Quando Voltar a Primavera

CAPÍTULO 13

JUSTIÇA DO AMOR



Na malta dos furibundos justiçadores da pobre mulher surpreendida em adultério, de que nos falam os nobres escritos evangélicos, encontrava-se o esposo traído, sobraçando injúrias e pronto para o arremesso das pedras lapidadoras.

Era um dos mais ferrenhos acirradores do crime legal, aliás, fora a causa central da animosidade popular contra a inerme vítima de si mesma.

Desde há muito suspeitava da fidelidade conjugal da companheira de dúbia moral e débil dignidade.

Vigiava-a, estigmatizava-a, feria-a com doestos e indiferenças.

Tornava-se frio, depois que a violência lhe espumava os ódios e os transbordava com acidez...

Calculara o desforço com felina sordidez, armando o cenário para surpreendê-la no desrespeito ao tálamo. Não lhe constituíra dificuldade.

Convocando testemunhas venais, quanto a sua própria vilania, irrompera em casa no momento infeliz, configurando, ante o fato desastroso, o crime passível de pena capital...

A inditosa consorte não pôde sequer recalcitrar, defender-se.

Sentia-se antecipadamente morta, porquanto não ignorava ser pior do que o desvelamento do crime o peso da consciência culpada.

O consorte do gravame, acovardado, pigmeu que era em si mesmo, aproveitou-se do pânico e se evadiu...

Não interessava a ninguém o corresponsável, porém a vítima indefesa...

Arrastá-la até a praça foi o ato contínuo, sem dar-lhe tempo ao pudor de recomposição dos trajes.

O julgamento sumário, arbitrário, sem defesa nem argumentação revelava a ferocidade interior de cada um dos improvisados juízes.

Ali estavam o homem que se supunha vilipendiado e a massa vilipendiadora, não obstante escondendo-se na falsa justiça de que se fingiam cultores...


* * *

O Mestre fora peremptório ante a indagação sinuosa, a armadilha dos indignos representantes da religião e da justiça:

— Quem estiver isento de pecados, atire-lhe a primeira pedra.

A sentença, uma ordem inesperada de conclamação ao exame de consciência de cada qual, se tornaria a mais vigorosa e enérgica advertência de que se tem notícia histórica.

Ao dizê-lo, porém, relanceou o inconfundível olhar pelos circunstantes excitados, antes de deixá-los perplexos pela sublime condenação, deparando o aturdido esposo que n’Ele fixara interrogações, arrogante e ofendido.


Naquele átimo de minuto falou-lhe à acústica da consciência:

— Como te atreves? Olvidas que na sombra de quem tomba se ocultam as mãos criminosas de quem o arroja ao solo? "Onde se encontra aquele que impôs a esta mulher a deserção do dever? "Por que somente ela deve pagar? "Não foram dois os transgressores da ordem e da moral?" A balada de justas interrogações ecoava na alma em desalinho do marido descuidado.

— Ergues a pedra — prosseguiu a voz inarticulada no desarvorado algoz — sem embargo, não és, também, adúltero, a teu turno? Quantas vezes faliste, defraudando a esperança das vendedoras de ilusões sequiosas de paz, que deglutem lágrimas salgadas pela vergonha, enquanto se escravizam no comércio nefário, afim de conseguirem o pão amargo para a fome do estômago, já que ninguém lhes doa uma terna palavra para a sede do coração?

O homem tentou subtrair-se, sem o conseguir, à presença dominadora do estranho Profeta que o penetrava fortemente.

— Não teria sido a tua frialdade moral e jactância que lhe deram o primeiro empurrão no rumo da queda?


A verberação continua:

— Muitas vezes ela buscou-te sem palavras, rogou-te entendimento e socorro. Intoxicado pelos vapores da própria loucura, fingiste não a ver, nem a perceber. Assim, inditosa e fraca, transferiu do dever para o crime a necessidade de encontrar-se, ruindo na armadilha que lhe propiciaste, tornando-lhe comparsa outro adúltero, enquanto fugias, também pelas rotas inditosas da desesperação. "Ela caiu porque lhe faltaste com o apoio. Se te considerares isento de culpa, apedreja-a... " O suor lhe abundou na face, nas mãos. Pôs-se a tremer como varas verdes. As pedras lhe escorregaram e tombaram ao solo. Nada mais ouviu, nem se fazia necessário. Fugiu dali, tomou o rumo do lar destroçado...


* * *

— Também eu não te condeno — disse-lhe Jesus. - Vai e não tornes a pecar.

Estava lavrada a magna sentença do amor e da reeducação.


* * *

O criminoso é sempre um enfermo da alma. Esfaimado de amor, jaz na toxicidade da revolta.

Agredido em si mesmo, ataca, fugindo à sua realidade inditosa em desforço injustificável.

O Evangelho, obviamente, não estimula a criminalidade, não endossa o erro nem convive com a infração, pelo contrário, na sua voz imperativa é sempre incisivo quanto ao culto das responsabilidades.

O que não faculta é tornar-se alguém o justiçador de seu irmão sem os poderes legais da injunção divina ou da legislação humana, quando investido de tais condições.

Evita que as paixões se armem de falsa pureza no ato de retificar ou examinar, pelas lentes escuras da tua limitação, as fraquezas do próximo.

* "Não tornes a pecar. " A ordem permaneceria insculpida no imo da mulher enferma da alma por todo o sempre. "Quem estiver sem culpa... " A proposição chamaria a atenção do suposto traído.

Desejoso de reparar ou diminuir os gravames que gerara, foi em busca da esposa destroçada, após a cena hedionda que não culminou em espetáculo de sangue, graças à interferência do Mestre e distendeu-lhe as mãos, propondo recomeço...

Transladou a residência da cidade, abraçando a oportunidade nova, sustentado pela dulçorosa força daquele olhar e pela Sua diáfana presença, que lhe ficaram impressas na alma.

Com o ânimo renovado, recompôs a vida, dando curso à existência mais adiante...


* * *

Ainda hoje, perante infelizes e infelicitadores, convém examinar-se a questão em torno do colhido pelo crime, não do ponto de vista pessoal, mas de acordo com as circunstâncias inditosas que ele padeceu e quiçá não ocorram a quem se considera indene, incapaz de errar.