Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1862

Capítulo V

Janeiro - Do sobrenatural - Pelo Sr. Guizot (2º artigo—Vide o nº de dezembro de 1861)

Janeiro

Em nosso último número publicamos o eloquente e notável capítulo do Sr. Guizot a propósito do sobrenatural, a respeito do qual nos propúnhamos fazer algumas observações críticas, que em nada diminuem a nossa admiração pelo ilustre escritor.

O Sr. Guizot acredita no sobrenatural. Sobre esse, como sobre muitos outros pontos de vista, importa nos entendamos quanto às palavras. Em sua acepção própria, sobrenatural significa o que está acima da Natureza, fora das leis da Natureza. O sobrenatural, propriamente dito, não está submetido a leis; é uma exceção, uma derrogação das leis que regem a Criação. Numa palavra, é sinônimo de milagre.

No sentido próprio, esses dois vocábulos passaram à linguagem figurada, servindo para designar tudo quanto seja extraordinário, surpreendente, insólito. De uma coisa que causa admiração, diz-se que é miraculosa, como se diz de uma grande extensão, que é incomensurável; de um grande número, que é incalculável ou de uma longa duração, que é eterna, muito embora, a rigor, possam ser medidas, calculadas e previsto um termo à última. Pela mesma razão qualifica-se de sobrenatural aquilo que à primeira vista parece sair dos limites do possível. O vulgo é sempre levado a tomar o vocábulo ao pé da letra naquilo que não compreende. Se por tal se entende tudo quanto se afaste das causas conhecidas, está bem; mas então o vocábulo não tem mais sentido preciso, porque aquilo que era sobrenatural ontem já não o é hoje. Quantas coisas, outrora como tal consideradas, não fez a Ciência entrarem no domínio das leis naturais!

Apesar dos progressos que temos feito, podemos vangloriar-nos de conhecer todos os segredos de Deus? Já nos disse a Natureza a última palavra sobre todas as coisas? Não temos desmentidos diários a essa orgulhosa pretensão? Se, pois, aquilo que ontem era sobrenatural hoje não o é, podemos logicamente inferir que o sobrenatural de hoje deixará de sê-lo amanhã. Para nós, tomamos o vocábulo sobrenatural no seu mais absoluto sentido próprio, isto é, para designar todo fenômeno contrário às leis da Natureza. O caráter do fato natural ou miraculoso é de ser excepcional. Desde que se repete, é porque está submetido a uma lei, conhecida ou não, e entra na ordem geral.

Se restringirmos a Natureza ao mundo material visível, é evidente que as coisas do mundo invisível serão sobrenaturais. Mas estando, também, o mundo invisível submetido a leis, parece-nos mais lógico definir a Natureza como o conjunto das obras da Criação, regidas pelas leis imutáveis da Divindade. Se, como o demonstra o Espiritismo, o mundo invisível é uma de suas forças, um dos poderes reagentes sobre a matéria, ele representa um papel importante em a Natureza. Por essa razão os fenômenos espíritas para nós nem são sobrenaturais, nem maravilhosos ou miraculosos. Daí se nota que longe de ampliar o círculo do maravilhoso, o Espiritismo tende a restringi-lo e fazê-lo desaparecer.

Dissemos que o Sr. Guizot acredita no sobrenatural, mas no sentido miraculoso, o que de modo algum implica na crença nos Espíritos e suas manifestações. Ora, desde que, para nós, os fenômenos espíritas nada têm de anormal, não se segue que, em determinados casos, Deus não venha derrogar as suas leis, de vez que é Todo Poderoso. Tê-lo-ia feito? Não é aqui o lugar de examinar o problema. Para tanto, fora necessário discutir, não o princípio, mas cada fato isoladamente. Ora, colocando-nos no ponto de vista do Sr. Guizot, isto é, da realidade dos fatos miraculosos, vamos tentar combater a consequência que daí ele tira, isto é, que a religião não é possível sem o sobrenatural e, ao contrário, provar que de seu sistema decorre o aniquilamento da religião.

O Sr. Guizot parte do princípio de que todas as religiões se fundam no sobrenatural. Isso é certo se entendermos como tal aquilo que se não compreende. Se, porém, remontarmos ao estado dos conhecimentos humanos na época da fundação de cada religião conhecida, veremos quão limitado era o saber humano em Astronomia, em Física, em Química, em Geologia, em Fisiologia, etc.

Se, nos tempos modernos, um bom número de fenômenos já perfeitamente conhecidos e explicados passam por maravilhosos, com mais forte razão assim deveria ser em tempos remotos. Acrescentemos que a linguagem figurada, simbólica e alegórica, em uso entre todos os povos do Oriente, naturalmente se prestava às ficções, cujo verdadeiro sentido a ignorância não era capaz de descobrir.

