A paisagem de sofrimento, desdobrada aos nossos olhos, lembrava-me o ambiente das Câmaras de Retificação.
Entendeu-se Aniceto com Isidoro e falou, resoluto:
— Mãos à obra! Distribuamos alguns passes de reconforto!
— Mas, — objetei, — estarei preparado para trabalho dessa natureza?
— Porque não? — Indagou o instrutor em voz firme, — toda competência e especialização no mundo, nos setores de serviço, constituem o desenvolvimento da boa vontade. Bastam o sincero propósito de cooperação e a noção de responsabilidade para que sejamos iniciados, com êxito, em qualquer trabalho novo.
Semelhantes afirmativas estimularam-me o coração.
Recordei Narcisa, a dedicada irmã dos infortunados, que permanecia, em “Nosso Lar”, quase sempre sem repouso, como prisioneira do sacrifício. Pareceu-me, ainda, ouvir-lhe a voz fraterna e carinhosa — “André, meu amigo, nunca te negues, quanto possível, a auxiliar os que sofrem. Ao pé dos enfermos, não olvides que o melhor remédio é a renovação da esperança; se encontrares os falidos e os derrotados da sorte, fala-lhes do divino ensejo do futuro; se fores procurado, algum dia, pelos Espíritos desviados e criminosos, não profiras palavras de maldição. Anima, eleva, educa, desperta, sem ferir os que ainda dormem. Deus opera maravilhas por intermédio do trabalho de boa vontade!” Sem mais hesitação, dispus-me ao serviço.
Aniceto designou-me um grupo de seis enfermos espirituais, acentuando:
— Aplique seus recursos, André. Com a nossa colaboração, os amigos em tarefa nesta casa poderão atender a responsabilidades diferentes e também imperiosas.
Os mais apagados trabalhadores do bem rejubilem-se pela exemplificação nas lutas comuns e edifiquem-se no Senhor Jesus, porque nenhuma de suas manifestações fica perdida no espaço e no tempo. Naquele instante em que fora chamado a prestar auxílios reais, eu não recorria aos meus cabedais científicos, não me reportava tão somente à técnica da medicina oficial, a que me filiara no mundo, mas recordava aquela Narcisa humilde e simples, das Câmaras de Retificação, () enfermeira devotada e carinhosa, que conseguia muito mais com amor do que com medicações.
Aproximei-me duma senhora profundamente abatida, lembrando o exemplo da generosa amiga de “Nosso Lar”, entendendo que não deveria socorrer utilizando apenas a firmeza e a energia, mas também a ternura e a compreensão.
— Minha irmã, — disse, procurando captar-lhe a confiança, — vamos ao passe reconfortador.
— Ai! Ai! — Respondeu a interpelada, — nada vejo, nada vejo! Ah! O tracoma! Infeliz que sou! E me falam em morte, em vida diferente… Como recuperar a vista?! Quero ver, quero ver!…
— Calma, — respondi, encorajado, — não confia no Poder de Jesus? Ele continua curando cegos, iluminando-nos o caminho, guiando-nos os passos!
Somente mais tarde lembrei que, naquele instante, olvidara a curiosidade doentia, não pensei na impressão deixada pelo tracoma naquele organismo espiritual, nem me preocupei com a expressão propriamente científica do fenômeno, vendo, apenas, à minha frente, uma irmã sofredora e necessitada. E, à medida que me dispunha a observar a prática do amor fraternal, uma claridade diferente começou a iluminar e a aquecer-me a fronte.
Lembrando a influência divina de Jesus, iniciei o passe de alívio sobre os olhos da pobre mulher, reparando que enorme placa de sombra lhe pesava na fronte. Pronunciando palavras de animação, às quais ligava a melhor essência de minhas intenções, concentrei minhas possibilidades magnéticas de auxílio nessa zona perturbada. Dentro de alguns instantes, a desencarnada desferiu um grito de espanto.
— Vejo! Vejo! — Exclamou, entre o assombro e a alegria. — Grande Deus! Grande Deus!
E ajoelhando-se, num movimento instintivo para render graças, dirigia-me a palavra, comovidamente:
— Quem sois vós, emissário do bem?
