Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1863

Capítulo I

Janeiro - Estudos sobre os possessos de Morzine

Janeiro

Causas da obsessão e meios de combate

(II artigo)

Em nosso artigo precedente (de dezembro último), foi exposta a maneira pela qual se exerce a ação dos Espíritos sobre o homem, ação, por assim dizer, material.

Sua causa está inteiramente no perispírito, princípio não só de todos os fenômenos espíritas propriamente ditos, mas de uma porção de efeitos morais, fisiológicos e patológicos incompreendidos antes do conhecimento desse agente, cuja descoberta, se assim se pode dizer, abrirá horizontes novos à Ciência, quando esta se decidir a reconhecer a existência do mundo invisível.

Como vimos, o perispírito representa importante papel em todos os fenômenos da vida. Ele é a fonte de múltiplas afecções, cuja causa é em vão buscada pelo escalpelo na alteração dos órgãos, e contra as quais é impotente a terapêutica.

Por sua expansão explicam-se, ainda, as reações de indivíduo a indivíduo, as atrações e repulsões instintivas, a ação magnética, etc. No Espírito livre, isto é, desencarnado, o perispírito substitui o corpo material. Ele é o agente sensitivo, o órgão através do qual o Espírito age.

Pela natureza fluídica e expansiva do perispírito, o Espírito atinge o indivíduo sobre o qual quer agir, rodeia-o, envolve-o, penetra-o e o magnetiza.

O homem, que vive em meio ao mundo invisível, está incessantemente submetido a essas influências, do mesmo modo que às da atmosfera que respira, e essa influência se traduz por efeitos morais e fisiológicos, dos quais não se dá conta e que ele frequentemente atribui a causas inteiramente contrárias.

Essa influência difere, naturalmente, segundo as boas ou más qualidades do Espírito, como ficou explicado no artigo precedente. Se ele for bom e benevolente, a influência, ou a impressão, se assim o preferirem, será agradável e salutar. É como as carícias de uma terna mãe, que toma o filho nos braços. Se ele for mau e perverso, ela será dura, penosa, ansiosa e por vezes malfazeja. Ela não o abraça, constringe.

Vivemos nesse oceano fluídico, incessantemente a braços com correntes contrárias, que atraímos ou repelimos, ou às quais nos abandonamos, conforme nossas qualidades pessoais, mas em cujo meio o homem sempre conserva o seu livre-arbítrio, atributo essencial de sua natureza, em virtude do qual pode sempre escolher o seu caminho.

Como se vê, isto é inteiramente independente da faculdade mediúnica, tal qual esta é vulgarmente compreendida. Estando a ação do mundo invisível na ordem das coisas naturais, ela se exerce sobre o homem, abstração feita de qualquer conhecimento espírita. Estamos a elas submetidos como o estamos à ação da eletricidade atmosférica, mesmo sem saber Física; como ficamos doentes sem conhecer Medicina.

Ora, assim como a Física nos ensina a causa de certos fenômenos e a Medicina a de certas doenças, o estudo da ciência espírita nos ensina a dos fenômenos devidos às influências ocultas do mundo invisível e nos explica o que, sem isto, nos parecia inexplicável.

A mediunidade é o meio direto de observação. O médium ─ permitam-nos a comparação ─ é o instrumento de laboratório pelo qual a ação do mundo invisível se traduz de maneira patente. Pela facilidade que ela nos oferece de repetir as experiências, permite-nos estudar o modo e as diversas nuanças dessa ação. Foi desses estudos e dessas observações que nasceu a ciência espírita. Todo indivíduo que, de uma maneira qualquer, sofre a influência dos Espíritos, é, por isso mesmo, médium, e por isso mesmo pode-se dizer que todos os indivíduos são médiuns. Mas é pela mediunidade efetiva, consciente e facultativa, que se chegou a constatar a existência do mundo invisível, e pela diversidade das manifestações obtidas ou provocadas que tomamos conhecimento da qualidade dos seres que o compõem, e do papel que eles representam na Natureza. O médium fez pelo mundo invisível o mesmo que o microscópio fez pelo mundo dos infinitamente pequenos.

É, pois, uma nova força, uma nova energia, uma nova lei, numa palavra, que nos foi revelada.

É realmente inconcebível que a incredulidade chegue a repelir essa ideia porque ela pressupõe em nós uma alma, um princípio inteligente que sobrevive ao corpo.

Se se tratasse da descoberta de uma substância material e não inteligente, seria aceita sem dificuldade, mas uma ação inteligente fora do homem é para eles superstição. Se da observação dos fatos produzidos pela mediunidade remontarmos aos fatos gerais, poderemos, pela similitude dos efeitos, concluir pela similitude das causas. Ora, é constatando a analogia dos fenômenos de Morzine com aqueles que diáriamente a mediunidade põe aos nossos olhos, que nos parece evidente a participação de Espíritos malfeitores naquelas circunstâncias, e não o será menos para quantos hajam meditado acerca dos numerosos casos isolados relatados na Revista Espírita.

A única diferença está no caráter epidêmico da afecção.

A História registra vários fatos semelhantes, entre os quais o das religiosas de Loudun, dos convulsionários de Saint-Médard, dos das Cévènes e dos possessos do tempo do Cristo. Estes últimos, sobretudo, apresentam notável analogia com os de Morzine. Uma coisa digna de nota é que, em qualquer parte onde esses fenômenos se produziram, a ideia de que eram devidos aos Espíritos era dominante e como que intuitiva naqueles que eram afetados.

Se nos quisermos reportar ao nosso primeiro artigo; à teoria da obsessão contida em O Livro dos Médiuns e aos fatos relatados na Revista, veremos que a ação dos maus Espíritos sobre as criaturas de quem se apoderam apresenta nuanças extremamente variadas de intensidade e duração, conforme o grau de malignidade e perversidade do Espírito, e também de acordo com o estado moral da pessoa que lhes dá acesso mais ou menos fácil.

Muitas vezes tal ação é temporária e acidental, mais maliciosa e desagradável que perigosa, como no caso que relatamos no artigo precedente.

O fato seguinte pertence a essa categoria.

O Sr. Indermühle, de Berne, membro da Sociedade Espírita de Paris, contounos que, em sua propriedade de Zimmerwald, seu administrador, homem de força hercúlea, sentiu-se, à noite, agarrado por um indivíduo que o sacudia vigorosamente.

Dir-se-ia que era um pesadelo. Mas não, porque o homem estava bem desperto, levantou-se e lutou por algum tempo com aquele que o agarrava, e quando se sentiu livre, tomou do sabre que estava pendurado ao lado do leito e pôs-se a esgrimi-lo no escuro, sem nada atingir. Acendeu uma vela e procurou em vão por toda parte. A porta estava bem fechada.

Logo que ele voltou ao leito, o jardineiro que estava no quarto ao lado começou a pedir socorro, debatendo-se e gritando que o estrangulavam. O caseiro correu para o quarto do jardineiro, mas, como no seu caso, não encontrou ninguém.

Uma criada que dormia no mesmo prédio ouviu todo o barulho. Apavorados, todos foram, no dia seguinte, contar ao Sr. Indermühle o que se havia passado.

Depois de informar-se de todos os detalhes e de assegurar-se que nenhum estranho poderia ter-se introduzido nos quartos, o Sr. Indermühle foi levado a crer que se tratava de uma brincadeira de mau gosto de algum Espírito, porque, há algum tempo, inequívocas manifestações físicas de diversas modalidades se produziam em sua própria casa.

Ele tranquilizou os seus serviçais, recomendando que observassem cuidadosamente tudo quanto se passasse, caso a coisa se repetisse.

Como ele e sua esposa são médiuns, ele evocou o Espírito perturbador, que confessou o fato e desculpou-se dizendo: “Eu vos queria falar, pois sou infeliz e necessito de vossas preces. Há muito tempo faço tudo o que posso para vos chamar a atenção: Eu vos toco, e até já vos puxei a orelha (do que se recordou o Sr. Indermühle), mas sem resultado. Então, pensei que fazendo a cena da noite passada pensaríeis em me chamar. Fizeste-o e estou contente, mas asseguro-vos que não tinha más intenções. Prometei chamar-me algumas vezes e orar por mim.”

O Sr. Indermühle fez-lhe uma severa advertência, repetiu a conversa, deu-lhe uma lição de moral que ele escutou com prazer, orou por ele e disse à sua gente que fizesse o mesmo, o que foi feito, pois são piedosos, e desde então tudo ficou em ordem.

Infelizmente nem todos têm tão boa disposição. Esse não era mau. Há alguns, porém, cuja ação é tenaz, permanente, e pode até mesmo haver consequências desagradáveis para a saúde da criatura, mais do isto, para as faculdades intelectuais, caso o Espírito chegue a subjugar a sua vítima a ponto de neutralizar seu livrearbítrio e de levá-la a dizer e fazer extravagâncias. Tal é o caso da loucura obsessiva, muito diversa nas causas, senão nos efeitos, da loucura patológica.

Em nossa viagem, vimos o jovem obsidiado, do qual falamos na Revista de janeiro de 1861, sob o título de Espírito batedor de Aube, e ouvimos do pai e de testemunhas oculares a confirmação dos fatos. O rapaz tem agora dezesseis anos; é saudável, grande, perfeitamente constituído e, contudo, queixa-se do estômago e de fraqueza dos membros, o que, segundo ele, o impede de trabalhar. Vendo-o, pode-se facilmente crer seja a preguiça sua principal doença, o que nada tira à realidade dos fenômenos produzidos há cinco anos e que, sob muitos aspectos, lembram os de Bergzabern (Revista de maio, junho e julho de 1858). Já não é o mesmo com sua saúde moral. Em criança era muito inteligente e na escola aprendia com facilidade.

Desde então suas faculdades enfraqueceram sensivelmente. É preciso acrescentar que só recentemente ele e seus pais tomaram conhecimento do Espiritismo, ainda por ouvir dizer e muito superficialmente, pois nada leram. Antes, nunca tinham ouvido falar. Não era possível, assim, ter uma causa provocadora.

Os fenômenos materiais praticamente cessaram ou são hoje muito raros, mas o estado moral é o mesmo, o que é tanto mais lamentável para os pais, que vivem do trabalho.

Sabe-se da influência da prece em tais casos, mas, como nada se pode esperar do rapaz nesse sentido, seria necessário o concurso dos pais.

Eles estão persuadidos de que o filho está sob malévola influência oculta, mas sua crença não vai muito além, e sua fé religiosa é das mais fracas.

Dissemos ao pai que era necessário orar, mas orar seriamente e com fervor. “É o que já me disseram”, respondeu ele. “Orei algumas vezes, mas sem resultado. Se eu soubesse que orando diversas vezes durante vinte e quatro horas e isto acabaria, eu o faria exatamente agora.” Vê-se por aí de que maneira a gente é secundada nessas circunstâncias pelos maiores interessados.

Eis a contrapartida do caso, e uma prova da eficácia da prece quando feita com o coração e não com os lábios.

Certa moça, contrariada em suas inclinações, havia-se casado com um homem com quem ela não simpatizava. A mágoa que sofreu levou-a a um distúrbio das faculdades mentais. Sob o domínio de uma ideia fixa, ela perdeu a razão e teve de ser internada. Ela jamais ouvira falar de Espiritismo, mas se dele se tivesse ocupado, teriam dito que os Espíritos lhe haviam transtornado a cabeça. O mal provinha, assim, de uma causa moral acidental e exclusivamente pessoal. Compreende-se que em tais casos os remédios normais nenhum efeito produziriam, e como não havia obsessão aparente, podia-se também duvidar da eficácia da prece.

Um amigo da família, membro da Sociedade Espírita de Paris, achou que deveria interrogar um Espírito superior acerca desse caso, o qual lhe respondeu:

“A ideia fixa dessa senhora, por causa dela mesma, atrai para junto dela uma porção de Espíritos maus que a envolvem com seus fluidos, alimentam as suas ideias e impedem que lhe cheguem as boas influências.

“Os Espíritos dessa natureza abundam sempre em meios semelhantes àquele em que ela se encontra, e frequentemente constituem obstáculo à cura dos doentes.

Contudo, podereis curá-la, mas para tanto é necessária uma força moral capaz de vencer a resistência, e tal força não é dada a um só. Cinco ou seis espíritas sinceros se reúnam todos os dias, durante alguns instantes e peçam com fervor a Deus e aos bons Espíritos que a assistam, e que a vossa ardente prece seja, ao mesmo tempo, uma magnetização mental.

“Para tanto, não necessitais estar junto a ela. Ao contrário, podeis, pelo pensamento, levar-lhe uma salutar corrente fluídica, cuja força estará na razão direta de vossa intenção, e aumentada pelo número. Dessa maneira podereis neutralizar o mau fluido que a envolve. Fazei isto, tende fé em Deus e esperai.”

Seis pessoas se dedicaram a essa obra de caridade, e durante um mês não faltaram um só dia à missão que haviam aceito. Depois de alguns dias, a doente estava sensivelmente mais calma. Quinze dias mais tarde a melhora era manifesta, e agora ela voltou para sua casa em estado perfeitamente normal, ignorando ainda, assim como seu marido, de onde lhe veio a cura.

A maneira de agir é aqui indicada claramente e nada teríamos a acrescentar de mais preciso à explicação dada pelo Espírito. A prece não tem apenas o efeito de chamar para junto do doente um socorro estranho, mas também o de exercer uma ação magnética.

De que não seria capaz o magnetismo, ajudado pela prece! Infelizmente certos magnetizadores, a exemplo de muitos médicos, fazem abstração do elemento espiritual. Eles veem apenas a ação mecânica, assim se privando de poderoso auxiliar. Esperamos que os verdadeiros espíritas vejam neste fato, mais uma prova do bem que podem fazer em circunstâncias semelhantes.

Aqui naturalmente se apresenta uma questão de grande importância:

O exercício da mediunidade pode provocar o desarranjo da saúde e das faculdades mentais?

É de se notar que, assim formulada, esta é a pergunta feita pela maioria dos antagonistas do Espiritismo, ou melhor, em vez de fazerem uma pergunta, eles transformam o princípio em axioma, afirmando que a mediunidade conduz à loucura. Referimo-nos à loucura real e não a esta, mais burlesca do que séria, com que gratificam os nossos adeptos.

Poder-se-ia conceber essa pergunta da parte de quem acreditasse na existência dos Espíritos e na ação que eles podem exercer, porque, para eles, existe algo de real. Mas, para os que não acreditam, a pergunta é um contrassenso, porque, se nada existe, esse nada não poderá produzir coisa alguma.

Sendo essa tese insustentável, eles se escudam nos perigos da superexcitação cerebral que, em sua opinião, pode ser causada pela simples crença nos Espíritos.

Não voltaremos a esse ponto já estudado, mas perguntaremos se já foi feita a estatística de todos os cérebros transtornados pelo medo do diabo e dos terríveis quadros das torturas do inferno e da danação eterna, e se é mais prejudicial acreditarmos que temos junto de nós Espíritos bons e benevolentes, nossos parentes, nossos amigos e nosso anjo da guarda, ou o demônio.

Desde que se admita a existência dos Espíritos e sua ação, a pergunta formulada da seguinte maneira é mais racional e mais séria:

O exercício da mediunidade pode provocar numa pessoa a invasão de maus Espíritos e suas consequências?

Jamais dissimulamos os escolhos encontradiços na mediunidade, razão por que multiplicamos, em O Livro dos Médiuns, as instruções a tal respeito, e não temos cessado de recomendar o seu estudo prévio, antes de se entregarem à prática. Assim, desde a publicação daquele livro, o número de obsidiados diminuiu sensível e notoriamente, porque poupa uma experiência que os noviços muitas vezes só adquirem às próprias custas. Afirmamos mais uma vez: Sim, sem experiência, a mediunidade tem inconvenientes, dos quais o menor seria ser mistificado por Espíritos enganadores e levianos. Fazer Espiritismo experimental sem estudo é fazer manipulações químicas sem saber química.

Os numerosos exemplos de pessoas obsidiadas e subjugadas da mais desagradável maneira, sem jamais terem ouvido falar de Espiritismo, provam à saciedade que o exercício da mediunidade não tem o privilégio de atrair os maus Espíritos. Mais do que isto, prova a experiência que ela é um meio de afastá-los, pois permite reconhecê-los.

Contudo, como por vezes alguns vagam em redor de nós, pode acontecer que, encontrando oportunidade para se manifestarem, aproveitem-na, desde que encontrem no médium uma predisposição física ou moral que o torne acessível à sua influência. Ora, tal predisposição está no indivíduo e em causas pessoais anteriores, e não surgiram da mediunidade. Pode-se dizer que o exercício da faculdade é uma ocasião e não uma causa.

Mas, se algumas criaturas estão neste caso, outras há que oferecem uma resistência intransponível aos maus Espíritos, que a elas não se dirigem. Falamos de Espíritos realmente maus e malfeitores, os únicos realmente perigosos, e não de Espíritos levianos e zombeteiros, que se insinuam por toda a parte.

A presunção de julgar-se invulnerável pelos maus Espíritos muitas vezes tem sido punida de modo cruel, porque eles jamais são impunemente desafiados pelo orgulho. O orgulho é a porta que lhes dá mais fácil acesso, pois ninguém oferece menos resistência do que o orgulhoso, quando é atacado pelo seu lado fraco. Antes de nos dirigirmos aos Espíritos, convém, pois, encouraçarmo-nos contra o assalto dos maus, assim como se marchássemos em terreno onde tememos picadas de cobras. Isto se consegue, inicialmente, pelo estudo prévio, que indica a rota e as precauções a tomar; em seguida, pela prece. Mas é necessário bem nos compenetrarmos de que, em verdade, o único preservativo está em nós, em nossa própria força, e nunca nas coisas exteriores, e que não há talismãs, nem amuletos, nem palavras sacramentais, nem fórmulas sagradas ou profanas que tenham a menor eficácia se não tivermos em nós mesmos as qualidades necessárias. Assim, essas qualidades é que devem ser adquiridas.

Se estivéssemos bem compenetrados do objetivo essencial e sério do Espiritismo; se nos preparássemos constantemente para o exercício da mediunidade por um fervoroso apelo a nosso anjo da guarda e aos nossos Espíritos protetores; se nos estudássemos, esforçando-nos por nos purificarmos de nossas imperfeições, os casos de obsessão mediúnica seriam ainda mais raros.

Infelizmente, muitos veem apenas o fato das manifestações. Não contentes com as provas morais que abundam em seu redor, querem a qualquer preço dar-se à satisfação de comunicar-se pessoalmente com os Espíritos, forçando o desenvolvimento de uma faculdade por vezes neles inexistente, guiados mais pela curiosidade do que pelo sincero desejo de melhorar-se. Disso resulta que, em vez de se envolverem numa atmosfera fluídica salutar; de se cobrirem com as asas protetoras de seus anjos guardiães; de buscarem o domínio das fraquezas morais, escancaram a porta aos Espíritos obsessores que os teriam atormentado de outra maneira e em outra ocasião, mas que aproveitam a que lhes é ofertada.

Que dizer, então, daqueles que fazem um jogo das manifestações e nelas veem apenas um motivo para distração e curiosidade ou nelas procuram meios de satisfazer a ambição, a cupidez ou os interesses materiais? É nesses casos que se pode dizer que o exercício da mediunidade pode provocar a invasão dos maus Espíritos. Sim, é perigoso brincar com essas coisas. Quantas pessoas leem O Livro dos Médiuns unicamente para saber como agir, porque o que mais lhes interessa é a receita ou a maneira de proceder! O lado moral do problema é acessório. Assim, não se deve imputar ao Espiritismo o que é resultado da imprudência. Voltemos aos possessos de Morzine.

Aquilo que um Espírito pode fazer a uma criatura, vários Espíritos podem fazer sobre diversos indivíduos, simultaneamente, e dar à obsessão um caráter epidêmico.

Uma nuvem de maus Espíritos pode invadir uma localidade e aí manifestar-se de várias maneiras. Foi uma epidemia de tal gênero que se alastrou na Judeia, ao tempo do Cristo, e, em nossa opinião, é uma epidemia semelhante que abateu-se sobre Morzine.

É o que procuraremos estabelecer num próximo artigo, no qual destacaremos os caracteres essencialmente obsessivos dessa afecção. Analisaremos os relatórios dos médicos que a observaram, entre outros o do Dr. Constant, bem como os meios de cura empregados, seja pela medicina, seja pelos exorcismos.

Maio 7 ALGUMAS REFUTAÇÕES

Maio

1. – De vários pontos nos assinalam novas prédicas contra o Espiritismo, todas no mesmo espírito daquelas de que temos falado; e como não passam, quase sempre, de variantes do mesmo pensamento, em termos mais ou menos escolhidos, julgamos supérfluo fazer-lhes a análise. Limitar-nos-emos a destacar certas passagens, acompanhando-as de algumas reflexões.


“Meus irmãos, é um cristão que fala a cristãos e, nessa qualidade, temos o direito de nos admirarmos, vendo o Espiritismo crescer entre nós. O que é o Espiritismo, eu vos pergunto, senão um mosaico de horrores que só a loucura pode justificar?”

A isto nada temos a dizer, senão que todas as prédicas feitas nesta cidade foram incapazes de deter o crescimento do Espiritismo, como bem constata o orador; portanto, os argumentos que lhe opõem têm menos autoridade que os seus; e, se as prédicas emanam de Deus e o Espiritismo procede do diabo, é que este é mais poderoso que Deus. Nada mais brutal que um fato. Ora, a propagação do Espiritismo, em consequência mesma das prédicas, é um fato notório, e por certo as pessoas julgam que os argumentos por ele dados são mais convincentes que os dos adversários. É uma trama de horrores. Seja. Mas haveis de concordar que se esses Espíritos viessem abraçar todas as vossas ideias, em vez de demônios, deles faríeis santos; e, longe de condenar as evocações, vós as encorajaríeis.


2. – “Nosso século não respeita mais nada; nem mesmo a cinza dos túmulos é poupada, pois insensatos ousam chamar os mortos para conversar com eles. Infelizmente é assim. Eis até onde chegou esse pretenso século das luzes: conversar com as almas do outro mundo.”

Conversar com os mortos não é privilégio deste século, já que a história de todos os povos comprova que isto tem ocorrido em todos os tempos. A única diferença é que hoje isto é feito em toda parte sem os acessórios supersticiosos com que outrora cercavam as evocações, e com um sentimento mais religioso e mais respeitoso. De duas uma: ou a coisa é possível, ou não é. Se não é, é uma crença ilusória; tal como acreditar na fatalidade da sexta-feira, na influência do sal derramado. Não vemos, pois, que haja tantos horrores e que sé falte com o respeito conversando com seres que já não pertencem a este mundo. Se os mortos vêm conversar conosco, só pode ser com a permissão de Deus, a menos que se pretenda que venham sem essa permissão, ou contra a sua vontade, o que implicaria que Deus não se importa com isso ou que os evocadores são mais poderosos que Deus. Mas notai as contradições: de um lado dizeis que só o diabo se comunica e, de outro, que se perturbam as cinzas dos mortos, chamando-os. Se é o diabo, não são os mortos; portanto, não são perturbados nem se lhes falta com o respeito. Se são os mortos, então não é o diabo. Seria preciso, ao menos, que vos pusésseis de acordo sobre este ponto capital. Admitindo que sejam os mortos, reconhecemos que haveria profanação em chamá-los levianamente, por razões fúteis, sobretudo para fazer disto profissão lucrativa. Condenamos todas essas coisas e não nos responsabilizamos pelos que se afastam dos princípios do Espiritismo sério. Não assumais responsabilidade pelos falsos devotos, que da religião só têm a máscara, que pregam o que não praticam ou que especulam com as coisas santas. Certamente evocações feitas em condições burlescas atribuídas a um eloquente orador que citamos mais adiante, seriam um sacrilégio; mas, graças a Deus, não nos envolvemos com isso e não cremos que a do Sr. Viennois, igualmente referida adiante [v. Sr. Philibert 5iennois], esteja neste caso.


3. – “Eu mesmo testemunhei estes fatos e ouvi pregar a moral, a caridade; é verdade. Mas sobre que se apoiam esta moral e esta caridade? Ah! sobre nada, porquanto não se pode chamar moral uma doutrina que nega as penas eternas.”

Se essa moral leva a fazer o bem sem o temor das penas eternas, é mais meritória ainda. Outrora se julgava impossível manter a disciplina na escola sem o medo da palmatória. Eram melhores os estudantes? Não; hoje ela não é mais usada e eles não são piores: ao contrário. Logo, o regime atual é preferível.