Acrescentemos, ainda, que os fundadores das religiões, homens superiores à craveira comum, conhecendo muito mais, tiveram que impressionar as massas, cercando-se de um prestígio sobre-humano, enquanto certos ambiciosos puderam explorar a credulidade. Vede Numa, Maomé e tantos outros! Direis que são impostores. Seja.

Tomemos as religiões saídas da lei mosaica. Todas adotam a criação segundo o Gênesis. Ora, haverá realmente algo de mais sobrenatural do que essa formação da Terra, tirada do nada, surgida do caos, povoada por todos os seres vivos, homens, animais e plantas, todos formados e adultos, e isto em seis vezes vinte e quatro horas, como se por um golpe de varinha mágica? Não é a derrogação formal das leis que regem a matéria e a progressão dos seres? Certamente que Deus podia fazê-lo. Mas ele o fez? Ainda há bem poucos anos isto era afirmado como artigo de fé, e eis que a Ciência repõe o fato magno da origem do mundo na ordem dos fatos naturais, provando que tudo se realizou segundo as leis eternas. A religião sofreu por não ter mais como base um fato maravilhoso por excelência? Incontestavelmente muito teria sofrido no seu crédito se se tivesse obstinado em negar a evidência, ao passo que ganhou entrando na ordem comum.

Um fato muito menos importante, apesar das perseguições a que deu origem, é o de Josué parando o Sol para prolongar o dia em duas horas. Não importa se foi o Sol ou a Terra que parou. O fato não deixa de ser sobrenatural. É uma derrogação de uma lei capital, a da força que arrasta os mundos.

Pensaram em sair da dificuldade reconhecendo que é a Terra que gira, mas não haviam levado em conta a maçã de Newton, a mecânica celeste de Laplace e a lei da gravitação. Se o movimento da Terra for suspenso, não por duas horas, mas por alguns minutos, cessará a força centrífuga e a Terra precipitar-se-á sobre o Sol. O equilíbrio das águas na sua superfície é mantido pela continuidade do movimento. Cessando este, tudo se esboroa. Ora, a história do mundo não menciona o menor cataclismo nessa época. Não contestamos que Deus tenha podido favorecer a Josué, prolongando a claridade do dia. Por que meio? Ignoramo-lo. Poderia ter sido uma aurora boreal, um meteoro ou qualquer outro fenômeno que não tivesse alterado a ordem das coisas. Mas, inquestionavelmente, não foi aquele que, durante séculos, foi tomado como artigo de fé. É muito natural que outrora acreditassem, mas hoje isso é impossível, a menos que se renegue a Ciência.

Dirão que a religião se apoia sobre muitos outros fatos que nem são explicados, nem explicáveis. Não explicados, sim; inexplicáveis, é outra questão. Sabemos que descobertas e que conhecimentos estão reservados ao futuro? Já não vemos, sob o império do magnetismo, do sonambulismo, do Espiritismo, reproduzirem-se os êxtases, as visões, as aparições, a visão à distância, as curas instantâneas, os transportes, as comunicações orais e outras com os seres do mundo invisível, fenômenos conhecidos desde tempos imemoriais, outrora considerados maravilhosos e hoje demonstrados como pertinentes à ordem das coisas naturais, conforme a lei constitutiva dos seres?

Os livros sagrados estão cheios de fatos qualificados de sobrenaturais. Como, porém, os encontramos análogos e até mais maravilhosos em todas as religiões pagãs da antiguidade, se a verdade de uma religião dependesse do número e da natureza de tais fatos, não saberíamos qual delas seria a verdadeira.

Como prova do sobrenatural, cita o Sr. Guizot a formação do primeiro homem, que foi criado adulto porque, diz ele, sozinho e na infância não teria podido alimentar-se, mas se Deus fez uma exceção criando-o adulto, não teria podido fazer outra, dando ao menino os meios de viver, e isto sem se afastar da ordem estabelecida? Sendo os animais anteriores ao homem, não era possível, em relação ao primeiro menino, realizar a fábula de Rômulo e Remo?

Dizemos o primeiro menino quando deveríamos dizer os primeiros meninos, pois a questão de um tronco único para a espécie humana é controvertida. Com efeito, as leis da antropologia demonstram a impossibilidade material que a posteridade de um só homem tivesse podido, em alguns séculos, povoar toda a Terra e se transformar em raças negras, amarelas e vermelhas, pois está bem demonstrado que essas diferenças são devidas à constituição orgânica, e não ao clima.

