Quando Voltar a Primavera

CAPÍTULO 16

CINGINDO-SE, LAVOU OS PÉS



Os cirros borrascosos já se acumulavam, sombrios...

A odiosa agitação política e a perseguição gratuita da inveja armavam de ódio os partícipes da tragédia que logo mais culminaria no irremediável acumpliciamento que teria seu atro desfecho no Gólgota...

O Mestre se encontrava em Jerusalém. Demoravam-se na sensibilidade da Sua alma, em notas de tristeza, as vibrações da algaravia desconcertante e os gritos entusiastas da multidão que O saudara dias antes...

Todavia, não obstante o rebuliço injustificável, após as emoções desordenadas que transitam dos altiplanos às baixadas dos sentimentos, aqueles mesmos ovacionadores foram sendo consumidos pelos tóxicos daninhos da trivialidade e das questiúnculas frívolas, que abriram as brechas para o crime porvindouro e a anarquia.

César, em Roma, fora assassinado a soldo da insensatez e sob o acumpliciamento do Senado.

Jesus seria crucificado após a infame traição de um amigo sob a inspiração do Sinédrio.

Aqueles eram os dias preparatórios da Páscoa, os dos primeiros pães ázimos...

O símbolo do cordeiro pascal era e continua sendo de grande significação para Israel. Evocava as horas amargas que precederam a saída do Egito, da escravidão, quando Moisés rogou ao Senhor a liberdade total do povo, e as circunstâncias faraônicas dominantes se recusaram concedê-la...

Das festas israelitas, a evocação da partida e os momentos ásperos que precedem a libertação, feitos de amarguras e expectativas, são de elevada significação.

Jamais o olvidarão. Por todos os tempos recordarão a larga messe e a sublime dádiva...

Aquele mês de Nisan seria especial, aquela seria uma páscoa excepcional, a última que Jesus realizaria, preparando a união porvindoura e definitiva, que somente ocorreria nos dias da Imortalidade, nos limites longínquos além das balizas da vida física, no Reino de Deus...


Narram os escritores da Boa-nova (Mateus 26:17-36 Marcos 14:12-31 Lucas 22:7-30 João 13:1-35) que os discípulos se acercaram e perguntaram-Lhe como e onde celebrariam a páscoa, ao que Jesus, destacando Pedro e João, respondeu, afetuoso:

— Ao entrardes na cidade, encontrareis um homem trazendo um cântaro de água; segui-o até a casa em que ele entrar e dizei ao dono da casa: o Mestre manda perguntar-vos: onde é o aposento em que há de comer a Páscoa com os seus discípulos? Ele vos mostrará um espaçoso cenáculo mobiliado; ali fazei os preparativos.

Não seria fácil de identificar uma mulher a carregar água, tarefa, naquele tempo, eminentemente feminina. Um homem, todavia, despertaria atenção, conforme ocorreu.

Seguindo o estranho, consoante a determinação, adentraram-se pela ampla e confortável vivenda, narrando com espontaneidade ao seu proprietário o de que se encontravam incumbidos.

Indubitavelmente, aquele homem era um dos muitos discretos amigos do Mestre, que os havia em quantidade, embora receassem confessá-lo publicamente.

Recebendo a honrosa solicitação, encheu-se de alegria como se se repletasse de indizível, intraduzível felicidade.

Seria o maior dia da sua vida, a luz inundaria sua casa, jamais se apagando.

Ele e os doze, acompanhados pela Mãe Santíssima que se encontrava também em Jerusalém, deram início, ao cair da tarde, à cerimônia que transcorria entre sorrisos e expectativas de crescente felicidade.

A festividade tradicional se fazia complexa, ritualística.

Dever-se-ia partir o pão ázimo e embebê-lo em líquido, igualmente amargo antes de comê-lo.

Evocavam-se as dores transatas que permaneciam vivas no orgulho nacional. Iodas as libações eram previstas, acompanhadas de cantos e exclamações especiais. Desde a preparação do cordeiro, que não deveria ter osso algum quebrado e seria cozido em fogo vivo, preso numa vara de romãzeira; as libações, que se constituíam de dois terços de água para um de vinho; o número de vezes em que se sorveriam as taças; palavras e canções estavam estabelecidas na Torá, e o Talmude nos dá notícias.