Dominava-me profunda emoção, que não conseguia sofrear. Confundia-me a bondade do Eterno. Quem era eu para curar alguém? Mas a alegria daquela entidade, libertada das trevas, afirmava a ocorrência, na qual não queria acreditar. A luz daquela dádiva como que mostrava mais fortemente o fundo escuro de minhas imperfeições individuais e o pranto inundou-me as faces, sem que pudesse retê-lo nos recônditos mananciais do coração. Enquanto a enferma espiritual se desfazia em lágrimas de louvor, também eu me absorvia numa onda de pensamentos novos. O acontecimento surpreendia-me. Desejava socorrer o doente próximo e, contudo, estava enlaçado em singular deslumbramento íntimo. Aniceto, porém, aproximou-se delicadamente e falou em voz baixa:
— André, a excessiva contemplação dos resultados pode prejudicar o trabalhador. Em ocasiões como esta, a vaidade costuma acordar dentro de nós, fazendo-nos esquecer o Senhor. Não olvides que todo o bem procede d’Ele, que é a luz de nossos corações. Somos seus instrumentos nas tarefas de amor. O servo fiel não é aquele que se inquieta pelos resultados, nem o que permanece enlevado na contemplação deles, mas justamente o que cumpre a vontade divina do Senhor e passa adiante.
Aquelas palavras não poderiam ser mais significativas. O generoso mentor voltou ao serviço a que se entregara, junto de outros irmãos, e, valendo-me do amoroso aviso, dirigi-me à reconhecida senhora, acentuando:
— Minha amiga, agradeça a Jesus e não a mim, que sou apenas obscuro servidor. Quanto ao mais, não se impressione em demasia com a visão dos aspectos exteriores; volte o poder visual para dentro de si mesma, para que possa consagrar ao Senhor da Vida os sublimes dons da visão.
Notei que a ouvinte se surpreendia com as minhas palavras, que lhe pareceram, talvez, inoportunas e transcendentes, mas, novamente firme na compreensão do dever, acerquei-me do enfermo próximo. Tratava-se dum infeliz irmão que falecera na Gamboa, vitimado pelo câncer. Toda a região facial apresentava-se com horrífico aspecto. Apliquei os passes de reconforto, ministrando pensamentos e palavras de bom ânimo, e reparei que o pobrezinho se sentia tomado de considerável melhora. Prometi-lhe interesse amigo, a fim de internar-se em alguma casa espiritual de tratamento, recomendando que preparasse a vida mental para colher semelhante benefício, oportunamente. Em seguida, atendi a dois ex-tuberculosos do Encantado, a uma senhora que desencarnara em Piedade, em consequência de um tumor maligno, e a um rapaz de Olaria, que se desprendera num choque operatório. Nenhum destes quatro últimos, contudo, manifestou qualquer alívio. Persistiam as mesmas indisposições orgânicas, os mesmos fenômenos psíquicos de sofrimento.
Terminada a tarefa que me fora cometida, reuni-me ao nosso instrutor e Vicente, que me esperavam a um canto da sala.
— As atividades de assistência, — exclamou Aniceto, cuidadoso, — se processam conforme observam aqui. Alguns se sentem curados, outros acusam melhoras, e a maioria parece continuar impermeável ao serviço de auxílio. O que nos deve interessar, todavia, é a semeadura do bem. A germinação, o desenvolvimento, a flor e o fruto pertencem ao Senhor.
Vicente, que se mostrava fortemente impressionado, observou:
— O número de entidades perturbadas espanta. Vemo-las, em diversos graus de desequilíbrio, desde “Nosso Lar” até a Crosta.
Aniceto sorriu e falou em tom grave:
— Devemos esmagadora percentagem desses padecimentos à falta de educação religiosa. Não me refiro, porém, àquela que vem do sacerdócio ou que parte da boca de uma criatura para os ouvidos de outra. Refiro-me à educação religiosa, íntima e profunda, que o homem nega sistematicamente a si mesmo.
[ Trata-se de um distrito da cidade do Rio de Janeiro.]
[; Piedade, Olaria: distritos da cidade do Rio de Janeiro.]
[Os capítulos do n.° 43 ao 48, dizem respeito às observações e estudos efetuados por André Luiz em uma reunião de trabalhos espirituais na residência de Dona 1sabel.]