O Sr. Guizot sustenta uma tese perigosa ao afirmar que nenhuma religião é possível sem o sobrenatural. Se ele assenta as verdades do Cristianismo sobre a base única do maravilhoso, dá-lhe um apoio frágil, cujas pedras se desagregam a cada dia. Damos-lhe uma base mais sólida: as leis imutáveis de Deus. Esta base desafia o tempo e a Ciência, porque os tempos e a Ciência virão sancioná-la.

A tese do Sr. Guizot conduz, pois, à conclusão que, num tempo dado, não haverá mais religião possível, nem mesmo a cristã, se se demonstrar que é natural aquilo que é tomado como sobrenatural. Foi isso que quis ele provar? Não. Mas é a consequência de seu argumento, e para ela marchamos a passos largos, porque, por mais que se faça, por mais que se amontoem raciocínios, não se chegará a manter a crença de que um fato é sobrenatural quando ficou provado que não é.

A tal respeito somos muito menos céticos que o Sr. Guizot, e dizemos que Deus não é menos digno de nossa admiração, do nosso reconhecimento e do nosso respeito por não haver derrogado as suas leis, grandes principalmente por sua imutabilidade; que não há necessidade do sobrenatural para lhe render o culto que lhe é devido e, consequentemente, para ter uma religião que encontrará tanto menos incrédulos quanto mais é, em todos os pontos, sancionada pela razão.

Em nossa opinião, nada tem o Cristianismo a perder com essa sanção, mas apenas a lucrar. Se algo o prejudicou, na opinião de muitos, foi precisamente o abuso do maravilhoso e do sobrenatural. Fazei com que os homens vejam a grandeza e o poder de Deus em todas as suas obras; mostrai-lhe a sabedoria e a admirável previdência, desde a germinação da plantinha até o mecanismo do Universo, e as maravilhas serão abundantes. Substitua-se em seu espírito a ideia de um Deus ciumento, colérico, vingativo e implacável, pela de um Deus soberanamente justo, bom e misericordioso, que não condena a suplícios eternos e sem esperança, por faltas temporárias. Que desde a infância ele seja alimentado por essas ideias que crescerão com a razão, e fareis muito mais crentes, firmes e sinceros, do que se forem embalados por alegorias, que são impostas ao pé da letra e que, mais tarde, repelidas por ele, conduzi-lo-ão a duvidar de tudo e a tudo negar. Se quereis manter a religião pela via única da ilusão do maravilhoso, só haverá um meio: manter os homens na ignorância. Vede se isso é possível. Por muita insistência em mostrar a ação de Deus apenas nos prodígios, nas exceções, a gente deixa de mostrá-la nas maravilhas que calcamos aos nossos pés.

Certamente objetarão com o nascimento do Cristo, que não poderia ser explicado pelas leis naturais e que é uma das provas mais brilhantes de seu caráter divino. Não é aqui o lugar de examinar esse assunto. Entretanto, ainda uma vez, não contestamos a Deus o poder de derrogar as suas leis. O que contestamos é a necessidade absoluta de tal derrogação, para o estabelecimento de uma religião qualquer.

Dirão que o Magnetismo e o Espiritismo, reproduzindo os fenômenos tidos por miraculosos, são contrários à religião atual, porque tendem a tirar desses fatos o seu caráter sobrenatural. Mas, que fazer, se os fatos são verdadeiros? Não os impedirão, desde que não constituem privilégio de um homem, mas se repetem no mundo inteiro. Outro tanto poder-se-ia dizer da Física, da Química, da Astronomia, da Geologia, da Meteorologia, de todas as ciências, enfim. A tal respeito diremos que o ceticismo de muita gente não tem outra fonte senão a impossibilidade, para eles, de tais fatos excepcionais. Negando a base sobre que se apoiam, negam tudo o mais. Prove-se-lhes a possibilidade e a realidade de tais fatos, reproduzindo-os aos seus olhos, e serão forçados a acreditar.

─ Isso é tirar ao Cristo o seu caráter divino!

─ Então preferis que eles não creiam em nada a acreditarem em alguma coisa? Haverá apenas esse meio de provar a divindade da missão do Cristo? Seu caráter não se destaca cem vezes melhor da sublimidade de sua doutrina e do exemplo que ele deu de suas virtudes? Se não se vê esse caráter senão nos atos materiais que praticou, outros não os fizeram semelhantes, para não falar senão de seu contemporâneo Apolônio de Tiana? Por que, então, o Cristo o superou? É porque fez um milagre muito maior do que transformar água em vinho; alimentar quatro mil homens com cinco pães; curar epilépticos; dar vista aos cegos e fazer andarem os paralíticos. Esse milagre é o de ter mudado a face do mundo; é a revolução feita pela simples palavra de um homem saído de um estábulo, durante três anos de pregações, sem nada haver escrito, ajudado apenas por alguns obscuros pescadores ignorantes. Eis o verdadeiro prodígio, no qual é preciso ser cego para não ver a mão de Deus. Penetrai os homens dessa verdade, eis a melhor maneira de convertê-los em sólidos crentes.