Julga-se a qualidade de um meio pelos seus efeitos. Aliás, a quem se dirige essa moral? Exatamente aos que não acreditam nas penas eternas, e a quem damos um freio, que aceitam, ao passo que não lhos dais, uma vez que não aceitam o vosso. Impedimos acreditem na danação absoluta aqueles a quem isto convém? Absolutamente. Ainda uma vez, não nos dirigimos aos que têm fé e aos quais esta basta, mas aos que não a têm ou duvidam. Preferiríeis que eles ficassem na incredulidade absoluta? Seria pouco caridoso. Temeis que vos tomem ovelhas? É que não tendes muita confiança no poder de vossos meios para retê-las; é que receais que elas sejam atraídas pela erva tenra do perdão e da misericórdia divina. Acreditais, então, que as que vacilam na incerteza preferirão as labaredas do inferno? Por outro lado, quem deve estar mais convencido das penas eternas, senão os que são alimentados no seio da Igreja? Ora, dizei por que essa perspectiva não deteve todos os escândalos, todas as atrocidades, todas as prevaricações contra as leis divinas e humanas, que pululam na História e se reproduzem incessantemente em nossos dias? São crimes ou não? Se, pois, os que fazem profissão desta crença não são tolhidos em suas ações, como querer que o sejam os que não creem? Não; ao homem esclarecido de nossos dias é preciso outro freio: aquele que sua razão admite. Ora, a crença nas penas eternas, talvez útil em outras épocas, está superada; extingue-se dia a dia e, por mais que fizerdes, não dareis vida a um cadáver nem fareis reviver os usos, costumes e ideias da Idade Média. Se a Igreja Católica julga sua segurança comprometida pelo desaparecimento dessa crença, devemos lamentá-la por repousar sobre base tão frágil, porque, se algo a atormenta, este é o dogma das penas eternas.


4. – “Assim, apelo à moralidade de todas as almas honestas; apelo aos magistrados, pois eles são responsáveis por todo o mal que semelhante heresia atrai sobre nossas cabeças.”

Não sabíamos que na França os magistrados fossem encarregados de instaurar processos contra as heresias, pois se entre eles há católicos, também há protestantes e judeus; assim, os próprios heréticos se incumbiriam de sua perseguição e condenação. E os há entre os funcionários da mais alta categoria.


5. – “Sim, os espíritas – e não receio declarar aqui abertamente – não apenas são passíveis da polícia correcional e da Corte Imperial, mas, também – prestai bem atenção – do tribunal do júri, porque são falsários; assinam comunicações em nome de pessoas que certamente jamais as teriam assinado em vida, pessoas que hoje eles tanto fazem falar.”

Os espíritas estão realmente muito contentes, porque Confúcio, Sócrates, Santo Agostinho, São Vicente de Paulo, Fénelon e outros não lhes podem mover processos por crimes de falsificação de escrita particular. Bem que eu sonho com isso: eles teriam uma tábua de salvação precisamente nos tribunais do júri a cuja jurisdição estão sujeitos, pois ali os jurados se pronunciam segundo a sua consciência. Ora, entre eles há também protestantes e judeus; há, até – coisa abominável! – filósofos, incrédulos, horríveis livres-pensadores que, à vista de nossas detestáveis leis modernas, se acham em toda parte. Assim, se nos acusam de fazer Santo Agostinho dizer algo de heterodoxo, sempre encontraremos jurados que nos absolvam. Ó perversidade do século! dizer que em nossos dias Voltaire, Diderot, Lutero, Calvino, João Huss, Ário teriam sido jurados por direito de nascimento, que poderiam ter sido juízes perfeitos, ministro da justiça e mesmo dos cultos! Vede-os, esses celerados infernais, a se pronunciarem sobre uma questão de heresia! Porque, para condenar a assinatura de Fénelon, posta abaixo de uma suposta comunicação herética, é preciso julgar a questão da ortodoxia; e quem será competente no júri?


6. – “Entretanto, seria tão fácil interditar semelhante impiedade! O que se precisaria fazer? quase nada; mesmo sem lhes fazer a honra da capa do comissário, podeis colocar um sargento à entrada de cada grupo para dizer: não entreis. Pinto o mal e descrevo o remédio, apenas isto, pois eu os dispenso da Inquisição.”

Muito obrigado, mas não há grande mérito em oferecer aquilo que não se tem. Infelizmente, para vós, não podeis contar com a Inquisição, sem o que seria duvidoso que nos liberásseis dela. O que não dizeis aos magistrados, visando à interdição da entrada dos templos judeus e protestantes, onde se pregam publicamente dogmas que não são os vossos? Quanto aos espíritas, não têm templos nem sacerdotes, mas – o que para vós é a mesma coisa – grupos, à entrada dos quais basta pôr um sargento para que tudo fique dito. Realmente é muito simples. Mas esqueceis que os Espíritos ignoram qualquer proibição e entram em toda parte sem pedir permissão, mesmo em vossa casa, pois os tendes ao vosso lado, escutando-vos, sem que o suspeiteis e, ademais, vos falando ao ouvido. Trazei à memória as vossas lembranças e vereis que tivestes mais de uma manifestação, mesmo sem a haverdes buscado.

Pareceis ignorar uma coisa que é bom saibais. Os grupos espíritas não são absolutamente necessários; são simples reuniões onde se sentem felizes por encontrar-se pessoas que pensam do mesmo modo. E a prova disto é que hoje, na França, há mais de 600.000 espíritas, 99% dos quais não fazem parte de nenhum grupo e neles jamais puseram os pés; que eles não existem numa porção de cidades; que nem os grupos nem as sociedades abrem suas portas ao público para pregar suas doutrinas aos transeuntes; que o Espiritismo se prega por si mesmo e pela força das coisas, porque responde a uma necessidade da época; que as ideias espíritas estão no ar e são aspiradas por todos os poros da inteligência; que o contágio está no exemplo dos que são felizes com essas crenças e que são encontrados por toda parte, na sociedade, sem que se precise procurá-los nos grupos. Assim, não são os grupos que fazem a propaganda, pois não apelam ao primeiro que apareça; ela é feita pouco a pouco, de indivíduo a indivíduo. Se, portanto, admitíssemos a interdição de todas as reuniões, os espíritas ficariam livres para se reunirem em família, como já ocorre em milhares de lugares, sem que o Espiritismo nada sofra com isso; muito ao contrário, pois temos sempre condenado as grandes assembleias, que são mais prejudiciais que úteis; além disso, a intimidade é reconhecida como a condição mais favorável às manifestações. Interditaríeis as reuniões familiares? Colocaríeis um sargento à porta de um salão para vigiar o que se passa à lareira? Isto não se faz na Espanha, nem em Roma, onde há mais espíritas e médiuns do que pensais. Só faltava isso para aumentar ainda mais a importância do Espiritismo.

Admitamos agora a interdição legal dos grupos. Sabeis o que fariam esses espíritas que acusais de semear a desordem? Eles diriam: Respeitamos a lei; dura lex, sed lex [A lei é dura mais é lei]. Vamos dar o exemplo, mostrando que, se pregamos a união, a paz e a concórdia, não é para nos transformarmos em promotores de desordens. As sociedades organizadas não são necessárias à existência do Espiritismo; não há entre elas nenhuma solidariedade material que possa ser quebrada por sua supressão. O que os Espíritos aí ensinam, igualmente ensinam numa conversa particular entre duas pessoas, porque o Espiritismo tem o incrível privilégio de ter o seu foco de ensino por toda parte. Seu sinal de ligação é o amor de Deus e do próximo e, para o pôr em prática, não há necessidade de reuniões oficiais, pois ele tanto se estende sobre os amigos quanto sobre os inimigos. Qualquer um pode dizer o mesmo; e mais de uma vez a autoridade não tem encontrado resistência onde esperava encontrar a maior submissão? Se os espíritas fossem pessoas tão turbulentas e tão pervertidas quanto pretendeis, por que os funcionários encarregados da manutenção da ordem têm menos trabalho nos centros onde eles constituem maioria? Um funcionário chegou a dizer que se todos os seus administrados fossem espíritas, sua repartição podia ser fechada. Por que há menos penas disciplinares entre os militares espíritas?

E, depois, não pensais que atualmente há espíritas em toda parte, de alto a baixo na escala social; que há reuniões e médiuns até em casa daqueles que invocais contra nós. Vede, pois, que o vosso meio é insuficiente; é preciso buscar outro. – Temos a condenação fulminante do púlpito. – Está bem; e vós a usais largamente. Mas não vedes que por toda parte onde lançam raios o número de espíritas aumenta? – Temos a censura da Igreja e a excomunhão. – É melhor; mas ainda uma vez bateis no vazio. Repetimos: o Espiritismo nem se dirige a vós nem aos que estão convosco; não os vai buscar e dizer-lhes: deixai a vossa religião e segui-me; sereis danados se não o fizerdes. Não; ele é mais tolerante que isso e deixa a cada um a liberdade de consciência. Como já dissemos, ele se dirige à massa inumerável dos incrédulos, aos que duvidam e aos indiferentes; estes não estão convosco e vossas censuras não os podem atingir. Eles vinham a vós, mas os repelíeis. Quanta inabilidade! Se alguns dos vossos os seguem, é que vossos argumentos não são bastante fortes para os reter e não é com rigor que o conseguireis. O Espiritismo agrada porque não se impõe e é aceito pela vontade e o livre-exame. Nisto ele é de nossa época. Agrada pela doçura, pelas consolações que prodigaliza nas adversidades, pela fé inabalável que dá no futuro, na bondade e na misericórdia de Deus. Além disso, ele se apoia em fatos patentes, materiais, irrecusáveis, que desafiam toda negação. Eis o segredo de sua tão rápida propagação. Que lhe opondes? Sempre a danação eterna, expediente ruim para os tempos que correm; depois a deturpação de suas doutrinas: vós o acusais de pregar o aborto,, o adultério e todos os crimes. A quem pensais impor isto? Não aos espíritas, certamente. Aos que não o conhecem? Mas nesse número muitos querem saber o que é essa abominável doutrina; leem, e vendo que ela diz exatamente o contrário do que lhe atribuem, vos deixam para a seguir. E isto sem que ele os vá procurar.

A posição, bem o sei, é embaraçosa: Se falamos contra o Espiritismo – dizeis – recrutamos-lhe partidários; se nos calamos, ele marcha sozinho. Que fazer então? Outrora se dizia: Deixai passar a justiça do rei; agora é preciso dizer: Deixemos passar a justiça de Deus.

(Continua no próximo número)


7. ALGUMAS REFUTAÇÕES.

(2° artigo. – Ver o número de maio.) [Revista de junho de 1863.]

Toda ideia nova encontra forçosamente oposição, por parte daqueles cujas opiniões e interesses contraria. Julgam alguns que a Igreja está comprometida – pensamos que não, mas nossa opinião não faz lei – razão por que nos atacam em seu nome com um furor ao qual só faltam as grandes execuções da Idade Média. Os sermões, as instruções pastorais lançam raios em todas as direções; as brochuras e artigos de jornais chovem em grande quantidade, na maioria com um cinismo de expressão pouquíssimo evangélico. Em vários deles é um raio que toca o frenesi. Por que, então, essa exibição de força e tanta cólera? Porque dizemos que Deus perdoa à criatura que se arrepende e que as penas só seriam eternas para aquelas que jamais se arrependessem, e porque proclamamos a bondade e a clemência de Deus, somos heréticos votados à execração e a sociedade está perdida. Apontam-nos como perturbadores; desafiam a autoridade a nos perseguir em nome da moral e da ordem pública; alegam que aquela não cumpre o seu dever deixando-nos tranquilos!

Aqui se apresenta um problema interessante. Pergunta-se por que essa violência contra o Espiritismo, e não contra tantas outras teorias filosóficas ou religiosas muito menos ortodoxas? A Igreja fulminou o materialismo, que tudo nega, como o faz contra o Espiritismo, que se limita à interpretação de alguns dogmas? Esses dogmas e muitos outros não foram tantas vezes negados, discutidos, polemizados numa porção de escritos que ela deixa passar despercebidos? Os princípios fundamentais da fé – Deus, a alma e a imortalidade – não foram publicamente atacados sem que ela se perturbasse? Jamais o saint-simonismo, o fourierismo, a própria Igreja do padre Chatel levantaram tantas cóleras, sem falar de outras seitas menos conhecidas, tais como os fusionistas, cujo chefe acaba de morrer, que têm um culto, seu jornal e não admitem a divindade do Cristo; os católicos apostólicos, que não reconhecem o papa, que têm seus padres e bispos casados, suas igrejas em Paris e nas províncias, onde batizam, casam e promovem cerimônias fúnebres. Por que, então, o Espiritismo, que não tem culto nem igreja, e cujos padres só existem na imaginação, levanta tanta animosidade? Coisa bizarra! o partido religioso e o partido materialista, que são a negação um do outro, dão-se as mãos para nos pulverizar, segundo dizem. Realmente o espírito humano apresenta caprichos singulares quando enceguecido pela paixão, e a história do Espiritismo terá coisas divertidas para registrar.


8. – A reposta está por inteiro nesta conclusão da brochura do Rev. Pe. Nampon: “Em geral nada é mais abjeto, mais degradante, mais vazio de fundo e de atrativo na forma que tais publicações, cujo sucesso fabuloso é um dos sintomas mais alarmantes de nossa época. Destruí-os, pois, e nada perdereis com isso. Com o dinheiro gasto em Lyon para essas inépcias, facilmente se teriam criado mais leitos nos hospitais de alienados, superlotados desde a invasão do Espiritismo. E que faremos dessas brochuras perniciosas? Faremos o mesmo que fez o grande apóstolo em Éfeso; e assim agindo conservaremos em nosso meio o império da razão e da fé, preservando as vítimas dessas lamentáveis ilusões de uma porção de decepções na vida presente e das chamas da eternidade infeliz.”


9. – Esse sucesso fabuloso é que confunde os nossos adversários. Eles não podem compreender a inutilidade de tudo quanto fazem para travar essa ideia que passa por cima de suas ciladas, endireita-se sob os seus golpes e prossegue sua marcha ascendente sem se preocupar com as pedras que lhe atiram. Isto é um fato indubitável e constatado muitas vezes pelos adversários desta ou daquela categoria, em suas prédicas e publicações. Todos deploram o progresso incrível dessa epidemia, que ataca até os homens de ciência, os médicos e os magistrados. Na verdade é preciso voltar do Texas para dizer que o Espiritismo está morto e ninguém mais fala dele. (Vide a Revista de fevereiro de 1863.)

Que fazemos para triunfar? Vamos pregar o Espiritismo nas praças? Convocamos o público às nossas reuniões? Temos missionários de propaganda? Contamos com o apoio da imprensa? Temos, enfim, todos os meios de ação, ostensivos e secretos, que possuís e usais com tanta prodigalidade? Não; para recrutar partidários temos mil vezes menos trabalho do que vós para os desviar. Contentamo-nos em dizer: “Lede; e se isto vos convém, voltai a nós.” Fazemos mais, dizendo: “Lede os prós e os contras e comparai.” Respondemos aos vossos ataques sem fel sem animosidade, sem acrimônia, porque não temos cólera. Longe de nos lamentarmos da vossa, nós a aplaudimos, porque ela serve à nossa causa. Eis entre milhares uma prova da força persuasiva dos argumentos dos nossos adversários. Um senhor que acaba de escrever à Sociedade de Paris, pedindo para dela fazer parte, assim começa sua carta: “A leitura de: A questão do Sobrenatural, os mortos e os vivos, do Padre Matignon; A questão dos Espíritos, do Sr. de Mirville; O Espírito batedor, do Dr. Bronson, e, finalmente, diversos artigos contra o Espiritismo, não fizeram senão que eu aderisse completamente à doutrina exposta em O Livro dos Espíritos e me deram o mais vivo desejo de fazer parte da Sociedade Espírita de Paris, para poder continuar o estudo do Espiritismo de maneira mais seguida e mais proveitosa.”


10. – Por vezes a paixão cega, a ponto de fazer cometer singulares inconsequências. Na passagem citada acima, o Rev. Pe. Nampon diz que “nada é mais vazio de atrativo que essas publicações, cujo sucesso fabuloso, etc.” Não percebe ele que essas duas proposições se destroem reciprocamente; uma coisa sem atrativo não poderia ter nenhum sucesso, porquanto só o terá com a condição de ter atrativo; com mais forte razão quando o sucesso é fabuloso.

Acrescenta que com o dinheiro gasto em Lyon com essas inépcias, facilmente teriam sido criados mais leitos nos hospícios de alienados daquela cidade, superlotados desde a invasão do Espiritismo. É verdade que seriam precisos trinta a quarenta mil leitos, só em Lyon, já que todos os espíritas são loucos. Por outro lado, visto que são inépcias, nenhum valor possuem. Por que, então, lhes dar as honras de tantos sermões, pastorais e brochuras? Quanto à questão do emprego de dinheiro, sabemos que em Lyon muita gente, por certo animada de maus sentimentos, havia dito que os dois milhões fornecidos por esta cidade aos cofres de São Pedro teriam dado mais pão a muitos operários infelizes durante o inverno, ao passo que a leitura dos livros espíritas lhes deu coragem e resignação para suportar sua miséria sem revolta.

O Pe. Nampon não é feliz em suas citações. Numa passagem de O Livro dos Espíritos ele nos faz dizer: “Há tanta distância entre a alma do animal e a alma do homem, quanto entre a alma do homem e a alma de Deus.” (Nº 597). Nós dissemos: …quanto entre a alma do homem e Deus, o que é muito diferente. A alma de Deus implica uma espécie de assimilação entre Deus e as criaturas corpóreas. Compreende-se a omissão de uma palavra por inadvertência ou erro tipográfico; mas não se acrescenta uma palavra sem intenção. Por que essa adição, que desnatura o sentido do pensamento, senão para dar um tom materialista aos olhos dos que se contentarem em ler a citação sem a verificar no original? Um livro que apareceu pouco antes de O Livro dos Espíritos, e que contém toda uma teoria cosmogônica, faz de Deus um ser muito diversamente material, porque composto de todos os globos do Universo, moléculas do ser universal, que tem um estômago, come e digere, e do qual os homens são o mau produto de sua digestão; contudo, nem uma palavra foi dita para o combater: todas as cóleras se concentraram sobre O Livro dos Espíritos. Será, talvez, porque em seis anos chegou à décima edição e espalhou-se em todos os países do mundo?

Não se contentam em criticar: truncam e desnaturam as máximas para aumentar o horror que deve inspirar essa abominável doutrina e nos pôr em contradição conosco mesmo. É assim que diz o Pe. Nampon, citando uma frase da introdução de O Livro dos Espíritos, página 30III: “Certas pessoas, dizei vós mesmos, entregando-se a esses estudos perderam a razão.” Damos assim a impressão de reconhecer que o Espiritismo conduz à loucura, ao passo que, lendo todo o parágrafo XV, a acusação cai precisamente sobre aqueles que a lançam. É assim que, tomando um trecho da frase de um autor, poderíamos levá-lo à forca. Os mais sagrados autores não escapariam a essa dissecção. É com tal sistema que certos críticos esperam mudar as tendências do Espiritismo e fazer crer que ele preconiza o aborto, o adultério, o suicídio, quando demonstra peremptoriamente a sua criminalidade e as funestas consequências para o futuro.


11. – O Pe. Nampon chega mesmo a apropriar-se de citações feitas com o objetivo de refutar certas ideias. “O autor – diz ele – às vezes chama Jesus-Cristo Homem-Deus; mas alhures (O Livro dos Médiuns, página 368), num diálogo com um médium que, tomando o nome de Jesus lhe dizia: “Eu não sou Deus, mas sou seu filho”, logo replica: “Então sois Jesus? Sim – acrescenta o Pe. Nampon – Jesus é chamado Filho de Deus, mas na acepção ariana, não sendo, portanto, consubstancial com o Pai.”

Antes de mais, não era o médium que se fazia passar por Jesus, mas um Espírito, o que é muito diferente. A citação é feita precisamente para mostrar a velhacaria de certos Espíritos e prevenir os médiuns contra seus subterfúgios. Pretendeis que o Espiritismo negue a divindade do Cristo ou vistes tal proposição formulada em princípio? É, dizeis vós, a consequência de toda a doutrina. Ah! se entrarmos no terreno das interpretações, poderemos ir mais longe do que quereis. Se disséssemos, por exemplo, que o Cristo não tinha chegado à perfeição, que teve necessidade das provas da vida corpórea para progredir; que a sua paixão lhe tinha sido necessária para subir em glória, teríeis razão, porque dele não faríamos sequer um Espírito puro, enviado à Terra com missão divina, mas um simples mortal, a quem o sofrimento era necessário, a fim de progredir. Onde encontrais que tenhamos dito isto? Pois bem! aquilo que nunca dissemos, que jamais diremos, sois vós que dizeis.

Ultimamente temos visto, no parlatório de uma casa religiosa de Paris, a seguinte inscrição, impressa em letras grandes e afixada para a instrução de todos: “Foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória, e não foi senão depois de ter bebido a longos sorvos na torrente da tribulação e do sofrimento que foi elevado ao mais alto dos céus.” (Salmo 110, v. 7.) É o comentário deste versículo, cujo texto é: “Ele beberá no caminho a água da torrente e é por ali que erguerá a cabeça (De torrente in via bibet: propterea exultabit caput [Psalmorum])”. Se, pois, “foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória; se não pôde ser elevado ao mais alto dos céus senão pelas tribulações e pelo sofrimento”, é que antes nem estava na glória nem no mais alto dos céus; por conseguinte não era Deus. Seus sofrimentos, pois, não aproveitavam somente à Humanidade, desde que necessários ao seu próprio adiantamento. Dizer que o Cristo tinha necessidade de sofrer para elevar-se é dizer que não era perfeito antes de sua vinda. Não conhecemos protesto mais enérgico contra a sua divindade. Se tal é o sentido do versículo do salmo que se canta nas vésperas todos os domingos cantam a não divindade do Cristo.

Com o sistema de interpretação vai-se muito longe, dizíamos nós. Se quiséssemos citar a de alguns concílios sobre este outro versículo: “O Senhor está a vossa direita; ele destruirá os reis no dia de sua cólera”, seria fácil provar que daí foi tirada a justificação do regicídio.


12. – Diz ainda o Pe. Nampon: “A vida muda inteiramente de aspecto (com o Espiritismo). A imortalidade da alma reduz-se a uma permanência material, sem identidade moral, sem consciência do passado.”

É um erro. O Espiritismo jamais disse que a alma ficasse sem consciência do passado. Ela perde momentaneamente a sua lembrança durante a vida corpórea, mas “quando o Espírito volta à vida anterior (a vida espírita), diante dos olhos se lhe estende toda a sua vida pretérita. Vê as faltas que cometeu e que deram causa ao seu sofrer, assim como de que modo as teria evitado. Reconhece justa a situação em que se acha e busca então uma existência capaz de reparar a que acaba de transcorrer.” (O Livro dos Espíritos, nº 393.) Uma vez que há lembrança do passado, consciência do ser, há então, identidade moral; desde que a vida espiritual é a vida normal do Espírito, que as existências corpóreas não passam de pontos na vida espírita, a imortalidade não se reduz a uma permanência material. Como se vê, o Espiritismo diz exatamente o contrário. Desnaturando-o assim, o Pe. Nampon não tem a desculpa da ignorância, porque suas citações provam que leu, mas se equivoca ao truncar citações e ao fazê-lo dizer o contrário do que diz.


13. – O Espiritismo é acusado por alguns de estribar-se no mais grosseiro materialismo, porque admite o perispírito, que tem propriedades materiais. É ainda uma falsa consequência, tirada de um princípio referido incompletamente. O Espiritismo jamais confundiu a alma com o perispírito, que não passa de um envoltório, como o corpo é um outro. Tivesse ela dez envoltórios e isto nada tiraria à sua essência imaterial. Já o mesmo não se dá com a doutrina adotada pelo concílio de Viena, no Dauphiné, na sua segunda sessão, em 3 de abril de 1312. Segundo essa doutrina, “a autoridade da Igreja ordena crer que a alma não passa da forma substancial do corpo; que não há ideias inatas e declara heréticos os que negarem a materialidade da alma.” Raul Fornier, professor de Direito ensina positivamente a mesma coisa em seus discursos acadêmicos, impressos em Paris em 1619, com aprovação e elogios de vários doutores em teologia.

É provável que o concílio, baseando-se nos fatos de numerosas manifestações espíritas visíveis e tangíveis, referidas nas Escrituras, manifestações que não deixam de ser materiais, pois ferem os sentidos, tenha confundido a alma com o envoltório fluídico ou perispírito, cuja distinção o Espiritismo demonstra. Sua doutrina é, pois, menos materialista que a do concílio.


14. – “Mas abordemos sem hesitar o homem da França, que é o mais adiantado nesses estudos. Para constatar a identidade do Espírito que fala, é preciso, diz o Sr. Allan Kardec, estudar sua linguagem. Pois bem! Que seja! Conhecemos por seus escritos autênticos o pensamento certo e, conseguintemente, a linguagem de São João, São Paulo, Santo Agostinho, Fénelon, etc. Como, pois, em vossos livros, ousais atribuir a esses grandes gênios pensamentos e sentimentos inteiramente contrários aos que ficaram para sempre consignados em suas obras?”

