos corcéis em disparada nos largos prados, a tudo destroçando e vencendo...
Não mais deveria repetir-se, daquela maneira, noutra, a noite sinistra.
Viriam dias e noites de angústia prenunciadora de felicidade, nos longes do amanhã, quando eles fossem chamados, a fim de, com o exemplo fortalecerem os seus irmãos.
Pedro se fez digno do legado que lhe foi destinado.
Fortaleceu os irmãos, conduziu-os, doou-se em holocausto...
Prossegue-se ainda negando-O, apesar de O citar-se, aparentando-Lhe fidelidade.
Nega-se pelas palavras, pela conduta, pela ação, Aquele que a todos espera e ama.
Enquanto o egoísmo predomina e as ambições desgovernam os homens, permanece o apelo final para que os Seus seguidores fortaleçam os irmãos desfalecentes e caídos.
No tumulto das paixões e na diversidade dos interesses que distraem, tombam incontáveis lutadores que não suportaram as pressões da própria fragilidade, correndo riscos mais graves...
Necessitam que se lhes fortaleçam o ânimo e a fé.
Cansados, na soledade dorida, ou exauridos pelos demorados testemunhos, desfalecem corações devotados, a um passo da queda abissal...
Aguardam que se lhes fortaleçam o amor e a confiança no bem.
Nunca faltará, nessa ingente batalha, quem, arrependido, venha, jubiloso e devotado, fortalecer os irmãos.
O apelo do Mestre continua vibrante.
Como é verdade que há muita negação e fuga, não menor é a verdade que demonstra a reabilitação e o recomeço dos que amam e creem, dispostos a fortalecer os seus irmãos, e, se necessário, em silêncio consumir-se na renúncia, dando-lhe a vida, para que eles tenham vida.