Os mensageiros

Capítulo XXXI

Cecília ao órgão



Poucas vezes, no Círculo carnal, tivera o prazer de assistir a reunião tão seleta.

Todos os lustres estavam magnificamente acesos e, lá fora, as grandes árvores, docemente agitadas pelo vento brando, pareciam refletir o clarão lunar. Pares graciosos passeavam ao longo da varanda e das escadarias extensas. O castelo enchera-se de alegria, com a crescente multiplicação de convidados. O administrador mostrava-se orgulhoso de confraternizar com os colaboradores diretos da sua obra, na recepção condigna aos amigos da colônia próxima. O júbilo transparecia em todos os rostos, e eu, observando a beleza do espetáculo, meditava na ventura da vida social, no ambiente daqueles que começavam a compreender e praticar o “amai-vos uns aos outros”, (Jo 15:12) distanciados da hipocrisia e das convenções aviltantes.

Conversávamos, animadamente, quando Alfredo nos convidou para o Salão de Música.

Houve geral contentamento. A senhora Bacelar, dando o braço à nobre Ismália, parecia encantada com a lembrança.

Dirigimo-nos para o grande recinto, prodigiosamente iluminado por luzes de um azul doce e brilhante. Deliciosa música embalava-nos a alma. Observei, então, que um coro de pequenos musicantes executava harmoniosa peça, ladeando um grande órgão, algo diferente dos que conhecemos na Terra. Oitenta crianças, meninos e meninas, surgiam, ali, num quadro vivo, encantador. Cinquenta tangiam instrumentos de corda e trinta conservavam-se, graciosamente, em posição de canto. Executavam, com maravilhosa perfeição, uma linda barcarola que eu nunca ouvira no mundo.

Comovidíssimo, ouvi o administrador explicar:

— As crianças do Posto são as nossas flores vivas. Dão-nos perfume, encantamento, alegria, suavizando-nos todos os trabalhos.


Abeiramo-nos do órgão, sentando-nos todos em confortáveis poltronas.

Quando as crianças terminaram, sob aplausos calorosos 1smália pediu a Cecília executasse alguma coisa.

— Eu? — Disse a jovem, corando, — se a senhora vem das altas Esferas, onde a harmonia é santificada e pura, como poderei executar para os seus ouvidos?

— Não diga isso, Cecília, — tornou, sorridente, a generosa esposa do administrador, — a música elevada é sublime em toda parte. Vá, minha filha! Lembre-me o lar terreno nos dias mais belos!…

E, antes que a jovem Bacelar perguntasse qual a peça preferida, Ismália continuou:

— Os serviços musicais do Posto levam-me a recordar a velha Fazenda, quando voltava do Internato… Meus pais estimavam as composições europeias e, quase todas as noites, ensaiava ao piano..

E, fixando em Cecília os olhos úmidos e brilhantes, rematou:

— Sua mamãe deve lembrar comigo a música predileta de meu velho e carinhoso pai…

Notei que a senhora Bacelar disse alguma coisa à filha, em voz baixa, e vimos Cecília caminhar para o grande instrumento, sem hesitação. Com emoção indizível, ouvimo-la executar, magistralmente, a “Tocata e Fuga em Ré Menor”, de Bach, () acompanhada pelas crianças exultantes.

Fixei o rosto de Ismália, notando, pela luz do seu olhar, que seus pensamentos vagueavam longe, talvez em torno do antigo ninho doméstico. Vi-a enxugar as lágrimas discretas e abraçar Cecília carinhosamente, ao findar a execução.

— Agora, Cecília, cante alguma canção da própria alma! — Falou a nobre senhora com ternuras de mãe, — mostre-nos seu coração…

Os senhores Bacelar estavam satisfeitos e emocionados. Lia-se-lhes nos gestos o carinho com que acompanhavam os menores movimentos da filha.

A jovem sorriu, voltou ao teclado, mas permanecia, agora, fundamente transfigurada. Seu belo semblante parecia refletir alguma luz diferente, que vinha de mais alto. Começou a cantar, de maneira misteriosa e comovedora. A música parecia sair-lhe das profundezas do coração, mergulhando-nos em sublime emotividade. Procurei guardar as palavras da maravilhosa canção, mas seria impossível repeti-las integralmente no Círculo dos encarnados na Terra. A sombra da meia-noite não poderia traduzir o revérbero da aurora. Mas de algo me lembro, para registrar aqui, com a fidelidade de que é suscetível minha memória imperfeita.

Como se fora rodeada de claridades diversas daquela em que nos banhávamos, Cecília cantou com voz veludosa e cariciante:


“Guardei para os teus olhos

As estrelas brilhantes do céu calmo…


Guardei para tua alma

Todos os lírios puros dos caminhos!…

Amado meu, amado meu,

Como é longa a viagem entre escolhos

Neste oceano imenso da saudade,

Ao sublime luar da eternidade!…


Em vão, a fada Esperança

Acende a luz dentro de mim…

Porque te foste ao mundo, assim?!


Volta, amado!

Ainda mesmo

Que as tuas mãos estejam frias

E que teus pés sangrem de dor.


Trago comigo o bálsamo, a ternura,

Volta a mim,

Vem respirar, de novo, no jardim

Da imortal união!…


Curarei tuas chagas de amargura,

Dar-te-ei o roteiro para a estrada,

Amarei os que amas,

Para que me abençoes com o teu sorriso.

Volta, amado!

Esquece a dor e a sombra do passado,

Volta, de novo, ao nosso paraíso!…”


Quando desferiu as últimas notas, vi-lhe o semblante lavado em lágrimas, como se fora banhado em pérolas de luz. Observei que a senhora Bacelar, muitíssimo comovida, tocou de leve a mão de Ismália, e falou:

— Cecília nunca o esquece.

A esposa do administrador, mostrando-se extremamente sensibilizada, indagou:

— Não têm vocês novas notícias de Hermínio?

— O pobrezinho tem vivido de queda em queda, — esclareceu a nobre interlocutora, — e Cecília sabe que não poderá contar com ele, por muito tempo ainda, guardando, por esse motivo, muita mágoa íntima. Entretanto, nossa filha não desanima e trabalha, incessantemente, cheia de esperança.

Nesse momento, porém, a jovem regressava ao círculo familiar, enxugando os olhos.

A esposa de Alfredo abraçou-a e falou:

— Minhas felicitações! Não sabia que você progredira tanto na arte divina! E que bela canção!…

Cecília fez um gesto de timidez, beijou a mão da carinhosa amiga e retrucou:

— Perdoe-me, querida Ismália, meu coração permanece ainda muito ligado à Terra!…

Ismália, porém, de olhos úmidos e compreendendo-lhe o sofrimento íntimo, conchegou-a ao peito e murmurou:

— Devotar-se não é crime, minha boa Cecília. O amor é luz de Deus, ainda mesmo quando resplandeça no fundo do abismo.