Assim, admitis que essas personagens em nada se enganaram; que tudo quanto escreveram é a expressão da verdade; que se hoje voltassem corporalmente deveriam ensinar tudo o que ensinaram outrora; que, vindo como Espírito, não devem renegar nenhuma de suas palavras. Entretanto, Santo Agostinho olhava como heresia a crença na redondeza da Terra e nos antípodas. Sustentava a existência dos íncubos e súcubos e acreditava na procriação pelo comércio dos homens com os Espíritos. Credes que a tal respeito e como Espírito não possa pensar de modo diverso do que pensava como homem e que hoje professasse essas doutrinas? Se suas ideias houveram de modificar-se em certos pontos, podem perfeitamente ter sido mudadas em outros. Se se enganou, logo ele, gênio incontestavelmente superior, por que vós mesmos não vos enganaríeis? Para respeitar a ortodoxia será preciso negar a Agostinho o direito, melhor dizendo, o mérito de retratar-se de seus erros?


15. – “Atribuís a São Luís esta sentença ridícula, sobretudo em sua boca, contra a eternidade das penas: Supor Espíritos incuráveis é negar a lei do progresso.” (O Livro dos Espíritos, nº 1007.)

Não é assim que ela é formulada. À pergunta: Haverá Espíritos que nunca se arrependam? respondeu São Luís: “Há os de arrependimento muito tardio; porém, pretender-se que nunca se melhorarão fora negar a lei do progresso e dizer que a criança não pode tornar-se homem.” A primeira forma poderia parecer ridícula. Por que, então, sempre truncar e desnaturar as frases? A quem pensam enganar? aos que apenas lerem esses comentários inexatos? Mas seu número é muito pequeno, perto dos que querem conhecer o fundo das coisas sobre as quais vós mesmos chamais a atenção. Ora, a comparação não pode senão favorecer o Espiritismo.


Nota. – Para a edificação de todos, recomendamos a leitura da brochura intitulada: Do Espiritismo, pelo Rev. Pe. Nampon [Adrien Nampon], da Companhia de Jesus, Livraria Girard et Josserand, Lyon, place Bellecour, nº 30; Paris, rue Cassette, nº 5. Rogamos também ler em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns os textos completos, citados resumidamente ou deturpados na brochura acima referida. [Vide ainda do Pe. Nampon Catholic doctrine as defined by the Council of Trent - Google Books.]









Maio

1. – De vários pontos nos assinalam novas prédicas contra o Espiritismo, todas no mesmo espírito daquelas de que temos falado; e como não passam, quase sempre, de variantes do mesmo pensamento, em termos mais ou menos escolhidos, julgamos supérfluo fazer-lhes a análise. Limitar-nos-emos a destacar certas passagens, acompanhando-as de algumas reflexões.


“Meus irmãos, é um cristão que fala a cristãos e, nessa qualidade, temos o direito de nos admirarmos, vendo o Espiritismo crescer entre nós. O que é o Espiritismo, eu vos pergunto, senão um mosaico de horrores que só a loucura pode justificar?”

A isto nada temos a dizer, senão que todas as prédicas feitas nesta cidade foram incapazes de deter o crescimento do Espiritismo, como bem constata o orador; portanto, os argumentos que lhe opõem têm menos autoridade que os seus; e, se as prédicas emanam de Deus e o Espiritismo procede do diabo, é que este é mais poderoso que Deus. Nada mais brutal que um fato. Ora, a propagação do Espiritismo, em consequência mesma das prédicas, é um fato notório, e por certo as pessoas julgam que os argumentos por ele dados são mais convincentes que os dos adversários. É uma trama de horrores. Seja. Mas haveis de concordar que se esses Espíritos viessem abraçar todas as vossas ideias, em vez de demônios, deles faríeis santos; e, longe de condenar as evocações, vós as encorajaríeis.


2. – “Nosso século não respeita mais nada; nem mesmo a cinza dos túmulos é poupada, pois insensatos ousam chamar os mortos para conversar com eles. Infelizmente é assim. Eis até onde chegou esse pretenso século das luzes: conversar com as almas do outro mundo.”

Conversar com os mortos não é privilégio deste século, já que a história de todos os povos comprova que isto tem ocorrido em todos os tempos. A única diferença é que hoje isto é feito em toda parte sem os acessórios supersticiosos com que outrora cercavam as evocações, e com um sentimento mais religioso e mais respeitoso. De duas uma: ou a coisa é possível, ou não é. Se não é, é uma crença ilusória; tal como acreditar na fatalidade da sexta-feira, na influência do sal derramado. Não vemos, pois, que haja tantos horrores e que sé falte com o respeito conversando com seres que já não pertencem a este mundo. Se os mortos vêm conversar conosco, só pode ser com a permissão de Deus, a menos que se pretenda que venham sem essa permissão, ou contra a sua vontade, o que implicaria que Deus não se importa com isso ou que os evocadores são mais poderosos que Deus. Mas notai as contradições: de um lado dizeis que só o diabo se comunica e, de outro, que se perturbam as cinzas dos mortos, chamando-os. Se é o diabo, não são os mortos; portanto, não são perturbados nem se lhes falta com o respeito. Se são os mortos, então não é o diabo. Seria preciso, ao menos, que vos pusésseis de acordo sobre este ponto capital. Admitindo que sejam os mortos, reconhecemos que haveria profanação em chamá-los levianamente, por razões fúteis, sobretudo para fazer disto profissão lucrativa. Condenamos todas essas coisas e não nos responsabilizamos pelos que se afastam dos princípios do Espiritismo sério. Não assumais responsabilidade pelos falsos devotos, que da religião só têm a máscara, que pregam o que não praticam ou que especulam com as coisas santas. Certamente evocações feitas em condições burlescas atribuídas a um eloquente orador que citamos mais adiante, seriam um sacrilégio; mas, graças a Deus, não nos envolvemos com isso e não cremos que a do Sr. Viennois, igualmente referida adiante [v. Sr. Philibert 5iennois], esteja neste caso.


3. – “Eu mesmo testemunhei estes fatos e ouvi pregar a moral, a caridade; é verdade. Mas sobre que se apoiam esta moral e esta caridade? Ah! sobre nada, porquanto não se pode chamar moral uma doutrina que nega as penas eternas.”

Se essa moral leva a fazer o bem sem o temor das penas eternas, é mais meritória ainda. Outrora se julgava impossível manter a disciplina na escola sem o medo da palmatória. Eram melhores os estudantes? Não; hoje ela não é mais usada e eles não são piores: ao contrário. Logo, o regime atual é preferível.

Julga-se a qualidade de um meio pelos seus efeitos. Aliás, a quem se dirige essa moral? Exatamente aos que não acreditam nas penas eternas, e a quem damos um freio, que aceitam, ao passo que não lhos dais, uma vez que não aceitam o vosso. Impedimos acreditem na danação absoluta aqueles a quem isto convém? Absolutamente. Ainda uma vez, não nos dirigimos aos que têm fé e aos quais esta basta, mas aos que não a têm ou duvidam. Preferiríeis que eles ficassem na incredulidade absoluta? Seria pouco caridoso. Temeis que vos tomem ovelhas? É que não tendes muita confiança no poder de vossos meios para retê-las; é que receais que elas sejam atraídas pela erva tenra do perdão e da misericórdia divina. Acreditais, então, que as que vacilam na incerteza preferirão as labaredas do inferno? Por outro lado, quem deve estar mais convencido das penas eternas, senão os que são alimentados no seio da Igreja? Ora, dizei por que essa perspectiva não deteve todos os escândalos, todas as atrocidades, todas as prevaricações contra as leis divinas e humanas, que pululam na História e se reproduzem incessantemente em nossos dias? São crimes ou não? Se, pois, os que fazem profissão desta crença não são tolhidos em suas ações, como querer que o sejam os que não creem? Não; ao homem esclarecido de nossos dias é preciso outro freio: aquele que sua razão admite. Ora, a crença nas penas eternas, talvez útil em outras épocas, está superada; extingue-se dia a dia e, por mais que fizerdes, não dareis vida a um cadáver nem fareis reviver os usos, costumes e ideias da Idade Média. Se a Igreja Católica julga sua segurança comprometida pelo desaparecimento dessa crença, devemos lamentá-la por repousar sobre base tão frágil, porque, se algo a atormenta, este é o dogma das penas eternas.


4. – “Assim, apelo à moralidade de todas as almas honestas; apelo aos magistrados, pois eles são responsáveis por todo o mal que semelhante heresia atrai sobre nossas cabeças.”

Não sabíamos que na França os magistrados fossem encarregados de instaurar processos contra as heresias, pois se entre eles há católicos, também há protestantes e judeus; assim, os próprios heréticos se incumbiriam de sua perseguição e condenação. E os há entre os funcionários da mais alta categoria.


5. – “Sim, os espíritas – e não receio declarar aqui abertamente – não apenas são passíveis da polícia correcional e da Corte Imperial, mas, também – prestai bem atenção – do tribunal do júri, porque são falsários; assinam comunicações em nome de pessoas que certamente jamais as teriam assinado em vida, pessoas que hoje eles tanto fazem falar.”

Os espíritas estão realmente muito contentes, porque Confúcio, Sócrates, Santo Agostinho, São Vicente de Paulo, Fénelon e outros não lhes podem mover processos por crimes de falsificação de escrita particular. Bem que eu sonho com isso: eles teriam uma tábua de salvação precisamente nos tribunais do júri a cuja jurisdição estão sujeitos, pois ali os jurados se pronunciam segundo a sua consciência. Ora, entre eles há também protestantes e judeus; há, até – coisa abominável! – filósofos, incrédulos, horríveis livres-pensadores que, à vista de nossas detestáveis leis modernas, se acham em toda parte. Assim, se nos acusam de fazer Santo Agostinho dizer algo de heterodoxo, sempre encontraremos jurados que nos absolvam. Ó perversidade do século! dizer que em nossos dias Voltaire, Diderot, Lutero, Calvino, João Huss, Ário teriam sido jurados por direito de nascimento, que poderiam ter sido juízes perfeitos, ministro da justiça e mesmo dos cultos! Vede-os, esses celerados infernais, a se pronunciarem sobre uma questão de heresia! Porque, para condenar a assinatura de Fénelon, posta abaixo de uma suposta comunicação herética, é preciso julgar a questão da ortodoxia; e quem será competente no júri?


6. – “Entretanto, seria tão fácil interditar semelhante impiedade! O que se precisaria fazer? quase nada; mesmo sem lhes fazer a honra da capa do comissário, podeis colocar um sargento à entrada de cada grupo para dizer: não entreis. Pinto o mal e descrevo o remédio, apenas isto, pois eu os dispenso da Inquisição.”

Muito obrigado, mas não há grande mérito em oferecer aquilo que não se tem. Infelizmente, para vós, não podeis contar com a Inquisição, sem o que seria duvidoso que nos liberásseis dela. O que não dizeis aos magistrados, visando à interdição da entrada dos templos judeus e protestantes, onde se pregam publicamente dogmas que não são os vossos? Quanto aos espíritas, não têm templos nem sacerdotes, mas – o que para vós é a mesma coisa – grupos, à entrada dos quais basta pôr um sargento para que tudo fique dito. Realmente é muito simples. Mas esqueceis que os Espíritos ignoram qualquer proibição e entram em toda parte sem pedir permissão, mesmo em vossa casa, pois os tendes ao vosso lado, escutando-vos, sem que o suspeiteis e, ademais, vos falando ao ouvido. Trazei à memória as vossas lembranças e vereis que tivestes mais de uma manifestação, mesmo sem a haverdes buscado.

Pareceis ignorar uma coisa que é bom saibais. Os grupos espíritas não são absolutamente necessários; são simples reuniões onde se sentem felizes por encontrar-se pessoas que pensam do mesmo modo. E a prova disto é que hoje, na França, há mais de 600.000 espíritas, 99% dos quais não fazem parte de nenhum grupo e neles jamais puseram os pés; que eles não existem numa porção de cidades; que nem os grupos nem as sociedades abrem suas portas ao público para pregar suas doutrinas aos transeuntes; que o Espiritismo se prega por si mesmo e pela força das coisas, porque responde a uma necessidade da época; que as ideias espíritas estão no ar e são aspiradas por todos os poros da inteligência; que o contágio está no exemplo dos que são felizes com essas crenças e que são encontrados por toda parte, na sociedade, sem que se precise procurá-los nos grupos. Assim, não são os grupos que fazem a propaganda, pois não apelam ao primeiro que apareça; ela é feita pouco a pouco, de indivíduo a indivíduo. Se, portanto, admitíssemos a interdição de todas as reuniões, os espíritas ficariam livres para se reunirem em família, como já ocorre em milhares de lugares, sem que o Espiritismo nada sofra com isso; muito ao contrário, pois temos sempre condenado as grandes assembleias, que são mais prejudiciais que úteis; além disso, a intimidade é reconhecida como a condição mais favorável às manifestações. Interditaríeis as reuniões familiares? Colocaríeis um sargento à porta de um salão para vigiar o que se passa à lareira? Isto não se faz na Espanha, nem em Roma, onde há mais espíritas e médiuns do que pensais. Só faltava isso para aumentar ainda mais a importância do Espiritismo.

Admitamos agora a interdição legal dos grupos. Sabeis o que fariam esses espíritas que acusais de semear a desordem? Eles diriam: Respeitamos a lei; dura lex, sed lex [A lei é dura mais é lei]. Vamos dar o exemplo, mostrando que, se pregamos a união, a paz e a concórdia, não é para nos transformarmos em promotores de desordens. As sociedades organizadas não são necessárias à existência do Espiritismo; não há entre elas nenhuma solidariedade material que possa ser quebrada por sua supressão. O que os Espíritos aí ensinam, igualmente ensinam numa conversa particular entre duas pessoas, porque o Espiritismo tem o incrível privilégio de ter o seu foco de ensino por toda parte. Seu sinal de ligação é o amor de Deus e do próximo e, para o pôr em prática, não há necessidade de reuniões oficiais, pois ele tanto se estende sobre os amigos quanto sobre os inimigos. Qualquer um pode dizer o mesmo; e mais de uma vez a autoridade não tem encontrado resistência onde esperava encontrar a maior submissão? Se os espíritas fossem pessoas tão turbulentas e tão pervertidas quanto pretendeis, por que os funcionários encarregados da manutenção da ordem têm menos trabalho nos centros onde eles constituem maioria? Um funcionário chegou a dizer que se todos os seus administrados fossem espíritas, sua repartição podia ser fechada. Por que há menos penas disciplinares entre os militares espíritas?

E, depois, não pensais que atualmente há espíritas em toda parte, de alto a baixo na escala social; que há reuniões e médiuns até em casa daqueles que invocais contra nós. Vede, pois, que o vosso meio é insuficiente; é preciso buscar outro. – Temos a condenação fulminante do púlpito. – Está bem; e vós a usais largamente. Mas não vedes que por toda parte onde lançam raios o número de espíritas aumenta? – Temos a censura da Igreja e a excomunhão. – É melhor; mas ainda uma vez bateis no vazio. Repetimos: o Espiritismo nem se dirige a vós nem aos que estão convosco; não os vai buscar e dizer-lhes: deixai a vossa religião e segui-me; sereis danados se não o fizerdes. Não; ele é mais tolerante que isso e deixa a cada um a liberdade de consciência. Como já dissemos, ele se dirige à massa inumerável dos incrédulos, aos que duvidam e aos indiferentes; estes não estão convosco e vossas censuras não os podem atingir. Eles vinham a vós, mas os repelíeis. Quanta inabilidade! Se alguns dos vossos os seguem, é que vossos argumentos não são bastante fortes para os reter e não é com rigor que o conseguireis. O Espiritismo agrada porque não se impõe e é aceito pela vontade e o livre-exame. Nisto ele é de nossa época. Agrada pela doçura, pelas consolações que prodigaliza nas adversidades, pela fé inabalável que dá no futuro, na bondade e na misericórdia de Deus. Além disso, ele se apoia em fatos patentes, materiais, irrecusáveis, que desafiam toda negação. Eis o segredo de sua tão rápida propagação. Que lhe opondes? Sempre a danação eterna, expediente ruim para os tempos que correm; depois a deturpação de suas doutrinas: vós o acusais de pregar o aborto,, o adultério e todos os crimes. A quem pensais impor isto? Não aos espíritas, certamente. Aos que não o conhecem? Mas nesse número muitos querem saber o que é essa abominável doutrina; leem, e vendo que ela diz exatamente o contrário do que lhe atribuem, vos deixam para a seguir. E isto sem que ele os vá procurar.

A posição, bem o sei, é embaraçosa: Se falamos contra o Espiritismo – dizeis – recrutamos-lhe partidários; se nos calamos, ele marcha sozinho. Que fazer então? Outrora se dizia: Deixai passar a justiça do rei; agora é preciso dizer: Deixemos passar a justiça de Deus.

(Continua no próximo número)


7. ALGUMAS REFUTAÇÕES.

(2° artigo. – Ver o número de maio.) [Revista de junho de 1863.]

Toda ideia nova encontra forçosamente oposição, por parte daqueles cujas opiniões e interesses contraria. Julgam alguns que a Igreja está comprometida – pensamos que não, mas nossa opinião não faz lei – razão por que nos atacam em seu nome com um furor ao qual só faltam as grandes execuções da Idade Média. Os sermões, as instruções pastorais lançam raios em todas as direções; as brochuras e artigos de jornais chovem em grande quantidade, na maioria com um cinismo de expressão pouquíssimo evangélico. Em vários deles é um raio que toca o frenesi. Por que, então, essa exibição de força e tanta cólera? Porque dizemos que Deus perdoa à criatura que se arrepende e que as penas só seriam eternas para aquelas que jamais se arrependessem, e porque proclamamos a bondade e a clemência de Deus, somos heréticos votados à execração e a sociedade está perdida. Apontam-nos como perturbadores; desafiam a autoridade a nos perseguir em nome da moral e da ordem pública; alegam que aquela não cumpre o seu dever deixando-nos tranquilos!

Aqui se apresenta um problema interessante. Pergunta-se por que essa violência contra o Espiritismo, e não contra tantas outras teorias filosóficas ou religiosas muito menos ortodoxas? A Igreja fulminou o materialismo, que tudo nega, como o faz contra o Espiritismo, que se limita à interpretação de alguns dogmas? Esses dogmas e muitos outros não foram tantas vezes negados, discutidos, polemizados numa porção de escritos que ela deixa passar despercebidos? Os princípios fundamentais da fé – Deus, a alma e a imortalidade – não foram publicamente atacados sem que ela se perturbasse? Jamais o saint-simonismo, o fourierismo, a própria Igreja do padre Chatel levantaram tantas cóleras, sem falar de outras seitas menos conhecidas, tais como os fusionistas, cujo chefe acaba de morrer, que têm um culto, seu jornal e não admitem a divindade do Cristo; os católicos apostólicos, que não reconhecem o papa, que têm seus padres e bispos casados, suas igrejas em Paris e nas províncias, onde batizam, casam e promovem cerimônias fúnebres. Por que, então, o Espiritismo, que não tem culto nem igreja, e cujos padres só existem na imaginação, levanta tanta animosidade? Coisa bizarra! o partido religioso e o partido materialista, que são a negação um do outro, dão-se as mãos para nos pulverizar, segundo dizem. Realmente o espírito humano apresenta caprichos singulares quando enceguecido pela paixão, e a história do Espiritismo terá coisas divertidas para registrar.


8. – A reposta está por inteiro nesta conclusão da brochura do Rev. Pe. Nampon: “Em geral nada é mais abjeto, mais degradante, mais vazio de fundo e de atrativo na forma que tais publicações, cujo sucesso fabuloso é um dos sintomas mais alarmantes de nossa época. Destruí-os, pois, e nada perdereis com isso. Com o dinheiro gasto em Lyon para essas inépcias, facilmente se teriam criado mais leitos nos hospitais de alienados, superlotados desde a invasão do Espiritismo. E que faremos dessas brochuras perniciosas? Faremos o mesmo que fez o grande apóstolo em Éfeso; e assim agindo conservaremos em nosso meio o império da razão e da fé, preservando as vítimas dessas lamentáveis ilusões de uma porção de decepções na vida presente e das chamas da eternidade infeliz.”


9. – Esse sucesso fabuloso é que confunde os nossos adversários. Eles não podem compreender a inutilidade de tudo quanto fazem para travar essa ideia que passa por cima de suas ciladas, endireita-se sob os seus golpes e prossegue sua marcha ascendente sem se preocupar com as pedras que lhe atiram. Isto é um fato indubitável e constatado muitas vezes pelos adversários desta ou daquela categoria, em suas prédicas e publicações. Todos deploram o progresso incrível dessa epidemia, que ataca até os homens de ciência, os médicos e os magistrados. Na verdade é preciso voltar do Texas para dizer que o Espiritismo está morto e ninguém mais fala dele. (Vide a Revista de fevereiro de 1863.)

Que fazemos para triunfar? Vamos pregar o Espiritismo nas praças? Convocamos o público às nossas reuniões? Temos missionários de propaganda? Contamos com o apoio da imprensa? Temos, enfim, todos os meios de ação, ostensivos e secretos, que possuís e usais com tanta prodigalidade? Não; para recrutar partidários temos mil vezes menos trabalho do que vós para os desviar. Contentamo-nos em dizer: “Lede; e se isto vos convém, voltai a nós.” Fazemos mais, dizendo: “Lede os prós e os contras e comparai.” Respondemos aos vossos ataques sem fel sem animosidade, sem acrimônia, porque não temos cólera. Longe de nos lamentarmos da vossa, nós a aplaudimos, porque ela serve à nossa causa. Eis entre milhares uma prova da força persuasiva dos argumentos dos nossos adversários. Um senhor que acaba de escrever à Sociedade de Paris, pedindo para dela fazer parte, assim começa sua carta: “A leitura de: A questão do Sobrenatural, os mortos e os vivos, do Padre Matignon; A questão dos Espíritos, do Sr. de Mirville; O Espírito batedor, do Dr. Bronson, e, finalmente, diversos artigos contra o Espiritismo, não fizeram senão que eu aderisse completamente à doutrina exposta em O Livro dos Espíritos e me deram o mais vivo desejo de fazer parte da Sociedade Espírita de Paris, para poder continuar o estudo do Espiritismo de maneira mais seguida e mais proveitosa.”


10. – Por vezes a paixão cega, a ponto de fazer cometer singulares inconsequências. Na passagem citada acima, o Rev. Pe. Nampon diz que “nada é mais vazio de atrativo que essas publicações, cujo sucesso fabuloso, etc.” Não percebe ele que essas duas proposições se destroem reciprocamente; uma coisa sem atrativo não poderia ter nenhum sucesso, porquanto só o terá com a condição de ter atrativo; com mais forte razão quando o sucesso é fabuloso.

Acrescenta que com o dinheiro gasto em Lyon com essas inépcias, facilmente teriam sido criados mais leitos nos hospícios de alienados daquela cidade, superlotados desde a invasão do Espiritismo. É verdade que seriam precisos trinta a quarenta mil leitos, só em Lyon, já que todos os espíritas são loucos. Por outro lado, visto que são inépcias, nenhum valor possuem. Por que, então, lhes dar as honras de tantos sermões, pastorais e brochuras? Quanto à questão do emprego de dinheiro, sabemos que em Lyon muita gente, por certo animada de maus sentimentos, havia dito que os dois milhões fornecidos por esta cidade aos cofres de São Pedro teriam dado mais pão a muitos operários infelizes durante o inverno, ao passo que a leitura dos livros espíritas lhes deu coragem e resignação para suportar sua miséria sem revolta.

O Pe. Nampon não é feliz em suas citações. Numa passagem de O Livro dos Espíritos ele nos faz dizer: “Há tanta distância entre a alma do animal e a alma do homem, quanto entre a alma do homem e a alma de Deus.” (Nº 597). Nós dissemos: …quanto entre a alma do homem e Deus, o que é muito diferente. A alma de Deus implica uma espécie de assimilação entre Deus e as criaturas corpóreas. Compreende-se a omissão de uma palavra por inadvertência ou erro tipográfico; mas não se acrescenta uma palavra sem intenção. Por que essa adição, que desnatura o sentido do pensamento, senão para dar um tom materialista aos olhos dos que se contentarem em ler a citação sem a verificar no original? Um livro que apareceu pouco antes de O Livro dos Espíritos, e que contém toda uma teoria cosmogônica, faz de Deus um ser muito diversamente material, porque composto de todos os globos do Universo, moléculas do ser universal, que tem um estômago, come e digere, e do qual os homens são o mau produto de sua digestão; contudo, nem uma palavra foi dita para o combater: todas as cóleras se concentraram sobre O Livro dos Espíritos. Será, talvez, porque em seis anos chegou à décima edição e espalhou-se em todos os países do mundo?