Março ENSINOS E DISSERTAÇÕES ESPÍRITAS

Março

A doutrina da reencarnação é uma verdade que não pode ser contestada; desde que o homem só quer pensar no amor, na sabedoria e na justiça de Deus, não pode admitir nenhuma outra doutrina.

É verdade que nos livros sagrados só se encontram estas palavras: “Depois da morte, o homem será recompensado segundo suas obras”. Mas não se presta suficiente atenção a uma infinidade de citações, que vos dizem ser absolutamente inadmissível que o homem atual seja punido pelas faltas e pelos crimes dos que viveram antes de Cristo. Não posso voltar a tantos exemplos e demonstrações dados pelos que acreditam na reencarnação; vós mesmos o podeis fornecer, os bons Espíritos os ajudarão e será um trabalho agradável. Podeis acrescentar isto aos ditados que vos dei e vos darei ainda, se Deus o permitir. Estais convencidos do amor de Deus pelos homens; ele só deseja a felicidade de seus filhos. Ora, o único meio que têm de um dia alcançar essa suprema felicidade está inteiramente nas reencarnações sucessivas.

Já vos disse que o que Kardec escreveu sobre os anjos decaídos é pura verdade. Os Espíritos que povoam vosso globo, na maioria sempre o habitaram. Se são os mesmos que retornam há tantos séculos, é que pouquíssimos mereceram a recompensa prometida por Deus.

O Cristo disse: “Esta raça será destruída e em breve esta profecia será cumprida.” Se se acredita num Deus de amor e de justiça, como admitir-se que os homens que vivem atualmente e mesmo os que viveram há dezoito séculos, possam ser culpados pela morte do Cristo sem aceitar a reencarnação? Sim, o sentimento de amor a Deus, o das penas e recompensas da vida futura, a ideia da reencarnação são inatas no homem desde séculos. Vede todas a História, vede os escritos dos sábios da Antiguidade e vos convencereis de que esta doutrina em todos os tempos foi admitida por todos os homens que compreendem a justiça de Deus. Agora compreendeis o que é a nossa Terra e como é chegado o momento em que serão realizadas as profecias do Cristo.

Lamento que encontreis tão poucas pessoas que pensam como vós. Vossos compatriotas não pensam senão nas grandezas e no dinheiro, a fim de criarem um nome; repelem tudo quanto possa entravar suas paixões infelizes. Porém, que isto não vos desencoraje; trabalhai pela vossa felicidade, pelo bem daqueles que talvez se arrependam de seus erros; perseverai na vossa obra; pensai sempre em Deus, no Cristo, e a beatitude celeste será a vossa recompensa.

Se se quiser examinar a questão sem preconceito, refletir sobre a existência do homem nas diferentes condições da sociedade e coordenar essa existência com o amor, a sabedoria e a justiça de Deus, toda a dúvida concernente ao dogma da reencarnação deve logo desaparecer. Efetivamente, como conciliar esta justiça e esse amor com uma existência única, onde todos nascem em posições tão diferentes? Onde um é rico e poderoso, enquanto o outro é pobre e miserável? Em que um goza de saúde, ao passo que o outro é afligido de males de toda a sorte? Aqui se encontram a alegria e a vivacidade; mas longe a tristeza e dor; em uns a inteligência é mais desenvolvida; em outros, apenas se eleva acima dos brutos. Pode-se crer que um Deus todo amor tenha feito nascer criaturas condenadas por toda a vida ao idiotismo e à demência? Que tenha permitido que crianças na primavera da vida fossem arrebatadas à ternura dos pais? Ouso mesmo perguntar se se poderia atribuir a Deus o amor, a sabedoria e a justiça à vista desses povos mergulhados na ignorância e na barbárie, comparados às nações civilizadas, onde imperam as leis, a ordem, onde se cultivam as artes e as ciências? Não basta dizer: “Em sua sabedoria, Deus assim regulou todas as coisas.” Não; a sabedoria de Deus, que antes de tudo é amor, deve tornar-se clara para o entendimento humano. O dogma da reencarnação tudo esclarece. Este princípio, dado pelo próprio Deus, não se pode opor aos princípios das Santas Escrituras; longe disso, explica os princípios dos quais emanam para o homem o melhoramento moral e a perfeição. Este futuro, revelado pelo Cristo, está de acordo com os atributos infinitos de Deus. Disse o Cristo: “Os homens todos não são apenas filhos de Deus, mas, também, irmãos e irmãs da mesma família.” Ora, essas expressões devem ser bem compreendidas.

