Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1861

Capítulo XXX

Maio - Palestras familiares de além-túmulo - O Dr. Glas

Maio

Nascido em Lião, morto a 21 de fevereiro de 1861, com 35 e 1/2 anos

O Dr. Glas era um espírita fervoroso. Sucumbiu a uma longa e dolorosa enfermidade, cujos sofrimentos só foram atenuados pela esperança que dá o Espiritismo. Sua vida laboriosa e acidentada por preocupações amargas e um acidente, inicialmente desconhecido, abreviaram-lhe a existência. Foi evocado a pedido de seu pai.

1. (Evocação). ─ Eis-me aqui.

2. ─ Teríamos prazer de nos comunicarmos convosco, inicialmente para condescender ao desejo do senhor vosso pai e de vossa esposa, e depois porque, à vista do estado dos vossos conhecimentos, esperamos deles tirar proveito para nós mesmos. ─ Desejo que esta comunicação seja uma consolação para os que me lamentam, e para vós, que me evocais, um assunto de estudos instrutivos.

3. ─ Parece que sucumbistes a uma doença cruel. Poderíeis dar-nos algumas explicações sobre a sua natureza e causa? ─ Minha doença ─ hoje vejo bem claramente ─ era toda moral e terminou por constranger dolorosamente meu corpo. Quanto a me alongar sobre os meus sofrimentos, ainda os tenho bem presentes para não esquecê-los. Um trabalho persistente, aliado a uma contínua agitação do cérebro, eis a verdadeira fonte do meu mal.

OBSERVAÇÃO: Esta resposta é confirmada pela seguinte passagem da carta de seu pai: “Sua vida laboriosa e acidentada por preocupações amargas e um acidente inicialmente desconhecido, abreviaram-lhe a existência.” Esta carta não tinha sido lida antes da evocação e nem o médium nem os assistentes conheciam o fato.

4. ─ Também parece que vossas crenças vos ajudaram a suportar o sofrimento com coragem, pelo que vos felicitamos. ─ Eu tinha em mim a consciência de uma vida melhor. Isto diz tudo.

5. ─ Essas crenças contribuíram para apressar o vosso desprendimento? Infinitamente, porque as ideias espiritualistas que se pode ter sobre a vida são, por assim dizer, as indulgências plenárias que afastam de vós, após a morte, toda influência terrena.

6. ─ Pedimos a fineza de nos descrever o mais exatamente possível a natureza da perturbação que experimentastes, sua duração e as sensações quando vos reconhecestes. ─ Eu tinha em mim, assim que morri, o perfeito conhecimento de mim mesmo e entrevia com calma aquilo que tantos outros temem com tanto pavor. Meu trespasse foi curto e a consciência de mim mesmo não mudou. Ignoro quanto tempo durou a perturbação, mas quando despertei, realmente estava morto.

7. ─ No momento em que vos reconhecestes, achaste-vos isolado? ─ Sim. Aliás, pelo coração eu estava ainda todo na Terra. Não vi imediatamente Espíritos em volta de mim, mas somente pouco a pouco.

8. ─ Que pensais dos vossos confrades que buscam, pela Ciência, provar aos homens que neles não há senão matéria e que somente o nada os aguarda? ─ Orgulho! Quando estiverem perto da morte, talvez os farão calar-se; é o que lhes almejo. Ah! Como dizia Lamennais há pouco, há duas Ciências, a do bem e a do mal. Eles têm a Ciência que vem dos homens, a do mal.

OBSERVAÇÃO: O Espírito faz alusão a uma comunicação que Lamennais acabara de dar momentos antes, prova de que não tinha esperado a evocação para vir à sessão.

9. ─ Estais frequentemente junto de vossa esposa, de vosso filho e de vosso pai? ─ Quase constantemente.

10. ─ O sentimento que experimentais vendo-os é diferente do que experimentáveis em vida quando estáveis junto deles? ─ A morte dá aos sentimentos, como às ideias, uma visão larga, mas cheia de esperanças que o homem não pode apreender na Terra. Eu os amo, mas os queria junto a mim. É sobretudo em vista das esperanças futuras que o Espírito deve ter coragem e sangue-frio.

11. ─ Estando aqui, podeis vê-los em casa sem esforço? ─ Oh! Perfeitamente.

OBSERVAÇÃO: Um Espírito inferior não o poderia. Apenas os que têm certa elevação podem ver simultaneamente pontos diferentes. Os outros estão ainda muito no terra-a-terra. Lendo esta resposta, sem dúvida certas pessoas dirão que era uma boa ocasião de controle; que se deveria ter perguntado ao Espírito o que faziam os seus parentes nesse momento e verificar se era exato. Com que objetivo tê-lo-íamos feito? Para nos assegurarmos de que era realmente um Espírito que nos falava? Mas se não fosse um Espírito, é que o médium nos enganava. Ora, há muitos anos esse médium dá o seu concurso à Sociedade e jamais tivemos ocasião de suspeitar de sua boa-fé. Se o tivéssemos feito, como prova de identidade, não nos teria valido grande coisa, porque um Espírito enganador teria podido sabê-lo, tanto quanto o Espírito verdadeiro. Assim, a questão teria entrado na categoria das perguntas de curiosidade e de prova, que os Espíritos sérios desprezam e às quais jamais respondem. Como fato, sabemos por experiência que isto é possível, mas sabemos também que quando um Espírito quer entrar em certos detalhes, faz isso espontaneamente, se o julgar útil, e não para satisfazer a um capricho.