Não se contentam em criticar: truncam e desnaturam as máximas para aumentar o horror que deve inspirar essa abominável doutrina e nos pôr em contradição conosco mesmo. É assim que diz o Pe. Nampon, citando uma frase da introdução de O Livro dos Espíritos, página 30III: “Certas pessoas, dizei vós mesmos, entregando-se a esses estudos perderam a razão.” Damos assim a impressão de reconhecer que o Espiritismo conduz à loucura, ao passo que, lendo todo o parágrafo XV, a acusação cai precisamente sobre aqueles que a lançam. É assim que, tomando um trecho da frase de um autor, poderíamos levá-lo à forca. Os mais sagrados autores não escapariam a essa dissecção. É com tal sistema que certos críticos esperam mudar as tendências do Espiritismo e fazer crer que ele preconiza o aborto, o adultério, o suicídio, quando demonstra peremptoriamente a sua criminalidade e as funestas consequências para o futuro.


11. – O Pe. Nampon chega mesmo a apropriar-se de citações feitas com o objetivo de refutar certas ideias. “O autor – diz ele – às vezes chama Jesus-Cristo Homem-Deus; mas alhures (O Livro dos Médiuns, página 368), num diálogo com um médium que, tomando o nome de Jesus lhe dizia: “Eu não sou Deus, mas sou seu filho”, logo replica: “Então sois Jesus? Sim – acrescenta o Pe. Nampon – Jesus é chamado Filho de Deus, mas na acepção ariana, não sendo, portanto, consubstancial com o Pai.”

Antes de mais, não era o médium que se fazia passar por Jesus, mas um Espírito, o que é muito diferente. A citação é feita precisamente para mostrar a velhacaria de certos Espíritos e prevenir os médiuns contra seus subterfúgios. Pretendeis que o Espiritismo negue a divindade do Cristo ou vistes tal proposição formulada em princípio? É, dizeis vós, a consequência de toda a doutrina. Ah! se entrarmos no terreno das interpretações, poderemos ir mais longe do que quereis. Se disséssemos, por exemplo, que o Cristo não tinha chegado à perfeição, que teve necessidade das provas da vida corpórea para progredir; que a sua paixão lhe tinha sido necessária para subir em glória, teríeis razão, porque dele não faríamos sequer um Espírito puro, enviado à Terra com missão divina, mas um simples mortal, a quem o sofrimento era necessário, a fim de progredir. Onde encontrais que tenhamos dito isto? Pois bem! aquilo que nunca dissemos, que jamais diremos, sois vós que dizeis.

Ultimamente temos visto, no parlatório de uma casa religiosa de Paris, a seguinte inscrição, impressa em letras grandes e afixada para a instrução de todos: “Foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória, e não foi senão depois de ter bebido a longos sorvos na torrente da tribulação e do sofrimento que foi elevado ao mais alto dos céus.” (Salmo 110, v. 7.) É o comentário deste versículo, cujo texto é: “Ele beberá no caminho a água da torrente e é por ali que erguerá a cabeça (De torrente in via bibet: propterea exultabit caput [Psalmorum])”. Se, pois, “foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória; se não pôde ser elevado ao mais alto dos céus senão pelas tribulações e pelo sofrimento”, é que antes nem estava na glória nem no mais alto dos céus; por conseguinte não era Deus. Seus sofrimentos, pois, não aproveitavam somente à Humanidade, desde que necessários ao seu próprio adiantamento. Dizer que o Cristo tinha necessidade de sofrer para elevar-se é dizer que não era perfeito antes de sua vinda. Não conhecemos protesto mais enérgico contra a sua divindade. Se tal é o sentido do versículo do salmo que se canta nas vésperas todos os domingos cantam a não divindade do Cristo.

Com o sistema de interpretação vai-se muito longe, dizíamos nós. Se quiséssemos citar a de alguns concílios sobre este outro versículo: “O Senhor está a vossa direita; ele destruirá os reis no dia de sua cólera”, seria fácil provar que daí foi tirada a justificação do regicídio.


12. – Diz ainda o Pe. Nampon: “A vida muda inteiramente de aspecto (com o Espiritismo). A imortalidade da alma reduz-se a uma permanência material, sem identidade moral, sem consciência do passado.”

É um erro. O Espiritismo jamais disse que a alma ficasse sem consciência do passado. Ela perde momentaneamente a sua lembrança durante a vida corpórea, mas “quando o Espírito volta à vida anterior (a vida espírita), diante dos olhos se lhe estende toda a sua vida pretérita. Vê as faltas que cometeu e que deram causa ao seu sofrer, assim como de que modo as teria evitado. Reconhece justa a situação em que se acha e busca então uma existência capaz de reparar a que acaba de transcorrer.” (O Livro dos Espíritos, nº 393.) Uma vez que há lembrança do passado, consciência do ser, há então, identidade moral; desde que a vida espiritual é a vida normal do Espírito, que as existências corpóreas não passam de pontos na vida espírita, a imortalidade não se reduz a uma permanência material. Como se vê, o Espiritismo diz exatamente o contrário. Desnaturando-o assim, o Pe. Nampon não tem a desculpa da ignorância, porque suas citações provam que leu, mas se equivoca ao truncar citações e ao fazê-lo dizer o contrário do que diz.


13. – O Espiritismo é acusado por alguns de estribar-se no mais grosseiro materialismo, porque admite o perispírito, que tem propriedades materiais. É ainda uma falsa consequência, tirada de um princípio referido incompletamente. O Espiritismo jamais confundiu a alma com o perispírito, que não passa de um envoltório, como o corpo é um outro. Tivesse ela dez envoltórios e isto nada tiraria à sua essência imaterial. Já o mesmo não se dá com a doutrina adotada pelo concílio de Viena, no Dauphiné, na sua segunda sessão, em 3 de abril de 1312. Segundo essa doutrina, “a autoridade da Igreja ordena crer que a alma não passa da forma substancial do corpo; que não há ideias inatas e declara heréticos os que negarem a materialidade da alma.” Raul Fornier, professor de Direito ensina positivamente a mesma coisa em seus discursos acadêmicos, impressos em Paris em 1619, com aprovação e elogios de vários doutores em teologia.

É provável que o concílio, baseando-se nos fatos de numerosas manifestações espíritas visíveis e tangíveis, referidas nas Escrituras, manifestações que não deixam de ser materiais, pois ferem os sentidos, tenha confundido a alma com o envoltório fluídico ou perispírito, cuja distinção o Espiritismo demonstra. Sua doutrina é, pois, menos materialista que a do concílio.


14. – “Mas abordemos sem hesitar o homem da França, que é o mais adiantado nesses estudos. Para constatar a identidade do Espírito que fala, é preciso, diz o Sr. Allan Kardec, estudar sua linguagem. Pois bem! Que seja! Conhecemos por seus escritos autênticos o pensamento certo e, conseguintemente, a linguagem de São João, São Paulo, Santo Agostinho, Fénelon, etc. Como, pois, em vossos livros, ousais atribuir a esses grandes gênios pensamentos e sentimentos inteiramente contrários aos que ficaram para sempre consignados em suas obras?”

Assim, admitis que essas personagens em nada se enganaram; que tudo quanto escreveram é a expressão da verdade; que se hoje voltassem corporalmente deveriam ensinar tudo o que ensinaram outrora; que, vindo como Espírito, não devem renegar nenhuma de suas palavras. Entretanto, Santo Agostinho olhava como heresia a crença na redondeza da Terra e nos antípodas. Sustentava a existência dos íncubos e súcubos e acreditava na procriação pelo comércio dos homens com os Espíritos. Credes que a tal respeito e como Espírito não possa pensar de modo diverso do que pensava como homem e que hoje professasse essas doutrinas? Se suas ideias houveram de modificar-se em certos pontos, podem perfeitamente ter sido mudadas em outros. Se se enganou, logo ele, gênio incontestavelmente superior, por que vós mesmos não vos enganaríeis? Para respeitar a ortodoxia será preciso negar a Agostinho o direito, melhor dizendo, o mérito de retratar-se de seus erros?


15. – “Atribuís a São Luís esta sentença ridícula, sobretudo em sua boca, contra a eternidade das penas: Supor Espíritos incuráveis é negar a lei do progresso.” (O Livro dos Espíritos, nº 1007.)

Não é assim que ela é formulada. À pergunta: Haverá Espíritos que nunca se arrependam? respondeu São Luís: “Há os de arrependimento muito tardio; porém, pretender-se que nunca se melhorarão fora negar a lei do progresso e dizer que a criança não pode tornar-se homem.” A primeira forma poderia parecer ridícula. Por que, então, sempre truncar e desnaturar as frases? A quem pensam enganar? aos que apenas lerem esses comentários inexatos? Mas seu número é muito pequeno, perto dos que querem conhecer o fundo das coisas sobre as quais vós mesmos chamais a atenção. Ora, a comparação não pode senão favorecer o Espiritismo.


Nota. – Para a edificação de todos, recomendamos a leitura da brochura intitulada: Do Espiritismo, pelo Rev. Pe. Nampon [Adrien Nampon], da Companhia de Jesus, Livraria Girard et Josserand, Lyon, place Bellecour, nº 30; Paris, rue Cassette, nº 5. Rogamos também ler em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns os textos completos, citados resumidamente ou deturpados na brochura acima referida. [Vide ainda do Pe. Nampon Catholic doctrine as defined by the Council of Trent - Google Books.]









Maio

1. – De vários pontos nos assinalam novas prédicas contra o Espiritismo, todas no mesmo espírito daquelas de que temos falado; e como não passam, quase sempre, de variantes do mesmo pensamento, em termos mais ou menos escolhidos, julgamos supérfluo fazer-lhes a análise. Limitar-nos-emos a destacar certas passagens, acompanhando-as de algumas reflexões.


“Meus irmãos, é um cristão que fala a cristãos e, nessa qualidade, temos o direito de nos admirarmos, vendo o Espiritismo crescer entre nós. O que é o Espiritismo, eu vos pergunto, senão um mosaico de horrores que só a loucura pode justificar?”

A isto nada temos a dizer, senão que todas as prédicas feitas nesta cidade foram incapazes de deter o crescimento do Espiritismo, como bem constata o orador; portanto, os argumentos que lhe opõem têm menos autoridade que os seus; e, se as prédicas emanam de Deus e o Espiritismo procede do diabo, é que este é mais poderoso que Deus. Nada mais brutal que um fato. Ora, a propagação do Espiritismo, em consequência mesma das prédicas, é um fato notório, e por certo as pessoas julgam que os argumentos por ele dados são mais convincentes que os dos adversários. É uma trama de horrores. Seja. Mas haveis de concordar que se esses Espíritos viessem abraçar todas as vossas ideias, em vez de demônios, deles faríeis santos; e, longe de condenar as evocações, vós as encorajaríeis.


2. – “Nosso século não respeita mais nada; nem mesmo a cinza dos túmulos é poupada, pois insensatos ousam chamar os mortos para conversar com eles. Infelizmente é assim. Eis até onde chegou esse pretenso século das luzes: conversar com as almas do outro mundo.”

Conversar com os mortos não é privilégio deste século, já que a história de todos os povos comprova que isto tem ocorrido em todos os tempos. A única diferença é que hoje isto é feito em toda parte sem os acessórios supersticiosos com que outrora cercavam as evocações, e com um sentimento mais religioso e mais respeitoso. De duas uma: ou a coisa é possível, ou não é. Se não é, é uma crença ilusória; tal como acreditar na fatalidade da sexta-feira, na influência do sal derramado. Não vemos, pois, que haja tantos horrores e que sé falte com o respeito conversando com seres que já não pertencem a este mundo. Se os mortos vêm conversar conosco, só pode ser com a permissão de Deus, a menos que se pretenda que venham sem essa permissão, ou contra a sua vontade, o que implicaria que Deus não se importa com isso ou que os evocadores são mais poderosos que Deus. Mas notai as contradições: de um lado dizeis que só o diabo se comunica e, de outro, que se perturbam as cinzas dos mortos, chamando-os. Se é o diabo, não são os mortos; portanto, não são perturbados nem se lhes falta com o respeito. Se são os mortos, então não é o diabo. Seria preciso, ao menos, que vos pusésseis de acordo sobre este ponto capital. Admitindo que sejam os mortos, reconhecemos que haveria profanação em chamá-los levianamente, por razões fúteis, sobretudo para fazer disto profissão lucrativa. Condenamos todas essas coisas e não nos responsabilizamos pelos que se afastam dos princípios do Espiritismo sério. Não assumais responsabilidade pelos falsos devotos, que da religião só têm a máscara, que pregam o que não praticam ou que especulam com as coisas santas. Certamente evocações feitas em condições burlescas atribuídas a um eloquente orador que citamos mais adiante, seriam um sacrilégio; mas, graças a Deus, não nos envolvemos com isso e não cremos que a do Sr. Viennois, igualmente referida adiante [v. Sr. Philibert 5iennois], esteja neste caso.


3. – “Eu mesmo testemunhei estes fatos e ouvi pregar a moral, a caridade; é verdade. Mas sobre que se apoiam esta moral e esta caridade? Ah! sobre nada, porquanto não se pode chamar moral uma doutrina que nega as penas eternas.”

Se essa moral leva a fazer o bem sem o temor das penas eternas, é mais meritória ainda. Outrora se julgava impossível manter a disciplina na escola sem o medo da palmatória. Eram melhores os estudantes? Não; hoje ela não é mais usada e eles não são piores: ao contrário. Logo, o regime atual é preferível.

Julga-se a qualidade de um meio pelos seus efeitos. Aliás, a quem se dirige essa moral? Exatamente aos que não acreditam nas penas eternas, e a quem damos um freio, que aceitam, ao passo que não lhos dais, uma vez que não aceitam o vosso. Impedimos acreditem na danação absoluta aqueles a quem isto convém? Absolutamente. Ainda uma vez, não nos dirigimos aos que têm fé e aos quais esta basta, mas aos que não a têm ou duvidam. Preferiríeis que eles ficassem na incredulidade absoluta? Seria pouco caridoso. Temeis que vos tomem ovelhas? É que não tendes muita confiança no poder de vossos meios para retê-las; é que receais que elas sejam atraídas pela erva tenra do perdão e da misericórdia divina. Acreditais, então, que as que vacilam na incerteza preferirão as labaredas do inferno? Por outro lado, quem deve estar mais convencido das penas eternas, senão os que são alimentados no seio da Igreja? Ora, dizei por que essa perspectiva não deteve todos os escândalos, todas as atrocidades, todas as prevaricações contra as leis divinas e humanas, que pululam na História e se reproduzem incessantemente em nossos dias? São crimes ou não? Se, pois, os que fazem profissão desta crença não são tolhidos em suas ações, como querer que o sejam os que não creem? Não; ao homem esclarecido de nossos dias é preciso outro freio: aquele que sua razão admite. Ora, a crença nas penas eternas, talvez útil em outras épocas, está superada; extingue-se dia a dia e, por mais que fizerdes, não dareis vida a um cadáver nem fareis reviver os usos, costumes e ideias da Idade Média. Se a Igreja Católica julga sua segurança comprometida pelo desaparecimento dessa crença, devemos lamentá-la por repousar sobre base tão frágil, porque, se algo a atormenta, este é o dogma das penas eternas.


4. – “Assim, apelo à moralidade de todas as almas honestas; apelo aos magistrados, pois eles são responsáveis por todo o mal que semelhante heresia atrai sobre nossas cabeças.”

Não sabíamos que na França os magistrados fossem encarregados de instaurar processos contra as heresias, pois se entre eles há católicos, também há protestantes e judeus; assim, os próprios heréticos se incumbiriam de sua perseguição e condenação. E os há entre os funcionários da mais alta categoria.


5. – “Sim, os espíritas – e não receio declarar aqui abertamente – não apenas são passíveis da polícia correcional e da Corte Imperial, mas, também – prestai bem atenção – do tribunal do júri, porque são falsários; assinam comunicações em nome de pessoas que certamente jamais as teriam assinado em vida, pessoas que hoje eles tanto fazem falar.”

Os espíritas estão realmente muito contentes, porque Confúcio, Sócrates, Santo Agostinho, São Vicente de Paulo, Fénelon e outros não lhes podem mover processos por crimes de falsificação de escrita particular. Bem que eu sonho com isso: eles teriam uma tábua de salvação precisamente nos tribunais do júri a cuja jurisdição estão sujeitos, pois ali os jurados se pronunciam segundo a sua consciência. Ora, entre eles há também protestantes e judeus; há, até – coisa abominável! – filósofos, incrédulos, horríveis livres-pensadores que, à vista de nossas detestáveis leis modernas, se acham em toda parte. Assim, se nos acusam de fazer Santo Agostinho dizer algo de heterodoxo, sempre encontraremos jurados que nos absolvam. Ó perversidade do século! dizer que em nossos dias Voltaire, Diderot, Lutero, Calvino, João Huss, Ário teriam sido jurados por direito de nascimento, que poderiam ter sido juízes perfeitos, ministro da justiça e mesmo dos cultos! Vede-os, esses celerados infernais, a se pronunciarem sobre uma questão de heresia! Porque, para condenar a assinatura de Fénelon, posta abaixo de uma suposta comunicação herética, é preciso julgar a questão da ortodoxia; e quem será competente no júri?


6. – “Entretanto, seria tão fácil interditar semelhante impiedade! O que se precisaria fazer? quase nada; mesmo sem lhes fazer a honra da capa do comissário, podeis colocar um sargento à entrada de cada grupo para dizer: não entreis. Pinto o mal e descrevo o remédio, apenas isto, pois eu os dispenso da Inquisição.”

Muito obrigado, mas não há grande mérito em oferecer aquilo que não se tem. Infelizmente, para vós, não podeis contar com a Inquisição, sem o que seria duvidoso que nos liberásseis dela. O que não dizeis aos magistrados, visando à interdição da entrada dos templos judeus e protestantes, onde se pregam publicamente dogmas que não são os vossos? Quanto aos espíritas, não têm templos nem sacerdotes, mas – o que para vós é a mesma coisa – grupos, à entrada dos quais basta pôr um sargento para que tudo fique dito. Realmente é muito simples. Mas esqueceis que os Espíritos ignoram qualquer proibição e entram em toda parte sem pedir permissão, mesmo em vossa casa, pois os tendes ao vosso lado, escutando-vos, sem que o suspeiteis e, ademais, vos falando ao ouvido. Trazei à memória as vossas lembranças e vereis que tivestes mais de uma manifestação, mesmo sem a haverdes buscado.

Pareceis ignorar uma coisa que é bom saibais. Os grupos espíritas não são absolutamente necessários; são simples reuniões onde se sentem felizes por encontrar-se pessoas que pensam do mesmo modo. E a prova disto é que hoje, na França, há mais de 600.000 espíritas, 99% dos quais não fazem parte de nenhum grupo e neles jamais puseram os pés; que eles não existem numa porção de cidades; que nem os grupos nem as sociedades abrem suas portas ao público para pregar suas doutrinas aos transeuntes; que o Espiritismo se prega por si mesmo e pela força das coisas, porque responde a uma necessidade da época; que as ideias espíritas estão no ar e são aspiradas por todos os poros da inteligência; que o contágio está no exemplo dos que são felizes com essas crenças e que são encontrados por toda parte, na sociedade, sem que se precise procurá-los nos grupos. Assim, não são os grupos que fazem a propaganda, pois não apelam ao primeiro que apareça; ela é feita pouco a pouco, de indivíduo a indivíduo. Se, portanto, admitíssemos a interdição de todas as reuniões, os espíritas ficariam livres para se reunirem em família, como já ocorre em milhares de lugares, sem que o Espiritismo nada sofra com isso; muito ao contrário, pois temos sempre condenado as grandes assembleias, que são mais prejudiciais que úteis; além disso, a intimidade é reconhecida como a condição mais favorável às manifestações. Interditaríeis as reuniões familiares? Colocaríeis um sargento à porta de um salão para vigiar o que se passa à lareira? Isto não se faz na Espanha, nem em Roma, onde há mais espíritas e médiuns do que pensais. Só faltava isso para aumentar ainda mais a importância do Espiritismo.

Admitamos agora a interdição legal dos grupos. Sabeis o que fariam esses espíritas que acusais de semear a desordem? Eles diriam: Respeitamos a lei; dura lex, sed lex [A lei é dura mais é lei]. Vamos dar o exemplo, mostrando que, se pregamos a união, a paz e a concórdia, não é para nos transformarmos em promotores de desordens. As sociedades organizadas não são necessárias à existência do Espiritismo; não há entre elas nenhuma solidariedade material que possa ser quebrada por sua supressão. O que os Espíritos aí ensinam, igualmente ensinam numa conversa particular entre duas pessoas, porque o Espiritismo tem o incrível privilégio de ter o seu foco de ensino por toda parte. Seu sinal de ligação é o amor de Deus e do próximo e, para o pôr em prática, não há necessidade de reuniões oficiais, pois ele tanto se estende sobre os amigos quanto sobre os inimigos. Qualquer um pode dizer o mesmo; e mais de uma vez a autoridade não tem encontrado resistência onde esperava encontrar a maior submissão? Se os espíritas fossem pessoas tão turbulentas e tão pervertidas quanto pretendeis, por que os funcionários encarregados da manutenção da ordem têm menos trabalho nos centros onde eles constituem maioria? Um funcionário chegou a dizer que se todos os seus administrados fossem espíritas, sua repartição podia ser fechada. Por que há menos penas disciplinares entre os militares espíritas?

E, depois, não pensais que atualmente há espíritas em toda parte, de alto a baixo na escala social; que há reuniões e médiuns até em casa daqueles que invocais contra nós. Vede, pois, que o vosso meio é insuficiente; é preciso buscar outro. – Temos a condenação fulminante do púlpito. – Está bem; e vós a usais largamente. Mas não vedes que por toda parte onde lançam raios o número de espíritas aumenta? – Temos a censura da Igreja e a excomunhão. – É melhor; mas ainda uma vez bateis no vazio. Repetimos: o Espiritismo nem se dirige a vós nem aos que estão convosco; não os vai buscar e dizer-lhes: deixai a vossa religião e segui-me; sereis danados se não o fizerdes. Não; ele é mais tolerante que isso e deixa a cada um a liberdade de consciência. Como já dissemos, ele se dirige à massa inumerável dos incrédulos, aos que duvidam e aos indiferentes; estes não estão convosco e vossas censuras não os podem atingir. Eles vinham a vós, mas os repelíeis. Quanta inabilidade! Se alguns dos vossos os seguem, é que vossos argumentos não são bastante fortes para os reter e não é com rigor que o conseguireis. O Espiritismo agrada porque não se impõe e é aceito pela vontade e o livre-exame. Nisto ele é de nossa época. Agrada pela doçura, pelas consolações que prodigaliza nas adversidades, pela fé inabalável que dá no futuro, na bondade e na misericórdia de Deus. Além disso, ele se apoia em fatos patentes, materiais, irrecusáveis, que desafiam toda negação. Eis o segredo de sua tão rápida propagação. Que lhe opondes? Sempre a danação eterna, expediente ruim para os tempos que correm; depois a deturpação de suas doutrinas: vós o acusais de pregar o aborto,, o adultério e todos os crimes. A quem pensais impor isto? Não aos espíritas, certamente. Aos que não o conhecem? Mas nesse número muitos querem saber o que é essa abominável doutrina; leem, e vendo que ela diz exatamente o contrário do que lhe atribuem, vos deixam para a seguir. E isto sem que ele os vá procurar.

A posição, bem o sei, é embaraçosa: Se falamos contra o Espiritismo – dizeis – recrutamos-lhe partidários; se nos calamos, ele marcha sozinho. Que fazer então? Outrora se dizia: Deixai passar a justiça do rei; agora é preciso dizer: Deixemos passar a justiça de Deus.

(Continua no próximo número)


7. ALGUMAS REFUTAÇÕES.

(2° artigo. – Ver o número de maio.) [Revista de junho de 1863.]

Toda ideia nova encontra forçosamente oposição, por parte daqueles cujas opiniões e interesses contraria. Julgam alguns que a Igreja está comprometida – pensamos que não, mas nossa opinião não faz lei – razão por que nos atacam em seu nome com um furor ao qual só faltam as grandes execuções da Idade Média. Os sermões, as instruções pastorais lançam raios em todas as direções; as brochuras e artigos de jornais chovem em grande quantidade, na maioria com um cinismo de expressão pouquíssimo evangélico. Em vários deles é um raio que toca o frenesi. Por que, então, essa exibição de força e tanta cólera? Porque dizemos que Deus perdoa à criatura que se arrepende e que as penas só seriam eternas para aquelas que jamais se arrependessem, e porque proclamamos a bondade e a clemência de Deus, somos heréticos votados à execração e a sociedade está perdida. Apontam-nos como perturbadores; desafiam a autoridade a nos perseguir em nome da moral e da ordem pública; alegam que aquela não cumpre o seu dever deixando-nos tranquilos!