Um bom pai terrestre dará a algum de seus filhos aquilo que recusa aos outros? Lançará um no abismo da miséria, enquanto cumula o outro de riquezas, honras e dignidades? Acrescentai ainda que o amor de Deus, sendo infinito, não poderia ser comparado ao do homem por seus filhos. As diferentes posições do homem têm uma causa, e essa causa tem por princípio o amor, a sabedoria, a bondade e a justiça de Deus. Assim, a sua razão de ser só se encontra na doutrina da reencarnação.

Deus criou todos os Espíritos iguais, simples, inocentes, sem vícios e sem virtudes, mas com o livre-arbítrio de regular suas ações conforme um instinto, que se chama consciência, e que lhes dá o poder de distinguir o bem e o mal. Cada Espírito está destinado a alcançar a mais elevada perfeição, atrás de Deus e do Cristo. Para atingi-la, deve adquirir todos os conhecimentos pelo estudo de todas as ciências, iniciar-se em todas as verdades e depurar-se pela prática de todas as virtudes. Ora, como essas qualidades superiores não podem ser obtidas numa única vida, todos devem percorrer várias existências, a fim de adquirirem os diversos graus do saber.

A vida humana é a escola da perfeição espiritual e uma sequência de provas. É por isso que o Espírito deve conhecer todas as condições da sociedade e, em cada uma delas, deve aplicar-se em cumprir a vontade divina. O poder e a riqueza, assim a pobreza e a humildade, são provas; dores, idiotismo, demência, etc., são punições pelo mal cometido numa existência anterior.

Do mesmo modo que pelo livre-arbítrio o indivíduo se encontra em condições de realizar as provas a que está submetido, também pode falir. No primeiro caso, a recompensa não se fará esperar, consistindo numa progressão na perfeição espiritual. No segundo caso, recebe a punição, isto é, deve reparar em nova vida o tempo perdido na vida anterior, da qual não soube tirar vantagem para si mesmo.

Antes de sua reencarnação, os Espíritos planam nas esferas celestes: os bons gozando a felicidade, os maus entregando-se ao arrependimento, expostos à dor de serem desamparados por Deus. Mas, conservando a lembrança do passado, o Espírito se recorda das infrações aos mandamentos divinos e Deus lhe permite escolher, em nova existência, suas provas e sua condição, o que explica por que, muitas vezes, encontramos nas classes inferiores da sociedade sentimentos elevados e entendimento desenvolvido, ao passo que nas classes superiores encontramos tendências ignóbeis e Espíritos embrutecidos. Pode-se falar de injustiça quando o homem, que empregou mal a sua vida, pode reparar suas faltas numa outra existência e alcançar sua meta? Não estaria a injustiça na condenação imediata e sem apelação? A Bíblia fala de castigos eternos, mas isto não se deveria entender por uma só existência, tão triste, e tão curta; para este instante, para este piscar em relação à eternidade. Deus quer dar a felicidade eterna como recompensa do bem, mas é preciso merecê-la e uma vida única, de curta duração, não basta para alcançá-la.

Muitos perguntam por que Deus, durante tanto tempo, teria ocultado aos homens um dogma cujo conhecimento é útil à sua felicidade. Teria amado aos homens menos do que agora?

O amor de Deus é de toda a eternidade. Para os esclarecer enviou sábios, profetas e Jesus-Cristo, o Salvador. Não é uma prova de seu infinito amor? Mas como receberam os homens esse amor? Melhoraram?

O Cristo disse: “Eu poderia ainda vos dizer muitas coisas, mas não poderíeis compreendê-las devido à vossa imperfeição.” Se tomarmos as Santas Escrituras no seu verdadeiro sentido intelectual, aí encontraremos muitas citações que parecem indicar que o Espírito deve percorrer várias vidas antes de chegar ao fim. Também não se encontram nas obras dos filósofos antigos as mesmas ideias sobre a reencarnação dos Espíritos?

O mundo progrediu bastante, sob o aspecto material, nas ciências, nas instituições sociais; mas, do ponto de vista moral ainda está muito atrasado. Os homens desconhecem a lei de Deus e não ouvem mais a voz do Cristo. Eis por que, em sua bondade e como último recurso para chegar a conhecer os princípios da felicidade eterna, Deus lhes dá a comunicação direta com os Espíritos e o ensino da doutrina da reencarnação, palavras repletas de consolação e que brilham nas trevas dos dogmas de tantas religiões diferentes.

À obra! E que a busca se realize com amor e confiança. Lede sem preconceitos; refleti sobre tudo quanto Deus, desde a criação do mundo, se dignou fazer pelo gênero humano e sereis confirmados na fé que a reencarnação é uma verdade santa e divina.

