Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1859

Capítulo XXXVI

Maio - O livro dos Espíritos entre os selvagens

Maio

Sabíamos que o Livro dos Espíritos tem leitores simpáticos em todas as partes do mundo, mas com certeza não teríamos suspeitado encontrá-lo entre os selvagens da América do Sul, não fosse uma carta que nos chegou de Lima, há poucos meses, cuja tradução integral nos pareceu interessante publicar, à vista do fato significativo que a mesma encerra e cujo alcance facilmente se compreende. Tem a carta um comentário, que dispensa qualquer reflexão de nossa parte. Excelentíssimo Senhor Allan Kardec.

Desculpai-me por não vos escrever em francês. Compreendo essa língua pela leitura, mas não a escrevo correta e inteligivelmente.

Há mais de dez anos visito com certa frequência os povos aborígines que habitam a encosta oriental dos Andes, nestas regiões americanas dos confins do Peru. Vosso Livro dos Espíritos, que adquiri numa viagem a Lima, acompanha-me nestas solidões. Não vos admireis que eu diga tê-lo lido com avidez e que o releio continuamente. Também não viria tomar o vosso tempo com tão pouco, se não fossem certas informações que vos devem interessar e se não desejasse receber os conselhos que espero de vossa bondade, pois não duvido que os vossos sentimentos humanos estejam de acordo com os sublimes princípios de vosso livro.

Estes povos que chamamos selvagens o são menos do que geralmente se pensa. Se se disser que moram em cabanas e não em palácios; que não conhecem as nossas artes e as nossas ciências; que ignoram a etiqueta da gente civilizada, serão verdadeiramente selvagens, mas em relação à inteligência, encontramos entre eles ideias de uma justeza admirável; uma grande finura de observação e sentimentos nobres e elevados. Compreendem com maravilhosa facilidade e têm um espírito incomparavelmente menos tardo que os camponeses da Europa. Desprezam aquilo que lhes parece inútil, em relação à simplicidade que lhes basta ao gênero de vida. A tradição de sua antiga independência é entre eles sempre viva, razão por que têm uma insuperável aversão aos seus conquistadores. Mas, se odeiam a raça em geral, ligam-se aos indivíduos que lhes inspiram uma confiança absoluta. É a essa confiança que devo a sorte de viver na sua intimidade. Quando me acho em seu meio, sinto-me em maior segurança do que em algumas grandes cidades. Quando os deixo, ficam tristes e me fazem prometer que voltarei. Quando volto, toda a tribo está em festa.

Estas explicações se faziam necessárias pelo seguinte: Disse-vos que tinha comigo o Livro dos Espíritos. Um dia inventei de traduzir algumas passagens e fiquei muito surpreendido de ver que eles o compreendiam melhor do que eu supunha, dadas certas observações muito judiciosas que faziam. Eis um exemplo.

A ideia de reviver na Terra lhes parece absolutamente natural. Um dia um deles me perguntou: Quando nós morrermos poderemos renascer entre os brancos?
─ Certamente, respondi.
─ Então tu podes ser um dos nossos parentes?
─ É possível.
─ Com certeza é por isto que és bom para conosco e nós te amamos.
─ Também é possível.
─ Então quando encontramos um branco não lhe devemos fazer mal, porque talvez seja um dos nossos irmãos.

Certamente vos admirais, como eu, de tal conclusão de um selvagem e do sentimento de fraternidade que nele brotou. Aliás, para eles não é nova a ideia dos Espíritos. Está em suas crenças e eles estão persuadidos de que é possível conversar com os parentes mortos, que nos vêm visitar. O importante é disso tirar partido para moralizá-los, e não creio que seja impossível, pois ainda não têm os vícios de nossa civilização.

É para isto que necessito dos vossos conselhos e da vossa experiência. A meu ver, não há razão para supor que só podemos influenciar as criaturas ignorantes falando-lhes aos sentidos. Penso, ao contrário, que essa seria apenas uma forma de mantê-las nessas ideias estreitas e de desenvolver-lhes a tendência à superstição.

Penso que o raciocínio, quando nos soubermos colocar no nível das inteligências, terá sempre uma influência mais duradoura. Aguardando a resposta com que, espero, me obsequiareis, recebei, etc.

DON FERNANDO GUERRERO