Aqui se apresenta um problema interessante. Pergunta-se por que essa violência contra o Espiritismo, e não contra tantas outras teorias filosóficas ou religiosas muito menos ortodoxas? A Igreja fulminou o materialismo, que tudo nega, como o faz contra o Espiritismo, que se limita à interpretação de alguns dogmas? Esses dogmas e muitos outros não foram tantas vezes negados, discutidos, polemizados numa porção de escritos que ela deixa passar despercebidos? Os princípios fundamentais da fé – Deus, a alma e a imortalidade – não foram publicamente atacados sem que ela se perturbasse? Jamais o saint-simonismo, o fourierismo, a própria Igreja do padre Chatel levantaram tantas cóleras, sem falar de outras seitas menos conhecidas, tais como os fusionistas, cujo chefe acaba de morrer, que têm um culto, seu jornal e não admitem a divindade do Cristo; os católicos apostólicos, que não reconhecem o papa, que têm seus padres e bispos casados, suas igrejas em Paris e nas províncias, onde batizam, casam e promovem cerimônias fúnebres. Por que, então, o Espiritismo, que não tem culto nem igreja, e cujos padres só existem na imaginação, levanta tanta animosidade? Coisa bizarra! o partido religioso e o partido materialista, que são a negação um do outro, dão-se as mãos para nos pulverizar, segundo dizem. Realmente o espírito humano apresenta caprichos singulares quando enceguecido pela paixão, e a história do Espiritismo terá coisas divertidas para registrar.


8. – A reposta está por inteiro nesta conclusão da brochura do Rev. Pe. Nampon: “Em geral nada é mais abjeto, mais degradante, mais vazio de fundo e de atrativo na forma que tais publicações, cujo sucesso fabuloso é um dos sintomas mais alarmantes de nossa época. Destruí-os, pois, e nada perdereis com isso. Com o dinheiro gasto em Lyon para essas inépcias, facilmente se teriam criado mais leitos nos hospitais de alienados, superlotados desde a invasão do Espiritismo. E que faremos dessas brochuras perniciosas? Faremos o mesmo que fez o grande apóstolo em Éfeso; e assim agindo conservaremos em nosso meio o império da razão e da fé, preservando as vítimas dessas lamentáveis ilusões de uma porção de decepções na vida presente e das chamas da eternidade infeliz.”


9. – Esse sucesso fabuloso é que confunde os nossos adversários. Eles não podem compreender a inutilidade de tudo quanto fazem para travar essa ideia que passa por cima de suas ciladas, endireita-se sob os seus golpes e prossegue sua marcha ascendente sem se preocupar com as pedras que lhe atiram. Isto é um fato indubitável e constatado muitas vezes pelos adversários desta ou daquela categoria, em suas prédicas e publicações. Todos deploram o progresso incrível dessa epidemia, que ataca até os homens de ciência, os médicos e os magistrados. Na verdade é preciso voltar do Texas para dizer que o Espiritismo está morto e ninguém mais fala dele. (Vide a Revista de fevereiro de 1863.)

Que fazemos para triunfar? Vamos pregar o Espiritismo nas praças? Convocamos o público às nossas reuniões? Temos missionários de propaganda? Contamos com o apoio da imprensa? Temos, enfim, todos os meios de ação, ostensivos e secretos, que possuís e usais com tanta prodigalidade? Não; para recrutar partidários temos mil vezes menos trabalho do que vós para os desviar. Contentamo-nos em dizer: “Lede; e se isto vos convém, voltai a nós.” Fazemos mais, dizendo: “Lede os prós e os contras e comparai.” Respondemos aos vossos ataques sem fel sem animosidade, sem acrimônia, porque não temos cólera. Longe de nos lamentarmos da vossa, nós a aplaudimos, porque ela serve à nossa causa. Eis entre milhares uma prova da força persuasiva dos argumentos dos nossos adversários. Um senhor que acaba de escrever à Sociedade de Paris, pedindo para dela fazer parte, assim começa sua carta: “A leitura de: A questão do Sobrenatural, os mortos e os vivos, do Padre Matignon; A questão dos Espíritos, do Sr. de Mirville; O Espírito batedor, do Dr. Bronson, e, finalmente, diversos artigos contra o Espiritismo, não fizeram senão que eu aderisse completamente à doutrina exposta em O Livro dos Espíritos e me deram o mais vivo desejo de fazer parte da Sociedade Espírita de Paris, para poder continuar o estudo do Espiritismo de maneira mais seguida e mais proveitosa.”


10. – Por vezes a paixão cega, a ponto de fazer cometer singulares inconsequências. Na passagem citada acima, o Rev. Pe. Nampon diz que “nada é mais vazio de atrativo que essas publicações, cujo sucesso fabuloso, etc.” Não percebe ele que essas duas proposições se destroem reciprocamente; uma coisa sem atrativo não poderia ter nenhum sucesso, porquanto só o terá com a condição de ter atrativo; com mais forte razão quando o sucesso é fabuloso.

Acrescenta que com o dinheiro gasto em Lyon com essas inépcias, facilmente teriam sido criados mais leitos nos hospícios de alienados daquela cidade, superlotados desde a invasão do Espiritismo. É verdade que seriam precisos trinta a quarenta mil leitos, só em Lyon, já que todos os espíritas são loucos. Por outro lado, visto que são inépcias, nenhum valor possuem. Por que, então, lhes dar as honras de tantos sermões, pastorais e brochuras? Quanto à questão do emprego de dinheiro, sabemos que em Lyon muita gente, por certo animada de maus sentimentos, havia dito que os dois milhões fornecidos por esta cidade aos cofres de São Pedro teriam dado mais pão a muitos operários infelizes durante o inverno, ao passo que a leitura dos livros espíritas lhes deu coragem e resignação para suportar sua miséria sem revolta.

O Pe. Nampon não é feliz em suas citações. Numa passagem de O Livro dos Espíritos ele nos faz dizer: “Há tanta distância entre a alma do animal e a alma do homem, quanto entre a alma do homem e a alma de Deus.” (Nº 597). Nós dissemos: …quanto entre a alma do homem e Deus, o que é muito diferente. A alma de Deus implica uma espécie de assimilação entre Deus e as criaturas corpóreas. Compreende-se a omissão de uma palavra por inadvertência ou erro tipográfico; mas não se acrescenta uma palavra sem intenção. Por que essa adição, que desnatura o sentido do pensamento, senão para dar um tom materialista aos olhos dos que se contentarem em ler a citação sem a verificar no original? Um livro que apareceu pouco antes de O Livro dos Espíritos, e que contém toda uma teoria cosmogônica, faz de Deus um ser muito diversamente material, porque composto de todos os globos do Universo, moléculas do ser universal, que tem um estômago, come e digere, e do qual os homens são o mau produto de sua digestão; contudo, nem uma palavra foi dita para o combater: todas as cóleras se concentraram sobre O Livro dos Espíritos. Será, talvez, porque em seis anos chegou à décima edição e espalhou-se em todos os países do mundo?

Não se contentam em criticar: truncam e desnaturam as máximas para aumentar o horror que deve inspirar essa abominável doutrina e nos pôr em contradição conosco mesmo. É assim que diz o Pe. Nampon, citando uma frase da introdução de O Livro dos Espíritos, página 30III: “Certas pessoas, dizei vós mesmos, entregando-se a esses estudos perderam a razão.” Damos assim a impressão de reconhecer que o Espiritismo conduz à loucura, ao passo que, lendo todo o parágrafo XV, a acusação cai precisamente sobre aqueles que a lançam. É assim que, tomando um trecho da frase de um autor, poderíamos levá-lo à forca. Os mais sagrados autores não escapariam a essa dissecção. É com tal sistema que certos críticos esperam mudar as tendências do Espiritismo e fazer crer que ele preconiza o aborto, o adultério, o suicídio, quando demonstra peremptoriamente a sua criminalidade e as funestas consequências para o futuro.


11. – O Pe. Nampon chega mesmo a apropriar-se de citações feitas com o objetivo de refutar certas ideias. “O autor – diz ele – às vezes chama Jesus-Cristo Homem-Deus; mas alhures (O Livro dos Médiuns, página 368), num diálogo com um médium que, tomando o nome de Jesus lhe dizia: “Eu não sou Deus, mas sou seu filho”, logo replica: “Então sois Jesus? Sim – acrescenta o Pe. Nampon – Jesus é chamado Filho de Deus, mas na acepção ariana, não sendo, portanto, consubstancial com o Pai.”

Antes de mais, não era o médium que se fazia passar por Jesus, mas um Espírito, o que é muito diferente. A citação é feita precisamente para mostrar a velhacaria de certos Espíritos e prevenir os médiuns contra seus subterfúgios. Pretendeis que o Espiritismo negue a divindade do Cristo ou vistes tal proposição formulada em princípio? É, dizeis vós, a consequência de toda a doutrina. Ah! se entrarmos no terreno das interpretações, poderemos ir mais longe do que quereis. Se disséssemos, por exemplo, que o Cristo não tinha chegado à perfeição, que teve necessidade das provas da vida corpórea para progredir; que a sua paixão lhe tinha sido necessária para subir em glória, teríeis razão, porque dele não faríamos sequer um Espírito puro, enviado à Terra com missão divina, mas um simples mortal, a quem o sofrimento era necessário, a fim de progredir. Onde encontrais que tenhamos dito isto? Pois bem! aquilo que nunca dissemos, que jamais diremos, sois vós que dizeis.

Ultimamente temos visto, no parlatório de uma casa religiosa de Paris, a seguinte inscrição, impressa em letras grandes e afixada para a instrução de todos: “Foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória, e não foi senão depois de ter bebido a longos sorvos na torrente da tribulação e do sofrimento que foi elevado ao mais alto dos céus.” (Salmo 110, v. 7.) É o comentário deste versículo, cujo texto é: “Ele beberá no caminho a água da torrente e é por ali que erguerá a cabeça (De torrente in via bibet: propterea exultabit caput [Psalmorum])”. Se, pois, “foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória; se não pôde ser elevado ao mais alto dos céus senão pelas tribulações e pelo sofrimento”, é que antes nem estava na glória nem no mais alto dos céus; por conseguinte não era Deus. Seus sofrimentos, pois, não aproveitavam somente à Humanidade, desde que necessários ao seu próprio adiantamento. Dizer que o Cristo tinha necessidade de sofrer para elevar-se é dizer que não era perfeito antes de sua vinda. Não conhecemos protesto mais enérgico contra a sua divindade. Se tal é o sentido do versículo do salmo que se canta nas vésperas todos os domingos cantam a não divindade do Cristo.

Com o sistema de interpretação vai-se muito longe, dizíamos nós. Se quiséssemos citar a de alguns concílios sobre este outro versículo: “O Senhor está a vossa direita; ele destruirá os reis no dia de sua cólera”, seria fácil provar que daí foi tirada a justificação do regicídio.


12. – Diz ainda o Pe. Nampon: “A vida muda inteiramente de aspecto (com o Espiritismo). A imortalidade da alma reduz-se a uma permanência material, sem identidade moral, sem consciência do passado.”

É um erro. O Espiritismo jamais disse que a alma ficasse sem consciência do passado. Ela perde momentaneamente a sua lembrança durante a vida corpórea, mas “quando o Espírito volta à vida anterior (a vida espírita), diante dos olhos se lhe estende toda a sua vida pretérita. Vê as faltas que cometeu e que deram causa ao seu sofrer, assim como de que modo as teria evitado. Reconhece justa a situação em que se acha e busca então uma existência capaz de reparar a que acaba de transcorrer.” (O Livro dos Espíritos, nº 393.) Uma vez que há lembrança do passado, consciência do ser, há então, identidade moral; desde que a vida espiritual é a vida normal do Espírito, que as existências corpóreas não passam de pontos na vida espírita, a imortalidade não se reduz a uma permanência material. Como se vê, o Espiritismo diz exatamente o contrário. Desnaturando-o assim, o Pe. Nampon não tem a desculpa da ignorância, porque suas citações provam que leu, mas se equivoca ao truncar citações e ao fazê-lo dizer o contrário do que diz.


13. – O Espiritismo é acusado por alguns de estribar-se no mais grosseiro materialismo, porque admite o perispírito, que tem propriedades materiais. É ainda uma falsa consequência, tirada de um princípio referido incompletamente. O Espiritismo jamais confundiu a alma com o perispírito, que não passa de um envoltório, como o corpo é um outro. Tivesse ela dez envoltórios e isto nada tiraria à sua essência imaterial. Já o mesmo não se dá com a doutrina adotada pelo concílio de Viena, no Dauphiné, na sua segunda sessão, em 3 de abril de 1312. Segundo essa doutrina, “a autoridade da Igreja ordena crer que a alma não passa da forma substancial do corpo; que não há ideias inatas e declara heréticos os que negarem a materialidade da alma.” Raul Fornier, professor de Direito ensina positivamente a mesma coisa em seus discursos acadêmicos, impressos em Paris em 1619, com aprovação e elogios de vários doutores em teologia.

É provável que o concílio, baseando-se nos fatos de numerosas manifestações espíritas visíveis e tangíveis, referidas nas Escrituras, manifestações que não deixam de ser materiais, pois ferem os sentidos, tenha confundido a alma com o envoltório fluídico ou perispírito, cuja distinção o Espiritismo demonstra. Sua doutrina é, pois, menos materialista que a do concílio.


14. – “Mas abordemos sem hesitar o homem da França, que é o mais adiantado nesses estudos. Para constatar a identidade do Espírito que fala, é preciso, diz o Sr. Allan Kardec, estudar sua linguagem. Pois bem! Que seja! Conhecemos por seus escritos autênticos o pensamento certo e, conseguintemente, a linguagem de São João, São Paulo, Santo Agostinho, Fénelon, etc. Como, pois, em vossos livros, ousais atribuir a esses grandes gênios pensamentos e sentimentos inteiramente contrários aos que ficaram para sempre consignados em suas obras?”

Assim, admitis que essas personagens em nada se enganaram; que tudo quanto escreveram é a expressão da verdade; que se hoje voltassem corporalmente deveriam ensinar tudo o que ensinaram outrora; que, vindo como Espírito, não devem renegar nenhuma de suas palavras. Entretanto, Santo Agostinho olhava como heresia a crença na redondeza da Terra e nos antípodas. Sustentava a existência dos íncubos e súcubos e acreditava na procriação pelo comércio dos homens com os Espíritos. Credes que a tal respeito e como Espírito não possa pensar de modo diverso do que pensava como homem e que hoje professasse essas doutrinas? Se suas ideias houveram de modificar-se em certos pontos, podem perfeitamente ter sido mudadas em outros. Se se enganou, logo ele, gênio incontestavelmente superior, por que vós mesmos não vos enganaríeis? Para respeitar a ortodoxia será preciso negar a Agostinho o direito, melhor dizendo, o mérito de retratar-se de seus erros?


15. – “Atribuís a São Luís esta sentença ridícula, sobretudo em sua boca, contra a eternidade das penas: Supor Espíritos incuráveis é negar a lei do progresso.” (O Livro dos Espíritos, nº 1007.)

Não é assim que ela é formulada. À pergunta: Haverá Espíritos que nunca se arrependam? respondeu São Luís: “Há os de arrependimento muito tardio; porém, pretender-se que nunca se melhorarão fora negar a lei do progresso e dizer que a criança não pode tornar-se homem.” A primeira forma poderia parecer ridícula. Por que, então, sempre truncar e desnaturar as frases? A quem pensam enganar? aos que apenas lerem esses comentários inexatos? Mas seu número é muito pequeno, perto dos que querem conhecer o fundo das coisas sobre as quais vós mesmos chamais a atenção. Ora, a comparação não pode senão favorecer o Espiritismo.


Nota. – Para a edificação de todos, recomendamos a leitura da brochura intitulada: Do Espiritismo, pelo Rev. Pe. Nampon [Adrien Nampon], da Companhia de Jesus, Livraria Girard et Josserand, Lyon, place Bellecour, nº 30; Paris, rue Cassette, nº 5. Rogamos também ler em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns os textos completos, citados resumidamente ou deturpados na brochura acima referida. [Vide ainda do Pe. Nampon Catholic doctrine as defined by the Council of Trent - Google Books.]









Maio

1. – De vários pontos nos assinalam novas prédicas contra o Espiritismo, todas no mesmo espírito daquelas de que temos falado; e como não passam, quase sempre, de variantes do mesmo pensamento, em termos mais ou menos escolhidos, julgamos supérfluo fazer-lhes a análise. Limitar-nos-emos a destacar certas passagens, acompanhando-as de algumas reflexões.


“Meus irmãos, é um cristão que fala a cristãos e, nessa qualidade, temos o direito de nos admirarmos, vendo o Espiritismo crescer entre nós. O que é o Espiritismo, eu vos pergunto, senão um mosaico de horrores que só a loucura pode justificar?”

A isto nada temos a dizer, senão que todas as prédicas feitas nesta cidade foram incapazes de deter o crescimento do Espiritismo, como bem constata o orador; portanto, os argumentos que lhe opõem têm menos autoridade que os seus; e, se as prédicas emanam de Deus e o Espiritismo procede do diabo, é que este é mais poderoso que Deus. Nada mais brutal que um fato. Ora, a propagação do Espiritismo, em consequência mesma das prédicas, é um fato notório, e por certo as pessoas julgam que os argumentos por ele dados são mais convincentes que os dos adversários. É uma trama de horrores. Seja. Mas haveis de concordar que se esses Espíritos viessem abraçar todas as vossas ideias, em vez de demônios, deles faríeis santos; e, longe de condenar as evocações, vós as encorajaríeis.


2. – “Nosso século não respeita mais nada; nem mesmo a cinza dos túmulos é poupada, pois insensatos ousam chamar os mortos para conversar com eles. Infelizmente é assim. Eis até onde chegou esse pretenso século das luzes: conversar com as almas do outro mundo.”

Conversar com os mortos não é privilégio deste século, já que a história de todos os povos comprova que isto tem ocorrido em todos os tempos. A única diferença é que hoje isto é feito em toda parte sem os acessórios supersticiosos com que outrora cercavam as evocações, e com um sentimento mais religioso e mais respeitoso. De duas uma: ou a coisa é possível, ou não é. Se não é, é uma crença ilusória; tal como acreditar na fatalidade da sexta-feira, na influência do sal derramado. Não vemos, pois, que haja tantos horrores e que sé falte com o respeito conversando com seres que já não pertencem a este mundo. Se os mortos vêm conversar conosco, só pode ser com a permissão de Deus, a menos que se pretenda que venham sem essa permissão, ou contra a sua vontade, o que implicaria que Deus não se importa com isso ou que os evocadores são mais poderosos que Deus. Mas notai as contradições: de um lado dizeis que só o diabo se comunica e, de outro, que se perturbam as cinzas dos mortos, chamando-os. Se é o diabo, não são os mortos; portanto, não são perturbados nem se lhes falta com o respeito. Se são os mortos, então não é o diabo. Seria preciso, ao menos, que vos pusésseis de acordo sobre este ponto capital. Admitindo que sejam os mortos, reconhecemos que haveria profanação em chamá-los levianamente, por razões fúteis, sobretudo para fazer disto profissão lucrativa. Condenamos todas essas coisas e não nos responsabilizamos pelos que se afastam dos princípios do Espiritismo sério. Não assumais responsabilidade pelos falsos devotos, que da religião só têm a máscara, que pregam o que não praticam ou que especulam com as coisas santas. Certamente evocações feitas em condições burlescas atribuídas a um eloquente orador que citamos mais adiante, seriam um sacrilégio; mas, graças a Deus, não nos envolvemos com isso e não cremos que a do Sr. Viennois, igualmente referida adiante [v. Sr. Philibert 5iennois], esteja neste caso.


3. – “Eu mesmo testemunhei estes fatos e ouvi pregar a moral, a caridade; é verdade. Mas sobre que se apoiam esta moral e esta caridade? Ah! sobre nada, porquanto não se pode chamar moral uma doutrina que nega as penas eternas.”

Se essa moral leva a fazer o bem sem o temor das penas eternas, é mais meritória ainda. Outrora se julgava impossível manter a disciplina na escola sem o medo da palmatória. Eram melhores os estudantes? Não; hoje ela não é mais usada e eles não são piores: ao contrário. Logo, o regime atual é preferível.

Julga-se a qualidade de um meio pelos seus efeitos. Aliás, a quem se dirige essa moral? Exatamente aos que não acreditam nas penas eternas, e a quem damos um freio, que aceitam, ao passo que não lhos dais, uma vez que não aceitam o vosso. Impedimos acreditem na danação absoluta aqueles a quem isto convém? Absolutamente. Ainda uma vez, não nos dirigimos aos que têm fé e aos quais esta basta, mas aos que não a têm ou duvidam. Preferiríeis que eles ficassem na incredulidade absoluta? Seria pouco caridoso. Temeis que vos tomem ovelhas? É que não tendes muita confiança no poder de vossos meios para retê-las; é que receais que elas sejam atraídas pela erva tenra do perdão e da misericórdia divina. Acreditais, então, que as que vacilam na incerteza preferirão as labaredas do inferno? Por outro lado, quem deve estar mais convencido das penas eternas, senão os que são alimentados no seio da Igreja? Ora, dizei por que essa perspectiva não deteve todos os escândalos, todas as atrocidades, todas as prevaricações contra as leis divinas e humanas, que pululam na História e se reproduzem incessantemente em nossos dias? São crimes ou não? Se, pois, os que fazem profissão desta crença não são tolhidos em suas ações, como querer que o sejam os que não creem? Não; ao homem esclarecido de nossos dias é preciso outro freio: aquele que sua razão admite. Ora, a crença nas penas eternas, talvez útil em outras épocas, está superada; extingue-se dia a dia e, por mais que fizerdes, não dareis vida a um cadáver nem fareis reviver os usos, costumes e ideias da Idade Média. Se a Igreja Católica julga sua segurança comprometida pelo desaparecimento dessa crença, devemos lamentá-la por repousar sobre base tão frágil, porque, se algo a atormenta, este é o dogma das penas eternas.


4. – “Assim, apelo à moralidade de todas as almas honestas; apelo aos magistrados, pois eles são responsáveis por todo o mal que semelhante heresia atrai sobre nossas cabeças.”

Não sabíamos que na França os magistrados fossem encarregados de instaurar processos contra as heresias, pois se entre eles há católicos, também há protestantes e judeus; assim, os próprios heréticos se incumbiriam de sua perseguição e condenação. E os há entre os funcionários da mais alta categoria.


5. – “Sim, os espíritas – e não receio declarar aqui abertamente – não apenas são passíveis da polícia correcional e da Corte Imperial, mas, também – prestai bem atenção – do tribunal do júri, porque são falsários; assinam comunicações em nome de pessoas que certamente jamais as teriam assinado em vida, pessoas que hoje eles tanto fazem falar.”

Os espíritas estão realmente muito contentes, porque Confúcio, Sócrates, Santo Agostinho, São Vicente de Paulo, Fénelon e outros não lhes podem mover processos por crimes de falsificação de escrita particular. Bem que eu sonho com isso: eles teriam uma tábua de salvação precisamente nos tribunais do júri a cuja jurisdição estão sujeitos, pois ali os jurados se pronunciam segundo a sua consciência. Ora, entre eles há também protestantes e judeus; há, até – coisa abominável! – filósofos, incrédulos, horríveis livres-pensadores que, à vista de nossas detestáveis leis modernas, se acham em toda parte. Assim, se nos acusam de fazer Santo Agostinho dizer algo de heterodoxo, sempre encontraremos jurados que nos absolvam. Ó perversidade do século! dizer que em nossos dias Voltaire, Diderot, Lutero, Calvino, João Huss, Ário teriam sido jurados por direito de nascimento, que poderiam ter sido juízes perfeitos, ministro da justiça e mesmo dos cultos! Vede-os, esses celerados infernais, a se pronunciarem sobre uma questão de heresia! Porque, para condenar a assinatura de Fénelon, posta abaixo de uma suposta comunicação herética, é preciso julgar a questão da ortodoxia; e quem será competente no júri?


6. – “Entretanto, seria tão fácil interditar semelhante impiedade! O que se precisaria fazer? quase nada; mesmo sem lhes fazer a honra da capa do comissário, podeis colocar um sargento à entrada de cada grupo para dizer: não entreis. Pinto o mal e descrevo o remédio, apenas isto, pois eu os dispenso da Inquisição.”

Muito obrigado, mas não há grande mérito em oferecer aquilo que não se tem. Infelizmente, para vós, não podeis contar com a Inquisição, sem o que seria duvidoso que nos liberásseis dela. O que não dizeis aos magistrados, visando à interdição da entrada dos templos judeus e protestantes, onde se pregam publicamente dogmas que não são os vossos? Quanto aos espíritas, não têm templos nem sacerdotes, mas – o que para vós é a mesma coisa – grupos, à entrada dos quais basta pôr um sargento para que tudo fique dito. Realmente é muito simples. Mas esqueceis que os Espíritos ignoram qualquer proibição e entram em toda parte sem pedir permissão, mesmo em vossa casa, pois os tendes ao vosso lado, escutando-vos, sem que o suspeiteis e, ademais, vos falando ao ouvido. Trazei à memória as vossas lembranças e vereis que tivestes mais de uma manifestação, mesmo sem a haverdes buscado.

