Quando Voltar a Primavera

CAPÍTULO 3

BRANDOS E PACÍFICOS



A azáfama do dia cedera lugar à terna e suave tranquilidade. As atividades fatigantes alongaram-se até as primeiras horas da noite, que se recamara de astros alvinitentes. Os últimos corações atendidos, à margem do lago, após a formosa pregação do entardecer, demandaram os seus sítios, facultando que eles, a seu turno, volvessem à casa de Simão.


Depois do repasto simples, o Mestre acercou-se da praia em companhia do apóstolo afeiçoado e, porque o percebesse tristonho, interrogou com amabilidade:

— Que aflição tisna a serenidade da tua face, Simão, encobrindo-a com o véu de singular tristeza?

Havia, na indagação, carinhoso interesse e bondade indisfarçável.


Convidado diretamente à conversação renovadora, o velho pescador contestou com expressiva entonação de voz, na qual se destacava a modulação da amargura:

— Cansaço, Senhor. Sinto-me muitas vezes descoroçoado, no ministério abraçado... Não fosse por Ti...

Não conseguiu concluir a frase. As lágrimas represadas irromperam, afogando o trabalhador devotado em penosa agonia.


E como o silêncio se fizesse espontâneo, ante o oscular da noite que os acalentava em festival de esperança, o companheiro, sentindo-se compreendido, e logo passado o volume inicial da emotividade descontrolada, prosseguiu:

— Não ignoro a própria inferioridade e sei que o Teu amor me convocou à Boa-nova a fim de que me renovasse para a luz e pudesse crescer na direção do amor de Nosso Pai. Todavia, deparo-me a cada instante com dificuldades que me dilaceram os sentimentos, inquietando-me a alma.


Ante o olhar dúlcido e interrogativo do Amigo discreto, adiu:

— É verdade que devemos perdoar todas as ofensas, no entanto, como suportar a agressividade que nos fere, quando pretende admoestar e humilhar, quando se promete ajudar?

— Guardando a paz no coração — redarguiu o Divino Benfeitor.

—Todavia — revidou o discípulo sensibilizado — como conservar a paz, estando sitiado pela hipocrisia de uns, pela suspeita pertinaz de outros, sob o olhar severo das pessoas que sabemos em pior situação do que a nossa?

— Mantendo a brandura no julgamento - respondeu o Senhor.

— Concordo que a mansuetude é medicamento eficaz — retrucou Pedro —, não obstante, não seria de esperarmos que os companheiros, afeiçoados à luz nova, também a exercitassem por sua vez? Quando a dúvida sobre nossas atitudes parte de estranhos, quando a suspeição vem de fora da grei, quando a agressividade nos chega dos inimigos da fé, podemos manter a brandura e a paz íntimas. Entretanto, sofrer as dificuldades apresentadas por aqueles que nos dizem amar, tomando parte no banquete do Evangelho, convém considerarmos ser muito mais difícil e grave cometimento...


Percebendo a angústia que se apossara do servo querido, o Mestre, paciente e judicioso, explicou:

— Antes de esperarmos atitudes salutares do próximo, cabe-nos o dever de oferecê-las. Porque alguém seja enfermo pertinaz e recalcitrante no erro, impedindo que a luz renovadora do bem o penetre e sare, não nos podemos permitir o seu contágio danoso, nem nos é lícito cercear-lhe a oportunidade de buscar a saúde.

Certamente, dói-nos mais a impiedade de julgamento que parte do amigo e fere mais a descortesia de quem nos é conhecido. Ignoramos, porém, o seu grau de padecimento interior e a sua situação tormentosa. Nem todos os que nos abraçam fazem-no por amor, bem o sabemos... Há os que, incapazes de amar, duvidam do amor do próximo; os que, mantendo vida e atitudes dúbias, descreem da retidão alheia; os que, tropeçando e tombando, descuram de melhorar a estrada para os que vêm atrás... Necessário compreendê-los todos e amá-los, sem exigir que sejam melhores ou piores, convivendo sob o bombardeio do azedume deles sem nos tornarmos displicentes para com os nossos deveres ou amargos em relação aos outros...

— Ante a impossibilidade de suportá-los - sindicou o pescador, com sinceridade —, sem correr o perigo de os detestar, não seria melhor que os evitássemos, distanciando-nos deles?

— Não, Simão — esclareceu Jesus. — Deixar o enfermo entregue a si mesmo, será condená-lo à morte; abandonar o revel, significa torná-lo pior... Antes de outra atitude é necessário que nos pacifiquemos intimamente, a fim de que a brandura se exteriorize do nosso coração em forma de bênção. "Na legislação da montanha foi estabelecido que são bem-aventurados os brandos e pacíficos... A bem-aventurança é o galardão maior. Para consegui-lo são indispensáveis o sacrifício, a renúncia, a vitória sobre o amor-próprio, o triunfo sobre as paixões.

"Amar os bons é dever de retribuição, mas servir e amar os que nos menosprezam e de nós duvidam é caridade para eles e felicidade para nós próprios. " Como o céu continuasse em cintilações incomparáveis e o canto do mar embalasse a noite em triunfo, o Mestre silenciou como a aspirar as blandícias da Natureza.

O discípulo, desanuviado e confiante, com os olhos em fulgurações, pensando nos júbilos futuros do Evangelho, repetiu quase num monólogo, recordando o Sermão da Montanha: "Bem-aventurados os que são brandos, porque possuirão a Terra. " "Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus. " E deixou-se penetrar pela tranquilidade, em clima de elevadas reflexões.