Jesus, que estava situado acima dos aparatos e ritos humanos, para que se cumprissem os dispositivos legais e proféticos, permitia-se submeter a tais determinações, porque "não viera para destruir a Lei"...

A alegria se generaliza enquanto a noite tomba sem maior preâmbulo, salpicada de cristais luminosos no alto, em engastes de prata.

O Mestre, que por várias vezes anunciara a paixão e acabara de dar as últimas instruções, desvestiu a indumentária larga e, cingindo-se de uma toalha, tomou de uma bacia com água, acercou-se dos companheiros e começou a lavar-lhes os pés e a enxugá-los com o tecido com que se atava.

A suprema humildade em excelsa lição de amor seria a expressão final da renúncia de si mesmo.

Não se davam conta os amigos daquele ensinamento ímpar.


Chegando a Simão Pedro, perguntou-lhe este:

— Senhor, tu a mim me lavas os pés?


Respondeu-lhe Jesus:

— O que eu faço, tu não o sabes agora, mas entendê-lo-ás mais tarde.

Disse-lhe Pedro: Não me lavarás os pés jamais.

Replicou-lhe Jesus: Se eu não te lavar, não terás parte comigo.


Há um momento de profundo silêncio cheio de expectação. O discípulo desperta e exclama com emoção incontida:

— Senhor, não somente os meus pés, mas também as mãos, a cabeça.

As lágrimas saltam-lhe dos olhos e ele estua de desconhecida felicidade, sem se aperceber dos momentos que logo advirão.

A inesquecível mensagem do ato singular e único ergue os companheiros ao clímax da ternura, e quando o Rabi volve à mesa, ei-los que, já esquecidos da magnitude do feito, se põem a disputar a primazia de quem, dentre eles, é o mais amado, anelando por estar mais próximo, mais junto ao seu coração...

Perpassa a tristeza pela face afável do Mestre, que não pode sopitar as advertências. São as últimas instruções: a hora chega...

— Qual é o maior: quem está à mesa ou quem serve? Mas eu estou no meio de vós como quem serve. "O que entre vós desejar ser o maior, faça-se o menor, o servo de todos, e aquele que manda seja como o que serve. " Ele fizera isso há pouco: servira-os na condição de humilde fâmulo, dedicado e silencioso.

O repasto, todavia, prossegue. As lâmpadas de cor e luminosidade avermelhada contrastam com o azul-escuro da noite coruscante, agora em exuberância de luar.

Recitam-se os salmos, conforme a tradição.

— Compreendeis o que vos tenho feito? —, interroga-os com dúlcida e dorida voz.

— Vós me chamais de Mestre e Senhor, e dizeis bem, porque eu o sou. Se eu, pois, sendo Senhor e Mestre vos lavei os pés, também vós vos deveis lavar os pés uns dos outros, porque vos dei exemplo, a fim de que, como eu fiz, assim façais vós, também.


Sutis aragens penetram o cenáculo. Invisível coral canta uma sublime rapsódia. A sala amplia as suas dimensões ao infinito. Num solo dantes jamais ouvido, Jesus eleva a voz e define:

— Em verdade, em verdade vos digo que o servo não é maior do que o seu senhor, nem o enviado maior do que aquele que o enviou.

Se sabeis estas coisas, bem-aventurados sois se as praticardes.

Os tons da musicalidade caem, morrem. Faz-se um demorado silêncio.

Novamente Ele exclama, adverte e sofre. E uma patética.

— Não falo de todos vós - explica, triste. — Eu conheço aqueles que escolhi, mas para que se cumpra a Escritura, aquele que come o meu pão, levantou contra mim o seu calcanhar. Desde já vos digo, antes que suceda, para que, ao suceder, vós creiais que eu sou.

A perplexidade se estampa em todos os semblantes. "De que falará o Senhor? Quem entre eles se atreveria? " —, indagam, mudos, ao cérebro e ao coração.

— Em verdade, em verdade, vos digo — prossegue em música de balada. — Quem me recebe a mim, recebe aquele que me enviou...

Um de vós me há de trair! ...


Alguém, tocado na sensibilidade e surpresa, pergunta:

— Como conhecê-lo?

João, que apoia a cabeça no seu tórax, reinquire com doçura, a meia-voz.

— E aquele a quem eu der o pedaço de pão molhado.

A lenda e os hábitos ancestrais fizeram que, em Israel, se expressassem, à mesa, afeição ou desrespeito, consideração ou indiferença.