Pareceis ignorar uma coisa que é bom saibais. Os grupos espíritas não são absolutamente necessários; são simples reuniões onde se sentem felizes por encontrar-se pessoas que pensam do mesmo modo. E a prova disto é que hoje, na França, há mais de 600.000 espíritas, 99% dos quais não fazem parte de nenhum grupo e neles jamais puseram os pés; que eles não existem numa porção de cidades; que nem os grupos nem as sociedades abrem suas portas ao público para pregar suas doutrinas aos transeuntes; que o Espiritismo se prega por si mesmo e pela força das coisas, porque responde a uma necessidade da época; que as ideias espíritas estão no ar e são aspiradas por todos os poros da inteligência; que o contágio está no exemplo dos que são felizes com essas crenças e que são encontrados por toda parte, na sociedade, sem que se precise procurá-los nos grupos. Assim, não são os grupos que fazem a propaganda, pois não apelam ao primeiro que apareça; ela é feita pouco a pouco, de indivíduo a indivíduo. Se, portanto, admitíssemos a interdição de todas as reuniões, os espíritas ficariam livres para se reunirem em família, como já ocorre em milhares de lugares, sem que o Espiritismo nada sofra com isso; muito ao contrário, pois temos sempre condenado as grandes assembleias, que são mais prejudiciais que úteis; além disso, a intimidade é reconhecida como a condição mais favorável às manifestações. Interditaríeis as reuniões familiares? Colocaríeis um sargento à porta de um salão para vigiar o que se passa à lareira? Isto não se faz na Espanha, nem em Roma, onde há mais espíritas e médiuns do que pensais. Só faltava isso para aumentar ainda mais a importância do Espiritismo.

Admitamos agora a interdição legal dos grupos. Sabeis o que fariam esses espíritas que acusais de semear a desordem? Eles diriam: Respeitamos a lei; dura lex, sed lex [A lei é dura mais é lei]. Vamos dar o exemplo, mostrando que, se pregamos a união, a paz e a concórdia, não é para nos transformarmos em promotores de desordens. As sociedades organizadas não são necessárias à existência do Espiritismo; não há entre elas nenhuma solidariedade material que possa ser quebrada por sua supressão. O que os Espíritos aí ensinam, igualmente ensinam numa conversa particular entre duas pessoas, porque o Espiritismo tem o incrível privilégio de ter o seu foco de ensino por toda parte. Seu sinal de ligação é o amor de Deus e do próximo e, para o pôr em prática, não há necessidade de reuniões oficiais, pois ele tanto se estende sobre os amigos quanto sobre os inimigos. Qualquer um pode dizer o mesmo; e mais de uma vez a autoridade não tem encontrado resistência onde esperava encontrar a maior submissão? Se os espíritas fossem pessoas tão turbulentas e tão pervertidas quanto pretendeis, por que os funcionários encarregados da manutenção da ordem têm menos trabalho nos centros onde eles constituem maioria? Um funcionário chegou a dizer que se todos os seus administrados fossem espíritas, sua repartição podia ser fechada. Por que há menos penas disciplinares entre os militares espíritas?

E, depois, não pensais que atualmente há espíritas em toda parte, de alto a baixo na escala social; que há reuniões e médiuns até em casa daqueles que invocais contra nós. Vede, pois, que o vosso meio é insuficiente; é preciso buscar outro. – Temos a condenação fulminante do púlpito. – Está bem; e vós a usais largamente. Mas não vedes que por toda parte onde lançam raios o número de espíritas aumenta? – Temos a censura da Igreja e a excomunhão. – É melhor; mas ainda uma vez bateis no vazio. Repetimos: o Espiritismo nem se dirige a vós nem aos que estão convosco; não os vai buscar e dizer-lhes: deixai a vossa religião e segui-me; sereis danados se não o fizerdes. Não; ele é mais tolerante que isso e deixa a cada um a liberdade de consciência. Como já dissemos, ele se dirige à massa inumerável dos incrédulos, aos que duvidam e aos indiferentes; estes não estão convosco e vossas censuras não os podem atingir. Eles vinham a vós, mas os repelíeis. Quanta inabilidade! Se alguns dos vossos os seguem, é que vossos argumentos não são bastante fortes para os reter e não é com rigor que o conseguireis. O Espiritismo agrada porque não se impõe e é aceito pela vontade e o livre-exame. Nisto ele é de nossa época. Agrada pela doçura, pelas consolações que prodigaliza nas adversidades, pela fé inabalável que dá no futuro, na bondade e na misericórdia de Deus. Além disso, ele se apoia em fatos patentes, materiais, irrecusáveis, que desafiam toda negação. Eis o segredo de sua tão rápida propagação. Que lhe opondes? Sempre a danação eterna, expediente ruim para os tempos que correm; depois a deturpação de suas doutrinas: vós o acusais de pregar o aborto,, o adultério e todos os crimes. A quem pensais impor isto? Não aos espíritas, certamente. Aos que não o conhecem? Mas nesse número muitos querem saber o que é essa abominável doutrina; leem, e vendo que ela diz exatamente o contrário do que lhe atribuem, vos deixam para a seguir. E isto sem que ele os vá procurar.

A posição, bem o sei, é embaraçosa: Se falamos contra o Espiritismo – dizeis – recrutamos-lhe partidários; se nos calamos, ele marcha sozinho. Que fazer então? Outrora se dizia: Deixai passar a justiça do rei; agora é preciso dizer: Deixemos passar a justiça de Deus.

(Continua no próximo número)


7. ALGUMAS REFUTAÇÕES.

(2° artigo. – Ver o número de maio.) [Revista de junho de 1863.]

Toda ideia nova encontra forçosamente oposição, por parte daqueles cujas opiniões e interesses contraria. Julgam alguns que a Igreja está comprometida – pensamos que não, mas nossa opinião não faz lei – razão por que nos atacam em seu nome com um furor ao qual só faltam as grandes execuções da Idade Média. Os sermões, as instruções pastorais lançam raios em todas as direções; as brochuras e artigos de jornais chovem em grande quantidade, na maioria com um cinismo de expressão pouquíssimo evangélico. Em vários deles é um raio que toca o frenesi. Por que, então, essa exibição de força e tanta cólera? Porque dizemos que Deus perdoa à criatura que se arrepende e que as penas só seriam eternas para aquelas que jamais se arrependessem, e porque proclamamos a bondade e a clemência de Deus, somos heréticos votados à execração e a sociedade está perdida. Apontam-nos como perturbadores; desafiam a autoridade a nos perseguir em nome da moral e da ordem pública; alegam que aquela não cumpre o seu dever deixando-nos tranquilos!

Aqui se apresenta um problema interessante. Pergunta-se por que essa violência contra o Espiritismo, e não contra tantas outras teorias filosóficas ou religiosas muito menos ortodoxas? A Igreja fulminou o materialismo, que tudo nega, como o faz contra o Espiritismo, que se limita à interpretação de alguns dogmas? Esses dogmas e muitos outros não foram tantas vezes negados, discutidos, polemizados numa porção de escritos que ela deixa passar despercebidos? Os princípios fundamentais da fé – Deus, a alma e a imortalidade – não foram publicamente atacados sem que ela se perturbasse? Jamais o saint-simonismo, o fourierismo, a própria Igreja do padre Chatel levantaram tantas cóleras, sem falar de outras seitas menos conhecidas, tais como os fusionistas, cujo chefe acaba de morrer, que têm um culto, seu jornal e não admitem a divindade do Cristo; os católicos apostólicos, que não reconhecem o papa, que têm seus padres e bispos casados, suas igrejas em Paris e nas províncias, onde batizam, casam e promovem cerimônias fúnebres. Por que, então, o Espiritismo, que não tem culto nem igreja, e cujos padres só existem na imaginação, levanta tanta animosidade? Coisa bizarra! o partido religioso e o partido materialista, que são a negação um do outro, dão-se as mãos para nos pulverizar, segundo dizem. Realmente o espírito humano apresenta caprichos singulares quando enceguecido pela paixão, e a história do Espiritismo terá coisas divertidas para registrar.


8. – A reposta está por inteiro nesta conclusão da brochura do Rev. Pe. Nampon: “Em geral nada é mais abjeto, mais degradante, mais vazio de fundo e de atrativo na forma que tais publicações, cujo sucesso fabuloso é um dos sintomas mais alarmantes de nossa época. Destruí-os, pois, e nada perdereis com isso. Com o dinheiro gasto em Lyon para essas inépcias, facilmente se teriam criado mais leitos nos hospitais de alienados, superlotados desde a invasão do Espiritismo. E que faremos dessas brochuras perniciosas? Faremos o mesmo que fez o grande apóstolo em Éfeso; e assim agindo conservaremos em nosso meio o império da razão e da fé, preservando as vítimas dessas lamentáveis ilusões de uma porção de decepções na vida presente e das chamas da eternidade infeliz.”


9. – Esse sucesso fabuloso é que confunde os nossos adversários. Eles não podem compreender a inutilidade de tudo quanto fazem para travar essa ideia que passa por cima de suas ciladas, endireita-se sob os seus golpes e prossegue sua marcha ascendente sem se preocupar com as pedras que lhe atiram. Isto é um fato indubitável e constatado muitas vezes pelos adversários desta ou daquela categoria, em suas prédicas e publicações. Todos deploram o progresso incrível dessa epidemia, que ataca até os homens de ciência, os médicos e os magistrados. Na verdade é preciso voltar do Texas para dizer que o Espiritismo está morto e ninguém mais fala dele. (Vide a Revista de fevereiro de 1863.)

Que fazemos para triunfar? Vamos pregar o Espiritismo nas praças? Convocamos o público às nossas reuniões? Temos missionários de propaganda? Contamos com o apoio da imprensa? Temos, enfim, todos os meios de ação, ostensivos e secretos, que possuís e usais com tanta prodigalidade? Não; para recrutar partidários temos mil vezes menos trabalho do que vós para os desviar. Contentamo-nos em dizer: “Lede; e se isto vos convém, voltai a nós.” Fazemos mais, dizendo: “Lede os prós e os contras e comparai.” Respondemos aos vossos ataques sem fel sem animosidade, sem acrimônia, porque não temos cólera. Longe de nos lamentarmos da vossa, nós a aplaudimos, porque ela serve à nossa causa. Eis entre milhares uma prova da força persuasiva dos argumentos dos nossos adversários. Um senhor que acaba de escrever à Sociedade de Paris, pedindo para dela fazer parte, assim começa sua carta: “A leitura de: A questão do Sobrenatural, os mortos e os vivos, do Padre Matignon; A questão dos Espíritos, do Sr. de Mirville; O Espírito batedor, do Dr. Bronson, e, finalmente, diversos artigos contra o Espiritismo, não fizeram senão que eu aderisse completamente à doutrina exposta em O Livro dos Espíritos e me deram o mais vivo desejo de fazer parte da Sociedade Espírita de Paris, para poder continuar o estudo do Espiritismo de maneira mais seguida e mais proveitosa.”


10. – Por vezes a paixão cega, a ponto de fazer cometer singulares inconsequências. Na passagem citada acima, o Rev. Pe. Nampon diz que “nada é mais vazio de atrativo que essas publicações, cujo sucesso fabuloso, etc.” Não percebe ele que essas duas proposições se destroem reciprocamente; uma coisa sem atrativo não poderia ter nenhum sucesso, porquanto só o terá com a condição de ter atrativo; com mais forte razão quando o sucesso é fabuloso.

Acrescenta que com o dinheiro gasto em Lyon com essas inépcias, facilmente teriam sido criados mais leitos nos hospícios de alienados daquela cidade, superlotados desde a invasão do Espiritismo. É verdade que seriam precisos trinta a quarenta mil leitos, só em Lyon, já que todos os espíritas são loucos. Por outro lado, visto que são inépcias, nenhum valor possuem. Por que, então, lhes dar as honras de tantos sermões, pastorais e brochuras? Quanto à questão do emprego de dinheiro, sabemos que em Lyon muita gente, por certo animada de maus sentimentos, havia dito que os dois milhões fornecidos por esta cidade aos cofres de São Pedro teriam dado mais pão a muitos operários infelizes durante o inverno, ao passo que a leitura dos livros espíritas lhes deu coragem e resignação para suportar sua miséria sem revolta.

O Pe. Nampon não é feliz em suas citações. Numa passagem de O Livro dos Espíritos ele nos faz dizer: “Há tanta distância entre a alma do animal e a alma do homem, quanto entre a alma do homem e a alma de Deus.” (Nº 597). Nós dissemos: …quanto entre a alma do homem e Deus, o que é muito diferente. A alma de Deus implica uma espécie de assimilação entre Deus e as criaturas corpóreas. Compreende-se a omissão de uma palavra por inadvertência ou erro tipográfico; mas não se acrescenta uma palavra sem intenção. Por que essa adição, que desnatura o sentido do pensamento, senão para dar um tom materialista aos olhos dos que se contentarem em ler a citação sem a verificar no original? Um livro que apareceu pouco antes de O Livro dos Espíritos, e que contém toda uma teoria cosmogônica, faz de Deus um ser muito diversamente material, porque composto de todos os globos do Universo, moléculas do ser universal, que tem um estômago, come e digere, e do qual os homens são o mau produto de sua digestão; contudo, nem uma palavra foi dita para o combater: todas as cóleras se concentraram sobre O Livro dos Espíritos. Será, talvez, porque em seis anos chegou à décima edição e espalhou-se em todos os países do mundo?

Não se contentam em criticar: truncam e desnaturam as máximas para aumentar o horror que deve inspirar essa abominável doutrina e nos pôr em contradição conosco mesmo. É assim que diz o Pe. Nampon, citando uma frase da introdução de O Livro dos Espíritos, página 30III: “Certas pessoas, dizei vós mesmos, entregando-se a esses estudos perderam a razão.” Damos assim a impressão de reconhecer que o Espiritismo conduz à loucura, ao passo que, lendo todo o parágrafo XV, a acusação cai precisamente sobre aqueles que a lançam. É assim que, tomando um trecho da frase de um autor, poderíamos levá-lo à forca. Os mais sagrados autores não escapariam a essa dissecção. É com tal sistema que certos críticos esperam mudar as tendências do Espiritismo e fazer crer que ele preconiza o aborto, o adultério, o suicídio, quando demonstra peremptoriamente a sua criminalidade e as funestas consequências para o futuro.


11. – O Pe. Nampon chega mesmo a apropriar-se de citações feitas com o objetivo de refutar certas ideias. “O autor – diz ele – às vezes chama Jesus-Cristo Homem-Deus; mas alhures (O Livro dos Médiuns, página 368), num diálogo com um médium que, tomando o nome de Jesus lhe dizia: “Eu não sou Deus, mas sou seu filho”, logo replica: “Então sois Jesus? Sim – acrescenta o Pe. Nampon – Jesus é chamado Filho de Deus, mas na acepção ariana, não sendo, portanto, consubstancial com o Pai.”

Antes de mais, não era o médium que se fazia passar por Jesus, mas um Espírito, o que é muito diferente. A citação é feita precisamente para mostrar a velhacaria de certos Espíritos e prevenir os médiuns contra seus subterfúgios. Pretendeis que o Espiritismo negue a divindade do Cristo ou vistes tal proposição formulada em princípio? É, dizeis vós, a consequência de toda a doutrina. Ah! se entrarmos no terreno das interpretações, poderemos ir mais longe do que quereis. Se disséssemos, por exemplo, que o Cristo não tinha chegado à perfeição, que teve necessidade das provas da vida corpórea para progredir; que a sua paixão lhe tinha sido necessária para subir em glória, teríeis razão, porque dele não faríamos sequer um Espírito puro, enviado à Terra com missão divina, mas um simples mortal, a quem o sofrimento era necessário, a fim de progredir. Onde encontrais que tenhamos dito isto? Pois bem! aquilo que nunca dissemos, que jamais diremos, sois vós que dizeis.

Ultimamente temos visto, no parlatório de uma casa religiosa de Paris, a seguinte inscrição, impressa em letras grandes e afixada para a instrução de todos: “Foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória, e não foi senão depois de ter bebido a longos sorvos na torrente da tribulação e do sofrimento que foi elevado ao mais alto dos céus.” (Salmo 110, v. 7.) É o comentário deste versículo, cujo texto é: “Ele beberá no caminho a água da torrente e é por ali que erguerá a cabeça (De torrente in via bibet: propterea exultabit caput [Psalmorum])”. Se, pois, “foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória; se não pôde ser elevado ao mais alto dos céus senão pelas tribulações e pelo sofrimento”, é que antes nem estava na glória nem no mais alto dos céus; por conseguinte não era Deus. Seus sofrimentos, pois, não aproveitavam somente à Humanidade, desde que necessários ao seu próprio adiantamento. Dizer que o Cristo tinha necessidade de sofrer para elevar-se é dizer que não era perfeito antes de sua vinda. Não conhecemos protesto mais enérgico contra a sua divindade. Se tal é o sentido do versículo do salmo que se canta nas vésperas todos os domingos cantam a não divindade do Cristo.

Com o sistema de interpretação vai-se muito longe, dizíamos nós. Se quiséssemos citar a de alguns concílios sobre este outro versículo: “O Senhor está a vossa direita; ele destruirá os reis no dia de sua cólera”, seria fácil provar que daí foi tirada a justificação do regicídio.


12. – Diz ainda o Pe. Nampon: “A vida muda inteiramente de aspecto (com o Espiritismo). A imortalidade da alma reduz-se a uma permanência material, sem identidade moral, sem consciência do passado.”

É um erro. O Espiritismo jamais disse que a alma ficasse sem consciência do passado. Ela perde momentaneamente a sua lembrança durante a vida corpórea, mas “quando o Espírito volta à vida anterior (a vida espírita), diante dos olhos se lhe estende toda a sua vida pretérita. Vê as faltas que cometeu e que deram causa ao seu sofrer, assim como de que modo as teria evitado. Reconhece justa a situação em que se acha e busca então uma existência capaz de reparar a que acaba de transcorrer.” (O Livro dos Espíritos, nº 393.) Uma vez que há lembrança do passado, consciência do ser, há então, identidade moral; desde que a vida espiritual é a vida normal do Espírito, que as existências corpóreas não passam de pontos na vida espírita, a imortalidade não se reduz a uma permanência material. Como se vê, o Espiritismo diz exatamente o contrário. Desnaturando-o assim, o Pe. Nampon não tem a desculpa da ignorância, porque suas citações provam que leu, mas se equivoca ao truncar citações e ao fazê-lo dizer o contrário do que diz.


13. – O Espiritismo é acusado por alguns de estribar-se no mais grosseiro materialismo, porque admite o perispírito, que tem propriedades materiais. É ainda uma falsa consequência, tirada de um princípio referido incompletamente. O Espiritismo jamais confundiu a alma com o perispírito, que não passa de um envoltório, como o corpo é um outro. Tivesse ela dez envoltórios e isto nada tiraria à sua essência imaterial. Já o mesmo não se dá com a doutrina adotada pelo concílio de Viena, no Dauphiné, na sua segunda sessão, em 3 de abril de 1312. Segundo essa doutrina, “a autoridade da Igreja ordena crer que a alma não passa da forma substancial do corpo; que não há ideias inatas e declara heréticos os que negarem a materialidade da alma.” Raul Fornier, professor de Direito ensina positivamente a mesma coisa em seus discursos acadêmicos, impressos em Paris em 1619, com aprovação e elogios de vários doutores em teologia.

É provável que o concílio, baseando-se nos fatos de numerosas manifestações espíritas visíveis e tangíveis, referidas nas Escrituras, manifestações que não deixam de ser materiais, pois ferem os sentidos, tenha confundido a alma com o envoltório fluídico ou perispírito, cuja distinção o Espiritismo demonstra. Sua doutrina é, pois, menos materialista que a do concílio.


14. – “Mas abordemos sem hesitar o homem da França, que é o mais adiantado nesses estudos. Para constatar a identidade do Espírito que fala, é preciso, diz o Sr. Allan Kardec, estudar sua linguagem. Pois bem! Que seja! Conhecemos por seus escritos autênticos o pensamento certo e, conseguintemente, a linguagem de São João, São Paulo, Santo Agostinho, Fénelon, etc. Como, pois, em vossos livros, ousais atribuir a esses grandes gênios pensamentos e sentimentos inteiramente contrários aos que ficaram para sempre consignados em suas obras?”

Assim, admitis que essas personagens em nada se enganaram; que tudo quanto escreveram é a expressão da verdade; que se hoje voltassem corporalmente deveriam ensinar tudo o que ensinaram outrora; que, vindo como Espírito, não devem renegar nenhuma de suas palavras. Entretanto, Santo Agostinho olhava como heresia a crença na redondeza da Terra e nos antípodas. Sustentava a existência dos íncubos e súcubos e acreditava na procriação pelo comércio dos homens com os Espíritos. Credes que a tal respeito e como Espírito não possa pensar de modo diverso do que pensava como homem e que hoje professasse essas doutrinas? Se suas ideias houveram de modificar-se em certos pontos, podem perfeitamente ter sido mudadas em outros. Se se enganou, logo ele, gênio incontestavelmente superior, por que vós mesmos não vos enganaríeis? Para respeitar a ortodoxia será preciso negar a Agostinho o direito, melhor dizendo, o mérito de retratar-se de seus erros?


15. – “Atribuís a São Luís esta sentença ridícula, sobretudo em sua boca, contra a eternidade das penas: Supor Espíritos incuráveis é negar a lei do progresso.” (O Livro dos Espíritos, nº 1007.)

Não é assim que ela é formulada. À pergunta: Haverá Espíritos que nunca se arrependam? respondeu São Luís: “Há os de arrependimento muito tardio; porém, pretender-se que nunca se melhorarão fora negar a lei do progresso e dizer que a criança não pode tornar-se homem.” A primeira forma poderia parecer ridícula. Por que, então, sempre truncar e desnaturar as frases? A quem pensam enganar? aos que apenas lerem esses comentários inexatos? Mas seu número é muito pequeno, perto dos que querem conhecer o fundo das coisas sobre as quais vós mesmos chamais a atenção. Ora, a comparação não pode senão favorecer o Espiritismo.


Nota. – Para a edificação de todos, recomendamos a leitura da brochura intitulada: Do Espiritismo, pelo Rev. Pe. Nampon [Adrien Nampon], da Companhia de Jesus, Livraria Girard et Josserand, Lyon, place Bellecour, nº 30; Paris, rue Cassette, nº 5. Rogamos também ler em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns os textos completos, citados resumidamente ou deturpados na brochura acima referida. [Vide ainda do Pe. Nampon Catholic doctrine as defined by the Council of Trent - Google Books.]









Maio

1. – De vários pontos nos assinalam novas prédicas contra o Espiritismo, todas no mesmo espírito daquelas de que temos falado; e como não passam, quase sempre, de variantes do mesmo pensamento, em termos mais ou menos escolhidos, julgamos supérfluo fazer-lhes a análise. Limitar-nos-emos a destacar certas passagens, acompanhando-as de algumas reflexões.


“Meus irmãos, é um cristão que fala a cristãos e, nessa qualidade, temos o direito de nos admirarmos, vendo o Espiritismo crescer entre nós. O que é o Espiritismo, eu vos pergunto, senão um mosaico de horrores que só a loucura pode justificar?”

A isto nada temos a dizer, senão que todas as prédicas feitas nesta cidade foram incapazes de deter o crescimento do Espiritismo, como bem constata o orador; portanto, os argumentos que lhe opõem têm menos autoridade que os seus; e, se as prédicas emanam de Deus e o Espiritismo procede do diabo, é que este é mais poderoso que Deus. Nada mais brutal que um fato. Ora, a propagação do Espiritismo, em consequência mesma das prédicas, é um fato notório, e por certo as pessoas julgam que os argumentos por ele dados são mais convincentes que os dos adversários. É uma trama de horrores. Seja. Mas haveis de concordar que se esses Espíritos viessem abraçar todas as vossas ideias, em vez de demônios, deles faríeis santos; e, longe de condenar as evocações, vós as encorajaríeis.


2. – “Nosso século não respeita mais nada; nem mesmo a cinza dos túmulos é poupada, pois insensatos ousam chamar os mortos para conversar com eles. Infelizmente é assim. Eis até onde chegou esse pretenso século das luzes: conversar com as almas do outro mundo.”

Conversar com os mortos não é privilégio deste século, já que a história de todos os povos comprova que isto tem ocorrido em todos os tempos. A única diferença é que hoje isto é feito em toda parte sem os acessórios supersticiosos com que outrora cercavam as evocações, e com um sentimento mais religioso e mais respeitoso. De duas uma: ou a coisa é possível, ou não é. Se não é, é uma crença ilusória; tal como acreditar na fatalidade da sexta-feira, na influência do sal derramado. Não vemos, pois, que haja tantos horrores e que sé falte com o respeito conversando com seres que já não pertencem a este mundo. Se os mortos vêm conversar conosco, só pode ser com a permissão de Deus, a menos que se pretenda que venham sem essa permissão, ou contra a sua vontade, o que implicaria que Deus não se importa com isso ou que os evocadores são mais poderosos que Deus. Mas notai as contradições: de um lado dizeis que só o diabo se comunica e, de outro, que se perturbam as cinzas dos mortos, chamando-os. Se é o diabo, não são os mortos; portanto, não são perturbados nem se lhes falta com o respeito. Se são os mortos, então não é o diabo. Seria preciso, ao menos, que vos pusésseis de acordo sobre este ponto capital. Admitindo que sejam os mortos, reconhecemos que haveria profanação em chamá-los levianamente, por razões fúteis, sobretudo para fazer disto profissão lucrativa. Condenamos todas essas coisas e não nos responsabilizamos pelos que se afastam dos princípios do Espiritismo sério. Não assumais responsabilidade pelos falsos devotos, que da religião só têm a máscara, que pregam o que não praticam ou que especulam com as coisas santas. Certamente evocações feitas em condições burlescas atribuídas a um eloquente orador que citamos mais adiante, seriam um sacrilégio; mas, graças a Deus, não nos envolvemos com isso e não cremos que a do Sr. Viennois, igualmente referida adiante [v. Sr. Philibert 5iennois], esteja neste caso.


