Num gesto nobre, Aniceto pediu a Ismália que executasse algum motivo musical de sua elevada Esfera.
A esposa de Alfredo não se fez rogada. Com extrema bondade, sentou-se ao órgão, falando, gentil:
— Ofereço a melodia ao nosso caro Aniceto.
E, ante nossa admiração comovida, começou a tocar maravilhosamente. Logo às primeiras notas, alguma coisa me arrebatava ao sublime. Estávamos extasiados, silenciosos. A melodia, tecida em misteriosa beleza, inundava-nos o espírito em torrentes de harmonia divina. Penetrava-me o coração um campo de vibrações suavíssimas, quando fui surpreendido por percepções absolutamente inesperadas. Com assombro indefinível, reparei que a esposa de Alfredo não cantava, mas no seio caricioso da música havia uma prece que atingia o sublime — oração que eu não escutava com os ouvidos mas recebia em cheio na alma, através de vibrações sutis, como se o melodioso som estivesse impregnado do verbo silencioso e criador. As notas de louvor alcançavam-me o âmago do espírito, arrancando-me lágrimas de intraduzível emotividade:
“Ó Senhor Supremo de Todos os Mundos E de Todos os Seres, Recebe, Senhor, O nosso agradecimento De filhos devedores do teu amor! Dá-nos tua bênção. Ampara-nos a esperança, Ajuda-nos o ideal Na estrada imensa da vida… Seja para o teu coração, Cada dia, Nosso primeiro pensamento de amor! Seja para tua bondade Nossa alegria de viver!… Pai de amor infinito Dá-nos tua mão generosa e santa. Longo é o caminho. Grande o nosso débito, Mas inesgotável é a nossa esperança. Pai Amado, Somos as tuas criaturas, Raios divinos De tua Divina 1nteligência. Ensina-nos a descobrir Os tesouros imensos Que guardaste Nas profundezas de nossa vida. Auxilia-nos a acender A lâmpada sublime Da Sublime Procura! Senhor, Caminhamos contigo Na eternidade!… Em Ti nos movemos para sempre. Abençoa-nos a senda, Indica-nos a Sagrada Realização. E que a glória eterna Seja em teu eterno trono!… Resplandeça contigo a Infinita Luz, Mane em teu coração misericordioso A Soberana Fonte do Amor, Cante em tua Criação Infinita O sopro divino da eternidade. Seja a tua bênção Claridade aos nossos olhos, Harmonia ao nosso ouvido, Movimento às nossas mãos, Impulso aos nossos pés. No amor sublime da Terra e dos Céus!… Na beleza de todas as vidas, Na progressão de todas as coisas, Na voz de todos os seres, Glorificado sejas para sempre, Senhor.” |
Que melodia era aquela que se ouvia através de sons inarticulados? Não pude conter as lágrimas abundantes. Cecília comovera-nos a sensibilidade, lembrando as harmonias terrenas e os afetos humanos. Ismália, no entanto, arrebatava-nos o Espírito, elevando-nos ao Supremo Pai. Nunca ouvira oração de louvor como aquela! Além disso, a esposa de Alfredo glorificava o Senhor de maneira diferente, inexprimível na linguagem humana. A prece tocara-me as recônditas fibras do coração e reconhecia que nunca meditara na grandeza divina, como naquele instante em que uma alma santificada falava de Deus, com a maravilha de suas riquezas espirituais.
E não era só eu a chorar como criança. Aniceto enxugava os olhos, de maneira discreta, e algumas senhoras levavam o lenço ao rosto.
Compreendi que a oração terminara, porque a música mudou de expressão. O caráter heroico cedeu lugar a lirismo encantador. Experimentando a profunda serenidade ambiente, vi que luzes prodigiosas jorravam do Alto sobre a fronte de Ismália, envolvendo-a num arco irisado de efeito magnético e, com admiração e enlevo, observei que belas flores azuis partiam do coração da musicista, espalhando-se sobre nós. Desfaziam-se como se feitas de cariciosa bruma anilada, ao tocar-nos, de leve, enchendo-nos de profunda alegria. A maior parte caía sobre Aniceto, fazendo-nos recordar as palavras amigas da dedicatória. Impressionavam-me profundamente aquelas corolas fluídicas, de sublime azul-celeste, multiplicando-se, sem cessar, no ambiente, e penetrando-nos o coração como pétalas constituídas apenas de colorido perfume. Sentia-me tão alegre, experimentava tamanho bom ânimo que não conseguiria traduzir as emoções do momento.
Mais alguns minutos e Ismália terminou a magistral melodia.
A esposa do administrador desceu até nós, coroada de intensa luz.
Alfredo avançou, beijando-a no rosto, ao mesmo tempo que Aniceto lhe estendia a destra, agradecido.
— Há muito tempo não ouvia músicas tão sublimes como as desta noite, — exclamou nosso orientador, sorrindo. Cecília falou-nos do sublime amor terrestre, Ismália arrebatou-nos ao divino amor celestial. Ideia feliz a de permanecermos no Posto! Fomos igualmente socorridos pela luz da amizade, que nos revigorou o bom ânimo!
Aproximaram-se os Bacelares, eminentemente comovidos.
— Que maravilhosas flores nos deste, querida amiga! — Disse a mãezinha de Cecília, abraçando a esposa de Alfredo.
— Voltaremos ao trabalho, repletos de energia nova! — Acrescentou o senhor Bacelar, sorridente.
A extensa sala estava cheia de notas de reconhecimento e júbilo sincero. A melodia de Ismália constituíra singular presente do Céu. A alegria e o bom ânimo transpiravam em todos os rostos.
Observando que Aniceto se retirava para um canto do salão, procurei-o, ansioso. Desejava esclarecer o fenômeno da prece sem palavras, das harmonias, das luzes e das flores. Antes, porém, das interpelações do aprendiz, o orientador amigo sorriu, amável, e explicou:
— Conheço a sua sede, André. Não precisa perguntar. Impressionou-se você com a grandeza espiritual da nobre companheira do nosso amigo. Não precisarei alinhar esclarecimentos. Recorda-se de Ana, a infeliz criatura que dorme nos pavilhões, entre pesadelos cruéis? Lembra-se de Paulo, o caluniador? Não os viu carregando pesados fardos mentais? Cada um de nós traz, nos caminhos da vida, os arquivos de si mesmo. Enquanto os maus exibem o inferno que criaram para o íntimo, os bons revelam o paraíso que edificaram no próprio coração. Ismália já amontoou muitos tesouros que as traças não roem. (Mt