[Anônima.]


Observação. – Não tínhamos a honra de conhecer o Sr. Barão de Kock. Esta comunicação, que concorda com todos os princípios do Espiritismo, não é, pois, o produto de nenhuma influência pessoal.




Julho 5 [Evocação da senhora Palmira oito dias depois do suicídio]

Julho

1. — No Opinion nationale, de 13 de junho, lemos o seguinte:

“Terça-feira última, dois caixões entraram juntos na 1greja da Boa-Nova. Eram acompanhados por um homem que parecia presa de uma dor profunda e por uma multidão considerável, na qual se notava recolhimento e tristeza. Eis um breve relato dos acontecimentos, em consequência dos quais se realizava aquela dupla cerimônia fúnebre.

“A Sra. Palmira, modista, residia com os pais. Era dotada de um físico encantador, ao qual se aliava um caráter muito amável. Por isso, era muito requestada com propostas de casamento. Entre os aspirantes à sua mão, havia preferido o Sr. B…, que por ela nutria uma viva paixão. Embora o amasse muito, mas premida pelo respeito filial, julgou-se no dever de ceder à vontade dos pais, de desposar o Sr. D…, cuja posição social lhes parecia mais vantajosa que a do rival. O casamento foi celebrado há quatro anos.

“Os Srs. B… e D… eram amigos íntimos. Conquanto não tivessem nenhum interesse comum, não deixaram de se ver. O amor recíproco do Sr. B… e de Palmira, transformada na Sra. D…, não havia diminuído e, como se esforçassem por reprimi-lo, ele aumentava, em razão da própria violência que lhe faziam. Para tentar apagá-lo, B… tomou o partido de se casar. Desposou uma jovem de excelentes qualidades e fez todo o possível para amá-la. Mas não tardou a perceber que esse meio heroico era impotente para o curar. Todavia, durante quatro anos, nem B… nem a Sra. D… faltaram aos seus deveres. Impossível descrever o que eles sofreram, porquanto D…, que estimava verdadeiramente o seu amigo, o atraía sempre para a sua casa e, quando ele queria retirar-se, insistia para que ficasse.

“Enfim, há alguns dias, aproximados por uma circunstância fortuita, os dois amantes não puderam resistir à paixão que os arrastava um para o outro. Apenas cometida a falta, sentiram o mais doloroso remorso. A jovem senhora lançou-se aos pés do marido assim que ele voltou, e lhe disse em soluços:

“Expulsai-me! Matai-me! Agora sou indigna de vós!

“E como ele ficasse mudo de espanto e de dor, ela lhe contou suas lutas, seus sofrimentos, tudo quanto lhe tinha sido preciso de coragem para não falir mais cedo. Fê-lo compreender que, dominada por um amor ilegítimo, jamais tinha cessado de ter por ele o respeito, a estima e a afeição de que ele era digno.

“Em vez de amaldiçoá-la, o marido chorava. B… chegou em meio a esta cena e fez uma confissão semelhante. D… fez que ambos se levantassem e lhes disse:

“Sois dois corações bons e leais. Só a fatalidade vos tornou culpados. Li no fundo dos vossos pensamentos e neles vi sinceridade. Por que vos puniria por um arrastamento ao qual não resistiram todas as vossas forças morais? A punição está no pesar que sentis. Prometei-me que vos deixareis de ver e não tereis perdido nem a minha estima, nem a minha afeição.

“Esses dois desventurados amantes apressaram-se em fazer o juramento pedido. A maneira pela qual sua confissão havia sido recebida pelo Sr. D… aumentou-lhes a dor e o remorso. Tendo o acaso lhes ensejado um encontro de que não cogitavam, comunicaram-se reciprocamente o estado de alma e concordaram em que a morte seria o único remédio aos males que experimentavam. Resolveram matar-se juntos no dia seguinte, quando o Sr. D… estaria ausente de casa grande parte do dia.

“Depois de feitos os últimos preparativos, escreveram uma longa carta, na qual, em resumo, diziam:

“Nosso amor é mais forte que todas as promessas. Poderíamos ainda, mau grado nosso, fraquejar e sucumbir. Não conservaremos uma existência culposa. Para nossa expiação faremos ver que a falta que cometemos não deve ser atribuída à nossa vontade, mas ao desvario de uma paixão cuja violência estava acima de nossas forças.”

“Esta carta comovedora terminava por um pedido de perdão e os dois amantes imploravam como graça serem enterrados no mesmo túmulo.

“Quando o Sr. D… entrou em casa deparou-se com um estranho e doloroso espetáculo. No meio do espesso vapor que emanava de um forno portátil cheio de carvão, os dois amantes, deitados e bem vestidos no leito, estavam estreitamente abraçados. Tinham cessado de viver.