3. – “Eu mesmo testemunhei estes fatos e ouvi pregar a moral, a caridade; é verdade. Mas sobre que se apoiam esta moral e esta caridade? Ah! sobre nada, porquanto não se pode chamar moral uma doutrina que nega as penas eternas.”

Se essa moral leva a fazer o bem sem o temor das penas eternas, é mais meritória ainda. Outrora se julgava impossível manter a disciplina na escola sem o medo da palmatória. Eram melhores os estudantes? Não; hoje ela não é mais usada e eles não são piores: ao contrário. Logo, o regime atual é preferível.

Julga-se a qualidade de um meio pelos seus efeitos. Aliás, a quem se dirige essa moral? Exatamente aos que não acreditam nas penas eternas, e a quem damos um freio, que aceitam, ao passo que não lhos dais, uma vez que não aceitam o vosso. Impedimos acreditem na danação absoluta aqueles a quem isto convém? Absolutamente. Ainda uma vez, não nos dirigimos aos que têm fé e aos quais esta basta, mas aos que não a têm ou duvidam. Preferiríeis que eles ficassem na incredulidade absoluta? Seria pouco caridoso. Temeis que vos tomem ovelhas? É que não tendes muita confiança no poder de vossos meios para retê-las; é que receais que elas sejam atraídas pela erva tenra do perdão e da misericórdia divina. Acreditais, então, que as que vacilam na incerteza preferirão as labaredas do inferno? Por outro lado, quem deve estar mais convencido das penas eternas, senão os que são alimentados no seio da Igreja? Ora, dizei por que essa perspectiva não deteve todos os escândalos, todas as atrocidades, todas as prevaricações contra as leis divinas e humanas, que pululam na História e se reproduzem incessantemente em nossos dias? São crimes ou não? Se, pois, os que fazem profissão desta crença não são tolhidos em suas ações, como querer que o sejam os que não creem? Não; ao homem esclarecido de nossos dias é preciso outro freio: aquele que sua razão admite. Ora, a crença nas penas eternas, talvez útil em outras épocas, está superada; extingue-se dia a dia e, por mais que fizerdes, não dareis vida a um cadáver nem fareis reviver os usos, costumes e ideias da Idade Média. Se a Igreja Católica julga sua segurança comprometida pelo desaparecimento dessa crença, devemos lamentá-la por repousar sobre base tão frágil, porque, se algo a atormenta, este é o dogma das penas eternas.


4. – “Assim, apelo à moralidade de todas as almas honestas; apelo aos magistrados, pois eles são responsáveis por todo o mal que semelhante heresia atrai sobre nossas cabeças.”

Não sabíamos que na França os magistrados fossem encarregados de instaurar processos contra as heresias, pois se entre eles há católicos, também há protestantes e judeus; assim, os próprios heréticos se incumbiriam de sua perseguição e condenação. E os há entre os funcionários da mais alta categoria.


5. – “Sim, os espíritas – e não receio declarar aqui abertamente – não apenas são passíveis da polícia correcional e da Corte Imperial, mas, também – prestai bem atenção – do tribunal do júri, porque são falsários; assinam comunicações em nome de pessoas que certamente jamais as teriam assinado em vida, pessoas que hoje eles tanto fazem falar.”

Os espíritas estão realmente muito contentes, porque Confúcio, Sócrates, Santo Agostinho, São Vicente de Paulo, Fénelon e outros não lhes podem mover processos por crimes de falsificação de escrita particular. Bem que eu sonho com isso: eles teriam uma tábua de salvação precisamente nos tribunais do júri a cuja jurisdição estão sujeitos, pois ali os jurados se pronunciam segundo a sua consciência. Ora, entre eles há também protestantes e judeus; há, até – coisa abominável! – filósofos, incrédulos, horríveis livres-pensadores que, à vista de nossas detestáveis leis modernas, se acham em toda parte. Assim, se nos acusam de fazer Santo Agostinho dizer algo de heterodoxo, sempre encontraremos jurados que nos absolvam. Ó perversidade do século! dizer que em nossos dias Voltaire, Diderot, Lutero, Calvino, João Huss, Ário teriam sido jurados por direito de nascimento, que poderiam ter sido juízes perfeitos, ministro da justiça e mesmo dos cultos! Vede-os, esses celerados infernais, a se pronunciarem sobre uma questão de heresia! Porque, para condenar a assinatura de Fénelon, posta abaixo de uma suposta comunicação herética, é preciso julgar a questão da ortodoxia; e quem será competente no júri?


6. – “Entretanto, seria tão fácil interditar semelhante impiedade! O que se precisaria fazer? quase nada; mesmo sem lhes fazer a honra da capa do comissário, podeis colocar um sargento à entrada de cada grupo para dizer: não entreis. Pinto o mal e descrevo o remédio, apenas isto, pois eu os dispenso da Inquisição.”

Muito obrigado, mas não há grande mérito em oferecer aquilo que não se tem. Infelizmente, para vós, não podeis contar com a Inquisição, sem o que seria duvidoso que nos liberásseis dela. O que não dizeis aos magistrados, visando à interdição da entrada dos templos judeus e protestantes, onde se pregam publicamente dogmas que não são os vossos? Quanto aos espíritas, não têm templos nem sacerdotes, mas – o que para vós é a mesma coisa – grupos, à entrada dos quais basta pôr um sargento para que tudo fique dito. Realmente é muito simples. Mas esqueceis que os Espíritos ignoram qualquer proibição e entram em toda parte sem pedir permissão, mesmo em vossa casa, pois os tendes ao vosso lado, escutando-vos, sem que o suspeiteis e, ademais, vos falando ao ouvido. Trazei à memória as vossas lembranças e vereis que tivestes mais de uma manifestação, mesmo sem a haverdes buscado.

Pareceis ignorar uma coisa que é bom saibais. Os grupos espíritas não são absolutamente necessários; são simples reuniões onde se sentem felizes por encontrar-se pessoas que pensam do mesmo modo. E a prova disto é que hoje, na França, há mais de 600.000 espíritas, 99% dos quais não fazem parte de nenhum grupo e neles jamais puseram os pés; que eles não existem numa porção de cidades; que nem os grupos nem as sociedades abrem suas portas ao público para pregar suas doutrinas aos transeuntes; que o Espiritismo se prega por si mesmo e pela força das coisas, porque responde a uma necessidade da época; que as ideias espíritas estão no ar e são aspiradas por todos os poros da inteligência; que o contágio está no exemplo dos que são felizes com essas crenças e que são encontrados por toda parte, na sociedade, sem que se precise procurá-los nos grupos. Assim, não são os grupos que fazem a propaganda, pois não apelam ao primeiro que apareça; ela é feita pouco a pouco, de indivíduo a indivíduo. Se, portanto, admitíssemos a interdição de todas as reuniões, os espíritas ficariam livres para se reunirem em família, como já ocorre em milhares de lugares, sem que o Espiritismo nada sofra com isso; muito ao contrário, pois temos sempre condenado as grandes assembleias, que são mais prejudiciais que úteis; além disso, a intimidade é reconhecida como a condição mais favorável às manifestações. Interditaríeis as reuniões familiares? Colocaríeis um sargento à porta de um salão para vigiar o que se passa à lareira? Isto não se faz na Espanha, nem em Roma, onde há mais espíritas e médiuns do que pensais. Só faltava isso para aumentar ainda mais a importância do Espiritismo.

Admitamos agora a interdição legal dos grupos. Sabeis o que fariam esses espíritas que acusais de semear a desordem? Eles diriam: Respeitamos a lei; dura lex, sed lex [A lei é dura mais é lei]. Vamos dar o exemplo, mostrando que, se pregamos a união, a paz e a concórdia, não é para nos transformarmos em promotores de desordens. As sociedades organizadas não são necessárias à existência do Espiritismo; não há entre elas nenhuma solidariedade material que possa ser quebrada por sua supressão. O que os Espíritos aí ensinam, igualmente ensinam numa conversa particular entre duas pessoas, porque o Espiritismo tem o incrível privilégio de ter o seu foco de ensino por toda parte. Seu sinal de ligação é o amor de Deus e do próximo e, para o pôr em prática, não há necessidade de reuniões oficiais, pois ele tanto se estende sobre os amigos quanto sobre os inimigos. Qualquer um pode dizer o mesmo; e mais de uma vez a autoridade não tem encontrado resistência onde esperava encontrar a maior submissão? Se os espíritas fossem pessoas tão turbulentas e tão pervertidas quanto pretendeis, por que os funcionários encarregados da manutenção da ordem têm menos trabalho nos centros onde eles constituem maioria? Um funcionário chegou a dizer que se todos os seus administrados fossem espíritas, sua repartição podia ser fechada. Por que há menos penas disciplinares entre os militares espíritas?

E, depois, não pensais que atualmente há espíritas em toda parte, de alto a baixo na escala social; que há reuniões e médiuns até em casa daqueles que invocais contra nós. Vede, pois, que o vosso meio é insuficiente; é preciso buscar outro. – Temos a condenação fulminante do púlpito. – Está bem; e vós a usais largamente. Mas não vedes que por toda parte onde lançam raios o número de espíritas aumenta? – Temos a censura da Igreja e a excomunhão. – É melhor; mas ainda uma vez bateis no vazio. Repetimos: o Espiritismo nem se dirige a vós nem aos que estão convosco; não os vai buscar e dizer-lhes: deixai a vossa religião e segui-me; sereis danados se não o fizerdes. Não; ele é mais tolerante que isso e deixa a cada um a liberdade de consciência. Como já dissemos, ele se dirige à massa inumerável dos incrédulos, aos que duvidam e aos indiferentes; estes não estão convosco e vossas censuras não os podem atingir. Eles vinham a vós, mas os repelíeis. Quanta inabilidade! Se alguns dos vossos os seguem, é que vossos argumentos não são bastante fortes para os reter e não é com rigor que o conseguireis. O Espiritismo agrada porque não se impõe e é aceito pela vontade e o livre-exame. Nisto ele é de nossa época. Agrada pela doçura, pelas consolações que prodigaliza nas adversidades, pela fé inabalável que dá no futuro, na bondade e na misericórdia de Deus. Além disso, ele se apoia em fatos patentes, materiais, irrecusáveis, que desafiam toda negação. Eis o segredo de sua tão rápida propagação. Que lhe opondes? Sempre a danação eterna, expediente ruim para os tempos que correm; depois a deturpação de suas doutrinas: vós o acusais de pregar o aborto,, o adultério e todos os crimes. A quem pensais impor isto? Não aos espíritas, certamente. Aos que não o conhecem? Mas nesse número muitos querem saber o que é essa abominável doutrina; leem, e vendo que ela diz exatamente o contrário do que lhe atribuem, vos deixam para a seguir. E isto sem que ele os vá procurar.

A posição, bem o sei, é embaraçosa: Se falamos contra o Espiritismo – dizeis – recrutamos-lhe partidários; se nos calamos, ele marcha sozinho. Que fazer então? Outrora se dizia: Deixai passar a justiça do rei; agora é preciso dizer: Deixemos passar a justiça de Deus.

(Continua no próximo número)


7. ALGUMAS REFUTAÇÕES.

(2° artigo. – Ver o número de maio.) [Revista de junho de 1863.]

Toda ideia nova encontra forçosamente oposição, por parte daqueles cujas opiniões e interesses contraria. Julgam alguns que a Igreja está comprometida – pensamos que não, mas nossa opinião não faz lei – razão por que nos atacam em seu nome com um furor ao qual só faltam as grandes execuções da Idade Média. Os sermões, as instruções pastorais lançam raios em todas as direções; as brochuras e artigos de jornais chovem em grande quantidade, na maioria com um cinismo de expressão pouquíssimo evangélico. Em vários deles é um raio que toca o frenesi. Por que, então, essa exibição de força e tanta cólera? Porque dizemos que Deus perdoa à criatura que se arrepende e que as penas só seriam eternas para aquelas que jamais se arrependessem, e porque proclamamos a bondade e a clemência de Deus, somos heréticos votados à execração e a sociedade está perdida. Apontam-nos como perturbadores; desafiam a autoridade a nos perseguir em nome da moral e da ordem pública; alegam que aquela não cumpre o seu dever deixando-nos tranquilos!

Aqui se apresenta um problema interessante. Pergunta-se por que essa violência contra o Espiritismo, e não contra tantas outras teorias filosóficas ou religiosas muito menos ortodoxas? A Igreja fulminou o materialismo, que tudo nega, como o faz contra o Espiritismo, que se limita à interpretação de alguns dogmas? Esses dogmas e muitos outros não foram tantas vezes negados, discutidos, polemizados numa porção de escritos que ela deixa passar despercebidos? Os princípios fundamentais da fé – Deus, a alma e a imortalidade – não foram publicamente atacados sem que ela se perturbasse? Jamais o saint-simonismo, o fourierismo, a própria Igreja do padre Chatel levantaram tantas cóleras, sem falar de outras seitas menos conhecidas, tais como os fusionistas, cujo chefe acaba de morrer, que têm um culto, seu jornal e não admitem a divindade do Cristo; os católicos apostólicos, que não reconhecem o papa, que têm seus padres e bispos casados, suas igrejas em Paris e nas províncias, onde batizam, casam e promovem cerimônias fúnebres. Por que, então, o Espiritismo, que não tem culto nem igreja, e cujos padres só existem na imaginação, levanta tanta animosidade? Coisa bizarra! o partido religioso e o partido materialista, que são a negação um do outro, dão-se as mãos para nos pulverizar, segundo dizem. Realmente o espírito humano apresenta caprichos singulares quando enceguecido pela paixão, e a história do Espiritismo terá coisas divertidas para registrar.


8. – A reposta está por inteiro nesta conclusão da brochura do Rev. Pe. Nampon: “Em geral nada é mais abjeto, mais degradante, mais vazio de fundo e de atrativo na forma que tais publicações, cujo sucesso fabuloso é um dos sintomas mais alarmantes de nossa época. Destruí-os, pois, e nada perdereis com isso. Com o dinheiro gasto em Lyon para essas inépcias, facilmente se teriam criado mais leitos nos hospitais de alienados, superlotados desde a invasão do Espiritismo. E que faremos dessas brochuras perniciosas? Faremos o mesmo que fez o grande apóstolo em Éfeso; e assim agindo conservaremos em nosso meio o império da razão e da fé, preservando as vítimas dessas lamentáveis ilusões de uma porção de decepções na vida presente e das chamas da eternidade infeliz.”


9. – Esse sucesso fabuloso é que confunde os nossos adversários. Eles não podem compreender a inutilidade de tudo quanto fazem para travar essa ideia que passa por cima de suas ciladas, endireita-se sob os seus golpes e prossegue sua marcha ascendente sem se preocupar com as pedras que lhe atiram. Isto é um fato indubitável e constatado muitas vezes pelos adversários desta ou daquela categoria, em suas prédicas e publicações. Todos deploram o progresso incrível dessa epidemia, que ataca até os homens de ciência, os médicos e os magistrados. Na verdade é preciso voltar do Texas para dizer que o Espiritismo está morto e ninguém mais fala dele. (Vide a Revista de fevereiro de 1863.)

Que fazemos para triunfar? Vamos pregar o Espiritismo nas praças? Convocamos o público às nossas reuniões? Temos missionários de propaganda? Contamos com o apoio da imprensa? Temos, enfim, todos os meios de ação, ostensivos e secretos, que possuís e usais com tanta prodigalidade? Não; para recrutar partidários temos mil vezes menos trabalho do que vós para os desviar. Contentamo-nos em dizer: “Lede; e se isto vos convém, voltai a nós.” Fazemos mais, dizendo: “Lede os prós e os contras e comparai.” Respondemos aos vossos ataques sem fel sem animosidade, sem acrimônia, porque não temos cólera. Longe de nos lamentarmos da vossa, nós a aplaudimos, porque ela serve à nossa causa. Eis entre milhares uma prova da força persuasiva dos argumentos dos nossos adversários. Um senhor que acaba de escrever à Sociedade de Paris, pedindo para dela fazer parte, assim começa sua carta: “A leitura de: A questão do Sobrenatural, os mortos e os vivos, do Padre Matignon; A questão dos Espíritos, do Sr. de Mirville; O Espírito batedor, do Dr. Bronson, e, finalmente, diversos artigos contra o Espiritismo, não fizeram senão que eu aderisse completamente à doutrina exposta em O Livro dos Espíritos e me deram o mais vivo desejo de fazer parte da Sociedade Espírita de Paris, para poder continuar o estudo do Espiritismo de maneira mais seguida e mais proveitosa.”


10. – Por vezes a paixão cega, a ponto de fazer cometer singulares inconsequências. Na passagem citada acima, o Rev. Pe. Nampon diz que “nada é mais vazio de atrativo que essas publicações, cujo sucesso fabuloso, etc.” Não percebe ele que essas duas proposições se destroem reciprocamente; uma coisa sem atrativo não poderia ter nenhum sucesso, porquanto só o terá com a condição de ter atrativo; com mais forte razão quando o sucesso é fabuloso.

Acrescenta que com o dinheiro gasto em Lyon com essas inépcias, facilmente teriam sido criados mais leitos nos hospícios de alienados daquela cidade, superlotados desde a invasão do Espiritismo. É verdade que seriam precisos trinta a quarenta mil leitos, só em Lyon, já que todos os espíritas são loucos. Por outro lado, visto que são inépcias, nenhum valor possuem. Por que, então, lhes dar as honras de tantos sermões, pastorais e brochuras? Quanto à questão do emprego de dinheiro, sabemos que em Lyon muita gente, por certo animada de maus sentimentos, havia dito que os dois milhões fornecidos por esta cidade aos cofres de São Pedro teriam dado mais pão a muitos operários infelizes durante o inverno, ao passo que a leitura dos livros espíritas lhes deu coragem e resignação para suportar sua miséria sem revolta.

O Pe. Nampon não é feliz em suas citações. Numa passagem de O Livro dos Espíritos ele nos faz dizer: “Há tanta distância entre a alma do animal e a alma do homem, quanto entre a alma do homem e a alma de Deus.” (Nº 597). Nós dissemos: …quanto entre a alma do homem e Deus, o que é muito diferente. A alma de Deus implica uma espécie de assimilação entre Deus e as criaturas corpóreas. Compreende-se a omissão de uma palavra por inadvertência ou erro tipográfico; mas não se acrescenta uma palavra sem intenção. Por que essa adição, que desnatura o sentido do pensamento, senão para dar um tom materialista aos olhos dos que se contentarem em ler a citação sem a verificar no original? Um livro que apareceu pouco antes de O Livro dos Espíritos, e que contém toda uma teoria cosmogônica, faz de Deus um ser muito diversamente material, porque composto de todos os globos do Universo, moléculas do ser universal, que tem um estômago, come e digere, e do qual os homens são o mau produto de sua digestão; contudo, nem uma palavra foi dita para o combater: todas as cóleras se concentraram sobre O Livro dos Espíritos. Será, talvez, porque em seis anos chegou à décima edição e espalhou-se em todos os países do mundo?

Não se contentam em criticar: truncam e desnaturam as máximas para aumentar o horror que deve inspirar essa abominável doutrina e nos pôr em contradição conosco mesmo. É assim que diz o Pe. Nampon, citando uma frase da introdução de O Livro dos Espíritos, página 30III: “Certas pessoas, dizei vós mesmos, entregando-se a esses estudos perderam a razão.” Damos assim a impressão de reconhecer que o Espiritismo conduz à loucura, ao passo que, lendo todo o parágrafo XV, a acusação cai precisamente sobre aqueles que a lançam. É assim que, tomando um trecho da frase de um autor, poderíamos levá-lo à forca. Os mais sagrados autores não escapariam a essa dissecção. É com tal sistema que certos críticos esperam mudar as tendências do Espiritismo e fazer crer que ele preconiza o aborto, o adultério, o suicídio, quando demonstra peremptoriamente a sua criminalidade e as funestas consequências para o futuro.


11. – O Pe. Nampon chega mesmo a apropriar-se de citações feitas com o objetivo de refutar certas ideias. “O autor – diz ele – às vezes chama Jesus-Cristo Homem-Deus; mas alhures (O Livro dos Médiuns, página 368), num diálogo com um médium que, tomando o nome de Jesus lhe dizia: “Eu não sou Deus, mas sou seu filho”, logo replica: “Então sois Jesus? Sim – acrescenta o Pe. Nampon – Jesus é chamado Filho de Deus, mas na acepção ariana, não sendo, portanto, consubstancial com o Pai.”

Antes de mais, não era o médium que se fazia passar por Jesus, mas um Espírito, o que é muito diferente. A citação é feita precisamente para mostrar a velhacaria de certos Espíritos e prevenir os médiuns contra seus subterfúgios. Pretendeis que o Espiritismo negue a divindade do Cristo ou vistes tal proposição formulada em princípio? É, dizeis vós, a consequência de toda a doutrina. Ah! se entrarmos no terreno das interpretações, poderemos ir mais longe do que quereis. Se disséssemos, por exemplo, que o Cristo não tinha chegado à perfeição, que teve necessidade das provas da vida corpórea para progredir; que a sua paixão lhe tinha sido necessária para subir em glória, teríeis razão, porque dele não faríamos sequer um Espírito puro, enviado à Terra com missão divina, mas um simples mortal, a quem o sofrimento era necessário, a fim de progredir. Onde encontrais que tenhamos dito isto? Pois bem! aquilo que nunca dissemos, que jamais diremos, sois vós que dizeis.

Ultimamente temos visto, no parlatório de uma casa religiosa de Paris, a seguinte inscrição, impressa em letras grandes e afixada para a instrução de todos: “Foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória, e não foi senão depois de ter bebido a longos sorvos na torrente da tribulação e do sofrimento que foi elevado ao mais alto dos céus.” (Salmo 110, v. 7.) É o comentário deste versículo, cujo texto é: “Ele beberá no caminho a água da torrente e é por ali que erguerá a cabeça (De torrente in via bibet: propterea exultabit caput [Psalmorum])”. Se, pois, “foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória; se não pôde ser elevado ao mais alto dos céus senão pelas tribulações e pelo sofrimento”, é que antes nem estava na glória nem no mais alto dos céus; por conseguinte não era Deus. Seus sofrimentos, pois, não aproveitavam somente à Humanidade, desde que necessários ao seu próprio adiantamento. Dizer que o Cristo tinha necessidade de sofrer para elevar-se é dizer que não era perfeito antes de sua vinda. Não conhecemos protesto mais enérgico contra a sua divindade. Se tal é o sentido do versículo do salmo que se canta nas vésperas todos os domingos cantam a não divindade do Cristo.

Com o sistema de interpretação vai-se muito longe, dizíamos nós. Se quiséssemos citar a de alguns concílios sobre este outro versículo: “O Senhor está a vossa direita; ele destruirá os reis no dia de sua cólera”, seria fácil provar que daí foi tirada a justificação do regicídio.


12. – Diz ainda o Pe. Nampon: “A vida muda inteiramente de aspecto (com o Espiritismo). A imortalidade da alma reduz-se a uma permanência material, sem identidade moral, sem consciência do passado.”

É um erro. O Espiritismo jamais disse que a alma ficasse sem consciência do passado. Ela perde momentaneamente a sua lembrança durante a vida corpórea, mas “quando o Espírito volta à vida anterior (a vida espírita), diante dos olhos se lhe estende toda a sua vida pretérita. Vê as faltas que cometeu e que deram causa ao seu sofrer, assim como de que modo as teria evitado. Reconhece justa a situação em que se acha e busca então uma existência capaz de reparar a que acaba de transcorrer.” (O Livro dos Espíritos, nº 393.) Uma vez que há lembrança do passado, consciência do ser, há então, identidade moral; desde que a vida espiritual é a vida normal do Espírito, que as existências corpóreas não passam de pontos na vida espírita, a imortalidade não se reduz a uma permanência material. Como se vê, o Espiritismo diz exatamente o contrário. Desnaturando-o assim, o Pe. Nampon não tem a desculpa da ignorância, porque suas citações provam que leu, mas se equivoca ao truncar citações e ao fazê-lo dizer o contrário do que diz.