12. ─ Fazeis distinção entre o vosso espírito e o vosso perispírito? Qual a diferença que estabeleceis entre as duas coisas? Penso, logo sinto e tenho uma alma, como disse um filósofo. Não sei mais que ele a respeito. Quanto ao perispírito, é uma forma, como sabeis, fluídica e natural; mas buscar a alma é querer buscar o absoluto espiritual.

13. ─ Credes que a faculdade de pensar reside no perispírito? Numa palavra, que a alma e o perispírito são uma só e mesma coisa? ─ É absolutamente como se perguntásseis se o pensamento reside no vosso corpo. Um se vê, o outro se sente e se concebe.

14. ─ Assim, não sois um ser vago e indefinido, mas um ser limitado e circunscrito? ─ Limitado, sim; mas rápido como o pensamento.

15. ─ Teríeis a bondade de precisar o lugar onde estais aqui? ─ À vossa esquerda e à direita do médium. NOTA: O Sr. Allan Kardec senta-se no lugar indicado pelo Espírito.

16. ─ Fostes obrigado a deixar o vosso lugar para mo ceder? ─ Absolutamente; nós passamos através de tudo, como tudo passa através de nós; é o corpo espiritual.

17. ─ Assim, estou mergulhado em vós? ─ Sim.

18. ─ Por que não vos sinto? ─ Porque os fluidos que compõem o perispírito são muito etéreos, não suficientemente materiais para vós. Mas pela prece, pela vontade, numa palavra, pela fé, os fluidos podem tornar-se mais ponderáveis e materiais, e mesmo afetar o tato, o que acontece nas manifestações físicas e é a conclusão deste mistério.

OBSERVAÇÃO: Suponhamos um raio luminoso penetrando num quarto escuro: pode-se atravessá-lo, nele mergulhar, sem lhe alterar a forma nem a natureza. Embora esse raio seja uma espécie de matéria, é tão sutil que não constitui obstáculo à passagem da matéria mais compacta. Dá-se o mesmo com uma coluna de fumaça ou de vapor que igualmente pode-se atravessar sem dificuldade. Apenas, como o vapor tem mais densidade, produzirá no corpo uma impressão que a luz não produz.

19. ─ Suponhamos que neste momento vos pudésseis tornar visível aos olhos da assembleia. Que efeito produziriam nossos dois corpos, assim, um dentro do outro? ─ O efeito que vós mesmos imaginais, naturalmente. Todo o vosso lado esquerdo seria menos visível que o lado direito; estaria num nevoeiro, no vapor do perispírito. O mesmo se daria no lado direito do médium.

20. ─ Suponhamos agora que vos pudésseis tornar não só visível, mas tangível, como acontece por vezes. Isto seria possível, conservando a situação em que estamos? ─ Forçosamente eu mudaria um pouco de lugar. Eu me construiria ao vosso lado.

21. ─ Há pouco, quando falei apenas da visibilidade, dissestes que estaríeis entre mim e o médium, o que indica teríeis mudado de lugar. Agora, para a tangibilidade, parece que vos afastaríeis ainda mais. Não seria possível tomardes as duas aparências conservando nossa primeira posição, eu ficando mergulhado em vós? ─ Não, absolutamente, pois respondo à pergunta. Eu me reconstruiria ao lado; não me posso solidificar naquela posição; não posso aí ficar a não ser que fique fluídico.

OBSERVAÇÃO: Desta explicação ressalta grave ensinamento. No estado normal, isto é, fluídico e invisível, o perispírito é perfeitamente penetrável à matéria sólida. No estado de visibilidade, já há um começo de condensação que o torna menos penetrável. No estado de tangibilidade, a condensação é completa e a penetrabilidade desaparece.

22. ─ Credes que um dia a Ciência chegue a submeter o perispírito à apreciação dos instrumentos, como o faz com os outros fluidos? ─ Perfeitamente. Não conheceis ainda senão a superfície da matéria; mas a finura, a essência da matéria só conhecereis pouco a pouco. A eletricidade e o magnetismo são caminhos certos.

23. ─ Com que outro fluido conhecido tem analogia o perispírito? ─ A luz, a eletricidade e o oxigênio.

24. ─ Há aqui uma pessoa que julga ter sido vosso camarada de colégio. Não a reconheceis? ─ Não a vejo. Não me lembro.

25. ─ É o Sr. Lucien B..., de Montbrison, que esteve convosco no colégio de Lyon. ─ Eu jamais pensaria em vos encontrar assim. Fiz sérios estudos na Terra, mas vos asseguro que meus estudos, como Espírito, são ainda mais sérios. Obrigado, mil vezes, por vossa boa lembrança.