“O Sr. D… respeitou a última vontade dos dois. Quis que juntos participassem das preces da Igreja e que no cemitério não fossem separados.”

O Sr. cura da Boa-Nova julgou por bem desmentir, num artigo inserido em vários jornais, a admissão dos dois corpos em sua igreja, já que as regras canônicas a isto se opunham.

Tendo sido lido esse relato como tema de estudo moral na Sociedade Espírita de Paris, dois Espíritos fizeram a seguinte apreciação:


2. — “Eis aí a obra de vossa sociedade e dos vossos costumes! Mas o progresso será feito. Mais algum tempo e fatos como este não irão repetir-se. Alguns indivíduos são como certas plantas colocadas numa estufa: falta-lhes o ar; sufocam e não podem espargir o seu perfume. Vossas leis e vossos costumes fixaram limites à expansão de certos sentimentos, o que muitas vezes leva duas almas, dotadas das mesmas faculdades, dos mesmos instintos simpáticos, a se encontrarem em duas ordens diferentes e, não podendo unir-se, aniquilam-se na tenacidade de quererem encontrar-se. Que fizestes do amor? Vós o reduzistes a uma pilha de moedas; vós o jogastes numa balança; em vez de ser rei, é escravo; de um laço sagrado vossos costumes fizerem corrente de ferro, cujos elos esmagam e matam os que não nasceram para serem acorrentados.

“Ah! se vossas sociedades marchassem pelos caminhos de Deus, vossos corações não se consumiriam em chamas passageiras e vossos legisladores não teriam sido forçados a manter vossas paixões pelas leis. Mas o tempo marcha e soará a grande hora, na qual podereis todos viver a verdadeira vida, a vida do coração. Quando as batidas do coração não mais forem comprimidas pelos frios cálculos dos interesses materiais, não mais vereis esses suicídios horríveis, que de vez em quando vêm lançar um desmentido sobre os vossos preconceitos sociais.”

Santo Agostinho.


3. — “Os dois amantes que se suicidaram ainda não vos podem responder. Eu os vejo. Estão mergulhados na perturbação e assustados pelo sopro da eternidade. As consequências morais de sua falta os castigarão durantes sucessivas migrações, nas quais suas almas separadas buscar-se-ão incessantemente e sofrerão o duplo suplício do pressentimento e do desejo. Realizada a expiação, serão para sempre reunidos no seio do eterno amor.”

Georges.


4. — Oito dias depois, tendo consultado o guia espiritual do médium sobre a possibilidade da evocação desses dois Espíritos, foi respondido: “Eu vos disse da última vez que na vossa próxima sessão poderíeis evocá-los; virão ao apelo de meu médium, mas não se verão; uma noite profunda os oculta um do outro por muito tempo.”

Santo Agostinho.


5. [Evocação da senhora Palmira oito dias depois do suicídio.]


1. Evocação da mulher.

Resposta. – Sim; comunicar-me-ei, mas com o auxílio do Espírito aqui presente, que me ajuda e se me impõe.


2. Vedes o vosso amado, com o qual vos suicidastes?

Resposta. – Nada vejo; nem mesmo os Espíritos que vagueiam comigo no lugar onde estou. Que noite! Que noite! E que espesso véu sobre o meu rosto!


3. Que sensação experimentastes depois do despertar da morte?

Resposta. – Estranha. Tinha frio e queimava; o gelo corria-me nas veias e o fogo estava em meu rosto! Coisa estranha! Mistura inaudita! Gelo e fogo parecendo comprimir-me! Pensei que ia sucumbir segunda vez.


4. Experimentais dor física?

Resposta. – Todo o meu sofrimento está aqui e ali.


5. Que quereis dizer por aqui e ali?

Resposta. – Aqui, em meu cérebro; ali, no meu coração.


Observação. – Se pudéssemos ver o Espírito, provavelmente o veríamos levar a mão à fronte e ao coração.


6. Credes que ficareis sempre nesta situação?

Resposta. – Oh! sempre, sempre! Por vezes escuto risos infernais, vozes assustadoras que me gritam estas palavras: Sempre assim!


7. Pois bem! Nós vos podemos dizer, com toda a certeza, que não será sempre assim. Arrependendo-vos, obtereis o perdão.

Resposta. – Que dissestes? Não compreendo.


8. Repito que os vossos sofrimentos terão um termo, que podeis apressar pelo vosso arrependimento e nós vos ajudaremos pela prece.