Como e a quem servir, expressam a posição em que é tido o comensal.

Nesse momento, o filho de Simão Iscariotes, afoito, tomou a côdea de pão das mãos de Jesus.

— O que fazes, faze-o depressa - alude o Cordeiro de Deus.

Ninguém, todavia, percebe.

Os momentos máximos da vida não raro passam despercebidos.

O atormentado filho da agonia, sem poder compreender a grandeza e o alcance profundo do instante, segue...

A ceia continua, ritmicamente, os corações se entremostram, a psicosfera se modifica, o ar da noite balsamiza as expectativas.


O Senhor se dilata em carinho e, partindo o pão, exclama:

— Tomai, este é o meu corpo...

Há um infinito de tempo, naquele rápido tempo. Ouve-se a melodia do silêncio, e a canção da saudade agora modula as primeiras notas nos ouvidos dos companheiros que, então, Lhe percebem a palidez da face, a tristeza infinita.


Tomando o cálice, rende graças, dá-o a todos a beberem e elucida:

— Este é o meu sangue, o sangue da aliança que é derramado por muitos... Nunca mais beber ei do fruto da videira, até aquele dia em que hei de beber de novo no Reino de Deus.

Abençoa o momento de alta majestade.

Eles, sem o desejarem, canhestros, revivem pela mente os instantes inapagáveis da Galileia longínqua na distância e próxima na memória... Aquele entardecer de fogo e de beleza servia de moldura para o Pastor chamar, atender e reunir as ovelhas.

Os olhos estão pejados de lágrimas, túmidos os peitos de ansiedade e inquietação.

— Fazei isto em memória de mim.

O canto está culminando. Os últimos acordes da sinfonia que chega ao grande final estrugem em sons elevados...

Levantaram-se e seguiram para o Getsêmani...


* * *

Nunca deverão esquecer a fraternidade, a união, o entendimento.

Tudo que houvesse fora das paredes daquele cenáculo, que jamais os separasse, antes lhes ofertando forças para o prosseguimento.

É certo que Judas não participara da união final, não ouvira as recomendações últimas.

A precipitação arrancara-o para o desespero, para a longa estrada de intérminas e futuras aflições...

Na ampulheta dos tempos, a refeição pascal, sem atavios nem ritualísticas, seria um traço de união entre as criaturas que se amassem à luz do Cristo - todas as criaturas...

Viriam as aflições, as perseguições infamantes, as provações irrecusáveis e cruentas, chamando-os aos sublimes testemunhos de amor. A comunhão pascal, a divisão do pão, significariam doação dos bens pessoais a favor de todos, a distribuição dos excessos para as alegrias gerais e a contribuição de amor para amenizar as dores dos corações sofridos, em memória de Jesus.

A Páscoa é evocação de liberdade.

O cordeiro simboliza a submissão e a renúncia impregnando os corações.

Cingindo-se de uma toalha, Ele lavou os pés dos discípulos a fim de que eles algo tivessem a ver com Ele...

A toalha da cooperação e a água da caridade em que se fundem e se limpam todas as sujidades da alma, e as mãos do amor em união renovadora.


* * *

O cenáculo se erguia em larga vivenda na cidade alta, perto de Tiropéon, donde se via a torre Antônia, vigilante, a observar a cidade com luzes bruxuleantes, naquela noite especial.

A arquitetura irregular do templo e a muralha abaixo, em largas pedras negras acinzentadas, clareadas pelo plenilúnio - são a paisagem da inesquecível noite.

Era abril, quinta-feira, 13 ou 14 (Segundo anotações extraídas do Evangelho de João e pesquisas especializadas, conclui-se que as datas reais são 5 e 6 de abril, respectivamente, para a Ceia e a crucificação), pouco importa a exatidão da data, quando se realizou a comunhão pascal. "Fazei isto em memória de mim. " A Natureza se alonga num hausto de eternidade.

Na treva das sinuosidades humanas há conspiração.

Dentro em pouco, entre os ciprestes do Getsêmani, há o sono dos discípulos invigilantes, o beijo da traição, o arremedo de defesa desnecessária, a prisão, os passos para o julgamento arbitrário, a morte... e a glória da ressurreição!

Tomando de uma toalha, cingiu-se, e, lavando os pés dos discípulos, ergueu-se à glória solar.