Resposta. – Só entendi uma palavra e sons vagos. Essa palavra é graça! Foi da graça que quisestes falar? Oh! o adultério e o suicídio são dois crimes muito odiosos! Falastes de graça: sem dúvida à alma que passa ao meu lado, pobre criança que chora e espera.


Observação. – Uma dama da sociedade disse que acabara de dirigir uma prece a Deus por essa infeliz e que, sem dúvida, foi o que a tocou; que, de fato, havia implorado para ela mentalmente a graça de Deus.


9. Dissestes que estais nas trevas. Não nos vedes?

Resposta. – É-me permitido escutar algumas palavras que pronunciais, embora não veja senão um crepe negro sobre o qual se desenha, em certas horas, uma cabeça que chora.


10. Se não vedes o vosso amado, não sentis a sua presença perto de vós, já que ele está aqui?

Resposta. – Ah! não me faleis dele; por ora devo esquecê-lo, se quiser que do crepe se apague a imagem que aí vejo esboçada.


11. Que imagem é esta?

Resposta. – A de um homem que sofre, cuja existência moral na Terra eu matei por muito tempo.


6. — Observação. – Como demonstra a observação dos fatos, frequentemente a escuridão acompanha o castigo dos Espíritos criminosos. Segue-se imediatamente à morte e sua duração, muito variável conforme as circunstâncias, pode ir de alguns meses a alguns séculos. Compreende-se facilmente o horror de semelhante situação, na qual o culpado não divisa senão o que lhe pode lembrar a falta e aumentar, pelo silêncio, a solidão e a incerteza em que está mergulhado, as ansiedades e o remorso.

Lendo-se esta narrativa ficamos, em princípio, predispostos a encontrar circunstâncias atenuantes para o suicídio, a encará-lo até como um ato heroico, visto ter sido provocado pelo sentimento do dever. No entanto, vemos que foi julgado diversamente, e que a pena dos culpados será longa e terrível, porque se refugiaram voluntariamente na morte, a fim de fugir à luta. A intenção de não faltar ao dever era nobre, sem dúvida, e lhes será levada em conta mais tarde; mas o verdadeiro mérito teria consistido em vencer o arrastamento, ao passo que eles fizeram como o desertor, que se esquiva no momento do perigo.

Como se vê, a pena dos dois culpados consistirá em se buscarem por muito tempo sem se encontrarem, seja no mundo dos Espíritos, seja em outras encarnações terrestres; está momentaneamente agravada pela ideia de que o seu estado atual deve durar sempre. Fazendo parte do castigo um tal pensamento, não lhes foi permitido ouvir as palavras de esperança que lhes dirigimos. Aos que achassem essa pena muito terrível e muito longa, sobretudo se não deve cessar senão depois de várias encarnações, diríamos que sua duração não é absoluta, e que dependerá da maneira pela qual suportarão as provas futuras, no que poderemos ajudá-los por meio de preces. Como todos os Espíritos culpados, serão os árbitros de seu próprio destino. Isto não é melhor que a danação eterna, sem esperança, a que são irremediavelmente condenados, segundo a doutrina da Igreja, que os considera de tal modo jurados ao inferno que lhes recusou as últimas preces, sem dúvida por não terem utilidade?

Certos católicos censuram o Espiritismo porque este não admite o inferno. Realmente ele não admite a existência de um inferno localizado, com as suas chamas, os seus tridentes e as torturas corporais tomadas do Tártaro dos pagãos; mas a posição em que nos mostra os Espíritos infelizes não é muito melhor. Há, porém, uma diferença radical: a natureza das penas nada tem de irracional e a sua duração, em vez de ser irremissível, está subordinada ao arrependimento, à expiação e à reparação, o que é, ao mesmo tempo, mais lógico e mais conforme à doutrina da justiça e da bondade de Deus.

No caso em questão, teria sido o Espiritismo um remédio eficaz para evitar o suicídio? Sem dúvida. Ele teria dado a esses dois seres uma confiança no futuro que haveria mudado completamente sua maneira de encarar a vida terrestre e, por conseguinte, lhes teria dado a força moral que lhes faltou. Supondo que tivessem tido fé no futuro, o que ignoramos, e que o seu objetivo, ao se matarem, fosse o de se reunirem mais depressa, teriam sabido, por inúmeros exemplos análogos, que chegariam a resultados diametralmente opostos e se achariam separados por muito mais tempo do que se estivessem na Terra, pois Deus não permitiria recompensa à infração de suas leis. Assim, certos de não poderem realizar seus desejos, mas, ao contrário, de se acharem numa posição cem vezes pior, seu próprio interesse os levaria a ter mais paciência.

Nós os recomendamos às preces de todos os espíritas, a fim de lhes dar a força e a resignação que haverão de sustentá-los em suas novas provas e ainda apressar o termo de seu castigo.