13. – O Espiritismo é acusado por alguns de estribar-se no mais grosseiro materialismo, porque admite o perispírito, que tem propriedades materiais. É ainda uma falsa consequência, tirada de um princípio referido incompletamente. O Espiritismo jamais confundiu a alma com o perispírito, que não passa de um envoltório, como o corpo é um outro. Tivesse ela dez envoltórios e isto nada tiraria à sua essência imaterial. Já o mesmo não se dá com a doutrina adotada pelo concílio de Viena, no Dauphiné, na sua segunda sessão, em 3 de abril de 1312. Segundo essa doutrina, “a autoridade da Igreja ordena crer que a alma não passa da forma substancial do corpo; que não há ideias inatas e declara heréticos os que negarem a materialidade da alma.” Raul Fornier, professor de Direito ensina positivamente a mesma coisa em seus discursos acadêmicos, impressos em Paris em 1619, com aprovação e elogios de vários doutores em teologia.

É provável que o concílio, baseando-se nos fatos de numerosas manifestações espíritas visíveis e tangíveis, referidas nas Escrituras, manifestações que não deixam de ser materiais, pois ferem os sentidos, tenha confundido a alma com o envoltório fluídico ou perispírito, cuja distinção o Espiritismo demonstra. Sua doutrina é, pois, menos materialista que a do concílio.


14. – “Mas abordemos sem hesitar o homem da França, que é o mais adiantado nesses estudos. Para constatar a identidade do Espírito que fala, é preciso, diz o Sr. Allan Kardec, estudar sua linguagem. Pois bem! Que seja! Conhecemos por seus escritos autênticos o pensamento certo e, conseguintemente, a linguagem de São João, São Paulo, Santo Agostinho, Fénelon, etc. Como, pois, em vossos livros, ousais atribuir a esses grandes gênios pensamentos e sentimentos inteiramente contrários aos que ficaram para sempre consignados em suas obras?”

Assim, admitis que essas personagens em nada se enganaram; que tudo quanto escreveram é a expressão da verdade; que se hoje voltassem corporalmente deveriam ensinar tudo o que ensinaram outrora; que, vindo como Espírito, não devem renegar nenhuma de suas palavras. Entretanto, Santo Agostinho olhava como heresia a crença na redondeza da Terra e nos antípodas. Sustentava a existência dos íncubos e súcubos e acreditava na procriação pelo comércio dos homens com os Espíritos. Credes que a tal respeito e como Espírito não possa pensar de modo diverso do que pensava como homem e que hoje professasse essas doutrinas? Se suas ideias houveram de modificar-se em certos pontos, podem perfeitamente ter sido mudadas em outros. Se se enganou, logo ele, gênio incontestavelmente superior, por que vós mesmos não vos enganaríeis? Para respeitar a ortodoxia será preciso negar a Agostinho o direito, melhor dizendo, o mérito de retratar-se de seus erros?


15. – “Atribuís a São Luís esta sentença ridícula, sobretudo em sua boca, contra a eternidade das penas: Supor Espíritos incuráveis é negar a lei do progresso.” (O Livro dos Espíritos, nº 1007.)

Não é assim que ela é formulada. À pergunta: Haverá Espíritos que nunca se arrependam? respondeu São Luís: “Há os de arrependimento muito tardio; porém, pretender-se que nunca se melhorarão fora negar a lei do progresso e dizer que a criança não pode tornar-se homem.” A primeira forma poderia parecer ridícula. Por que, então, sempre truncar e desnaturar as frases? A quem pensam enganar? aos que apenas lerem esses comentários inexatos? Mas seu número é muito pequeno, perto dos que querem conhecer o fundo das coisas sobre as quais vós mesmos chamais a atenção. Ora, a comparação não pode senão favorecer o Espiritismo.


Nota. – Para a edificação de todos, recomendamos a leitura da brochura intitulada: Do Espiritismo, pelo Rev. Pe. Nampon [Adrien Nampon], da Companhia de Jesus, Livraria Girard et Josserand, Lyon, place Bellecour, nº 30; Paris, rue Cassette, nº 5. Rogamos também ler em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns os textos completos, citados resumidamente ou deturpados na brochura acima referida. [Vide ainda do Pe. Nampon Catholic doctrine as defined by the Council of Trent - Google Books.]









Setembro 2 UNIÃO DA FILOSOFIA E DO ESPIRITISMO

Setembro

1. — Nota. – O artigo seguinte é a introdução a um trabalho completo que o autor, Sr. Herrenschneider, se propõe fazer sobre a necessidade da aliança entre a Filosofia e o Espiritismo.


Desde que o Espiritismo se revelou na França, há cerca de dez ou doze anos, as comunicações incessantes dos Espíritos têm provocado em todas as classes da sociedade um movimento religioso benéfico, que importa encorajar e desenvolver. Com efeito, neste século o espírito religioso estava perdido, sobretudo entre as classes eruditas e inteligentes. O sarcasmo voltaireano aí tinha tirado o prestígio do Cristianismo; o progresso das ciências lhes havia feito reconhecer as contradições existentes entre os dogmas e as leis naturais, e as descobertas astronômicas tinham demonstrado a puerilidade da ideia que formavam de Deus os filhos de Abraão, de Moisés e do Cristo. O desenvolvimento das riquezas, as invenções maravilhosas das artes e da indústria, toda a civilização protestava, aos olhos da sociedade moderna, contra a renúncia ao mundo. Foi por causa desses numerosos motivos que a incredulidade e a indiferença se insinuaram nas almas, a negligência dos destinos eternos entorpeceu o nosso amor ao bem, paralisou o nosso aperfeiçoamento moral e a paixão do bem-estar, do prazer, do luxo e das vaidades terrestres acabou por cativar quase toda a nossa ambição; mas, de repente, os mortos vieram nos lembrar que a nossa vida presente tem o seu dia seguinte, que nossos atos têm suas consequências fatais, inevitáveis, quando não sempre nesta vida, infalivelmente na vida futura.

Essa aparição dos Espíritos foi uma trovoada que fez tremer muita gente, à semelhança de certos móveis, postos em movimento sob o impulso de uma força invisível; à audição desses pensamentos inteligentes, ditados por meio de um telégrafo grosseiro; à leitura dessas páginas sublimes, escritas por nossas mãos distraídas, sob o impulso de uma direção misteriosa. Quantos corações batiam, tomados de medo súbito; quantas consciências atormentadas despertaram em merecidas angústias; quantas inteligências feridas de estupor! A renovação dessas relações com as almas dos mortos é e continuará um acontecimento prodigioso, que terá como consequência a regeneração, tão necessária, da sociedade moderna.

É que, quando a sociedade humana só tem por objetivo de atividade a prosperidade material e o prazer dos sentidos, mergulha no materialismo egoísta, aprecia todas as ações conforme os bens que delas retira, renuncia a todos os esforços que não levem a uma vantagem palpável, só estima os que têm posses e não respeita senão o poder que se impõe. Quando os homens só se preocupam com os sucessos imediatos e lucrativos, perdem o senso da honestidade, renunciam à escolha dos meios, desprezam a felicidade íntima, as virtudes privadas e deixam de se guiar conforme os princípios de justiça e de equidade. Numa sociedade lançada nessa direção imoral, o rico leva uma vida de moleza ignóbil, embrutecedora, e o deserdado aí arrasta uma vida dolorosa e monótona, da qual o suicídio parece ser o último lenitivo.

Contra semelhante disposição moral, pública e privada, a filosofia é impotente. Não que lhe faltem argumentos para provar a necessidade social de princípios puros e generosos; não que ela não possa demonstrar a iminência da responsabilidade final e estabelecer a perpetuidade de nossa existência; mas, em geral, os homens não têm tempo, nem gosto, nem espírito bastante circunspeto, para prestar atenção à voz da consciência e às observações da razão. As vicissitudes da vida, aliás, muitas vezes são demasiado imperiosas para que se decidam pelo exercício da virtude pelo simples amor do bem. Mesmo quando a filosofia tivesse sido o que realmente deveria ser – uma doutrina completa e certa – jamais teria podido provocar, somente por seu ensino, a regeneração social de maneira eficaz, uma vez que até hoje ela não pôde dar à autoridade de sua doutrina outra sanção que não fosse o amor abstrato do ideal e da perfeição.

É que aos homens é preciso, para os convencer da necessidade de se consagrarem ao bem, fatos que falem aos sentidos. É-lhes necessário o quadro impressionante de suas dores futuras, para que consintam em subir a ladeira funesta por onde seus vícios os arrastaram; faz-se mister que toquem com o dedo as desgraças eternas que, pela sua invigilância moral, para si mesmos preparam, a fim de compreenderem que a vida atual não é o objetivo de sua existência, mas o meio que lhes deu o Criador de trabalharem pessoalmente para a realização de seus destinos finais. Assim, foi por estes motivos que todas as religiões apoiaram seus mandamentos no terror do inferno e nas seduções das alegrias celestes. Mas desde que, sob o império da incredulidade e da indiferença religiosa, as populações se certificaram das consequências últimas de seus pecados, acabou por prevalecer uma filosofia fácil e inconsequente, auxiliando o culto dos sentidos, dos interesses temporais e das doutrinas egoístas. Hoje, os homens esclarecidos, inteligentes e fortes afastam-se da Igreja e seguem suas próprias inspirações; falta-lhe a autoridade necessária para recuperar sua influência vinte vezes secular. Pode, pois, dizer-se que a Igreja é tão impotente quanto a filosofia e que nem uma nem outra exercerão influência salutar senão sofrendo, cada uma em seu gênero, uma reforma radical.

Enquanto isto a Humanidade se agita, os acontecimentos se sucedem e a chegada das manifestações espíritas neste século culto, prático, suficiente e céptico, é, incontestavelmente, o evento mais considerável. Eis, pois, que se abre o túmulo à nossa frente, não como o fim de nossas penas e de nossas misérias terrestres; não como um abismo escancarado, onde são devorados as nossas paixões, os nossos prazeres e as nossas ilusões, mas antes como o pórtico majestoso de um novo mundo, onde uns colherão, mau grado seu, os frutos amargos que suas fraquezas lhes terão feito semear, enquanto outros, ao contrário, garantirão, por seu mérito, a passagem a esferas mais puras e mais elevadas. É, pois, o Espiritismo que nos revela nossos destinos futuros; quanto mais ele for conhecido, tanto mais ganhará em impulso e em extensão a regeneração moral e religiosa.

A união do Espiritismo com as ciências filosóficas nos parece, realmente, de magna necessidade para a felicidade humana e para o progresso moral, intelectual e religioso da sociedade moderna, porquanto já não estamos no tempo em que se podia afastar a ciência humana em benefício da fé cega. A ciência moderna é muito sábia, muito segura de si mesma e muito avançada no conhecimento das leis impostas por Deus à inteligência e à Natureza, para que a transformação religiosa possa ocorrer sem o seu concurso. Conhece-se perfeitamente a exiguidade relativa de nosso globo para conferir à Humanidade um lugar privilegiado nos desígnios providenciais. Aos olhos de todos, não passamos de um grão de poeira na imensidade dos mundos, e sabe-se que as leis que regem essa multidão indefinida de existências são simples, imutáveis e universais. Enfim, as exigências da certeza de nossos conhecimentos foram fortemente aprofundadas, para que uma doutrina nova possa surgir e manter-se em outra base que não seja um misticismo tocante e inofensivo. Se o Espiritismo quiser estender seu império sobre todas as classes da sociedade, sobre os homens superiores e inteligentes, como sobre as almas delicadas e crentes, é preciso que se lance, sem reservas, na corrente do pensamento humano, e que, por sua superioridade filosófica, saiba impor à soberba razão o respeito de sua autoridade.

É esta ação independente dos adeptos do Espiritismo que compreendem perfeitamente os Espíritos elevados que se manifestam. Aquele que se designa sob o nome de Santo Agostinho dizia ultimamente: “Observai e estudai com cuidado as comunicações que vos são dadas; aceitai o que a razão não repele, rejeitai o que a choca; pedi esclarecimentos sobre as que vos deixam em dúvida. Tendes aí a marcha a seguir, para transmitir às gerações futuras, sem receio de as ver desnaturadas, as verdades que deslindais sem esforço do seu cortejo inevitável de erros.”

Eis, em poucas palavras, o verdadeiro espírito do Espiritismo, o que a Ciência pode admitir sem derrogar, aquele que nos servirá para conquistar a Humanidade. Aliás, o Espiritismo nada tem a temer de sua aliança com a filosofia, porque repousa sobre fatos incontestáveis, que têm sua razão de ser nas leis da Criação. Cabe à Ciência estudar-lhe o alcance e coordenar os princípios gerais, consoante essa nova ordem de fenômenos. Pois é evidente que, desde que ela não tinha pressentido a existência necessária, no espaço que nos cerca, das almas dos mortos ou das destinadas a renascer, a Ciência deve compreender que sua filosofia primeira estava incompleta e que princípios primordiais lhe haviam escapado.

A filosofia, ao contrário, tem tudo a ganhar ao considerar seriamente os fatos do Espiritismo. Primeiro; porque estes são a sanção solene de seu ensinamento moral; e depois porque tais fatos provarão, aos mais endurecidos, o alcance fatal de seu mau comportamento. Mas, por mais importante que seja esta justificação positiva de suas máximas, o estudo aprofundado das consequências, que se deduzem da constatação da existência sensível da alma no estado não encarnado, servir-lhe-á em seguida para determinar os elementos constitutivos da alma, sua origem, seus destinos, e para estabelecer a lei moral e a do progresso anímico sobre bases certas e inabaláveis. Além disso, o conhecimento da essência da alma conduzirá a filosofia ao conhecimento da essência das coisas e, mesmo, da de Deus, e lhe permitirá unir todas as doutrinas que a dividem num só e mesmo sistema geral, verdadeiramente completo. Enfim, esses diversos desenvolvimentos da filosofia, provocados por esta preciosa determinação da essência anímica, conduzi-la-ão infalivelmente sobre os traços dos princípios fundamentais da antiga cabala e da antiga ciência oculta dos hierofantes, de que a trindade cristã é o último raio luminoso que chegou até nós. É assim que, pela simples aparição das almas errantes, chegar-se-á, como temos todo direito de esperar, a constituir uma cadeia ininterrupta das tradições morais, religiosas e metafísicas da Humanidade antiga e moderna.

Este futuro considerável, que concebemos para a filosofia aliada ao Espiritismo, não parecerá impossível aos que tiverem alguma noção desta ciência, se considerarem a vacuidade dos princípios sobre os quais se fundam as diversas escolas e a impotência para elas disso resultante, de explicar a realidade concreta e viva da alma e de Deus. É assim que o materialismo imagina que os seres não passam de fenômenos materiais, semelhantes aos produzidos pelas combinações químicas, e que o princípio que os anima faz parte de um suposto princípio vital universal. De acordo com este sistema a alma individual não existiria e Deus seria um ser completamente inútil.

Por seu lado, os discípulos de Hegel imaginam que a ideia, esse fenômeno indisciplinado de nossa alma, seja um elemento em si, independente de nós; um princípio universal que se manifesta pela Humanidade e sua atividade intelectual, como também pela Natureza e suas maravilhosas transformações. Esta escola nega, por conseguinte, a individualidade eterna de nossa alma, e a confunde num só todo, com a Natureza. Ela supõe que exista uma identidade perfeita entre o universo visível e o mundo moral e intelectual; que um e outro sejam o resultado da evolução progressiva e fatal da ideia primitiva, universal, numa palavra, do absoluto. Deus também não tem, neste sistema, nenhuma individualidade, nenhuma liberdade, e não se conhece pessoalmente. Ele só se percebeu a si mesmo, pela primeira vez, em 1810, por intermédio de Hegel, quando este o reconheceu na ideia absoluta e universal. (Histórico).

Enfim, nossa escola espiritualista, vulgarmente chamada eclética, considera a alma como sendo apenas uma força sem extensão e sem solidez, uma inteligência imperceptível no corpo humano e que, uma vez desembaraçada de seu envoltório, conservando sua individualidade e sua imortalidade, não existiria mais, nem no tempo, nem no espaço. Nossa alma, pois, seria um não sei quê, sem ligação com o que existe, e não ocuparia nenhum lugar determinado. Segundo este mesmo sistema, Deus não é mais perceptível. É o pensamento perfeito e não tem, igualmente, nem solidez, nem estabilidade, nem forma, nem realidade sensível; é um ser vazio. Sem a razão nós não poderíamos ter nenhuma intuição. Entretanto, quem são os que inventaram o ateísmo, o cepticismo, o panteísmo, o idealismo, etc.? São os homens de raciocínio, os inteligentes, os sábios! Os povos ignorantes, cujas sensações são os principais guias, jamais duvidaram de Deus, da alma e de sua imortalidade. Parece que só a razão é má conselheira!

Em consequência, fácil é nos convencermos de que falta a essas doutrinas um princípio real, estável, vivo, da noção do ser real. Elas se movem num mundo inteligível, que não toca na realidade concreta. O vazio de seus princípios relaciona-se com o conjunto de seus sistemas e os torna tão sutis quanto vagos e estranhos à realidade das coisas. O próprio senso comum é ultrajado, não obstante o talento e a prodigiosa erudição de seus aderentes. Mas o Espiritismo é ainda mais brutal em relação a eles, porque derruba todos os sistemas abstratos, opondo-lhes um fato único: a realidade substancial, viva e atual da alma não encarnada. Ele lha mostra como um ser pessoal, existindo no tempo e no espaço, embora invisível para nós; como um ser tendo o seu elemento sólido, substancial e sua força ativa e pensante. Ele nos mostra mesmo as almas errantes, comunicando-se conosco por sua própria iniciativa. É evidente que semelhante acontecimento deve derrubar todos os castelos de cartas e, de uma assentada, eliminar essas soberbas estruturas fantasiosas.

Mas, para aumentar a confusão, pode provar-se aos partidários dessas doutrinas complicadas que todo homem traz na própria consciência os elementos suficientes para demonstrar a existência da alma, tal como o Espiritismo o estabeleceu pelos fatos, de modo que seus sistemas não só são errados no seu ponto de chegada, mas, também, em seu ponto de partida. Assim, o mais sábio partido que resta a tomar por esses honrados sábios, é refazer completamente sua filosofia e consagrar seu profundo saber à fundação de uma ciência original, mais precisa e mais conforme à realidade.

É que, efetivamente, carregamos conosco quatro i noções irredutíveis, que nos autorizam a afirmar a existência de nossa alma, tal qual o Espiritismo no-la apresenta. Primeiramente, temos em nós o sentimento de nossa existência. Tal pensamento não pode revelar-se senão por uma impressão que recebemos de nós mesmos. Ora, nenhuma impressão se faz sobre um objeto privado de solidez e de extensão, de sorte que por um só fato de nossas sensações devemos inferir que temos em nós um elemento sensível, sutil, extenso e resistente, isto é, uma substância. Em segundo lugar, temos em nós a consciência de um elemento ativo, causal, que se manifesta em nossa vontade, em nosso pensamento e em nossos atos. Em consequência, é ainda evidente que possuímos em nós um segundo elemento: uma força. Portanto, pelo simples fato de que sentimos e sabemos, devemos concluir que encerramos dois elementos constitutivos, força e substância, isto é, uma dualidade essencial, anímica.

Mas essas duas noções primitivas não são as únicas que levamos conosco. Ainda nos concebemos, em terceiro lugar, uma unidade pessoal, original, sempre idêntica a si mesma; e, em quarto lugar, um destino igualmente pessoal, porque todos nós procuramos a felicidade e as nossas próprias conveniências em todas as circunstâncias da vida. De maneira que, juntando essas duas novas noções, que constituem nosso duplo aspecto, às duas precedentes, reconhecemos que nosso ser encerra quatro princípios bem distintos: sua dualidade de essência e sua dualidade de aspecto.

Ora, como esses quatro elementos do conhecimento do nosso eu, que nos levam a nos afirmar pessoalmente, são noções independentes do corpo e não têm qualquer relação com o nosso envoltório material, é evidente e peremptório para todo espírito justo e não prevenido, que nosso ser depende de um princípio invisível, chamado Alma; e que esta alma existe como tal, desde que tem uma substância e uma força, uma unidade e um destino próprios e pessoais.

Tais são os quatro elementos primordiais de nossa individualidade anímica, dos quais cada um de nós traz em seu seio a noção e que nenhum homem poderia recusar. Em consequência, como dissemos, em todos os tempos a filosofia possuiu os elementos suficientes para o conhecimento da alma, tal como o Espiritismo no-la dá a conhecer. Se, pois, até o presente, a razão humana não conseguiu construir uma metafísica verdadeira e útil, que lhe tenha feito compreender que a alma deve ser considerada como um ser real, independente do corpo e capaz de existir por si mesma, substancial e virtualmente, no corpo e no espaço, é que ela desdenhou a observação direta dos fatos de consciência e que, em seu orgulho e em sua presunção, a razão foi posta em lugar e no lugar da realidade.

Conforme estas observações, pode compreender-se quanto importa à filosofia unir-se ao Espiritismo, pois deste tirará a vantagem de criar-se uma ciência original, séria e completa, fundada sobre o conhecimento da essência da alma e das quatro condições de sua realidade. Mas não é menos necessário ao Espiritismo aliar-se com a filosofia, porque só por ela poderá estabelecer a certeza científica dos fatos espíritas, que formam a base fundamental de sua crença, e daí tirar as importantes consequências que eles contêm. Sem dúvida, basta que o bom senso veja um fenômeno para crer em sua realidade, e muitos se contentam com isto; mas a Ciência muitas vezes teve motivos para duvidar do protesto do senso comum, para não se confiar nas impressões dos nossos sentidos e nas ilusões de nossa imaginação. O bom-senso não basta, pois, para estabelecer cientificamente a realidade da presença dos Espíritos à nossa volta. Para estar certo disto de maneira irrefutável, é preciso estabelecer racionalmente, de acordo com as leis gerais da criação, que sua existência é necessária por si mesma, e que sua presença invisível não é senão a confirmação dos dados racionais e científicos, tais como acabamos de indicar alguns, de maneira sumária. Assim, somente pelo método filosófico é possível chegar a esse resultado. Eis um trabalho necessário à autoridade do Espiritismo, e só a filosofia pode prestar-lhe esse serviço.

Em geral, seja em que empresa for, para triunfar é necessário aliar o conhecimento dos princípios à observação dos fatos. Nas circunstâncias particulares do Espiritismo, é ainda muito mais necessário proceder desta maneira rigorosa para chegar à verdade, porque nossa nova doutrina toca os nossos interesses mais caros e mais elevados, os que constituem a nossa felicidade presente e eterna. Por conseguinte, a união do Espiritismo e da Filosofia é da mais alta importância para o sucesso de nossos esforços e para o porvir da Humanidade.


F .Herrenschneider.


[Revista de novembro de 1863.]

2. UNIÃO DA FILOSOFIA E DO ESPIRITISMO.

PELO SR. HERRENSCHNEIDER. (2.° Artigo. – Vide a Revista de setembro de 1863.)
O PRINCÍPIO DA DUALIDADE DA ESSÊNCIA DA ALMA E O SISTEMA ESPIRITUAL DO SR. COUSIN E DE SUA ESCOLA.

No artigo anterior procuramos provar que se, em geral, os senhores livres-pensadores quisessem dar-se ao trabalho de examinar os motivos que lhes permitem afirmar-se, de dizer “eu”, chegariam ao conhecimento de sua dupla essência; convencer-se-iam de que sua alma é constituída de maneira a existir separadamente do corpo, tão bem quanto em seu envoltório, e compreenderiam a sua erraticidade quando, após a morte, ela tivesse deixado a sua matéria terrestre. De sorte que sua ciência, se fosse baseada sobre o verdadeiro princípio da constituição da alma, confirmaria os fatos espíritas, em vez de os contradizer com tanta persistência. Com efeito, nossa noção do eu compõe-se principalmente do sentimento e do conhecimento que temos de nós mesmos, e esses dois fenômenos íntimos, evidentes para todo o mundo, implicam peremptoriamente dois elementos distintos na alma: um passivo, sensível, extenso e sólido, que recebe as impressões; outro ativo, sem extensão e pensante, que os percebe. Em consequência, se possuímos, ao lado de um elemento virtual, um elemento resistente e permanente, diferente do nosso corpo, não podemos dissolver-nos pela morte; nossa imortalidade está provada e nossa preexistência é uma consequência natural. Nossos destinos, portanto, são independentes de nossa morada terrestre, e esta não passa de um episódio mais ou menos interessante para nós, conforme os acontecimentos que a enchem.

A dualidade da essência de nossa alma, de acordo com tais observações, é um princípio importante, pois nos instrui sobre a nossa existência real e imortal. Mas é um princípio tanto mais importante quanto é a fonte única em que haurimos a consciência certa de nossa individualidade, sendo assim a origem de nossa ciência, da qual não podemos duvidar, e sobre a qual repousa todo o resto dos nossos conhecimentos. Efetivamente, começamos todos por nos conhecer, antes de perceber o que nos rodeia; e medimos por nossa medida tudo o que examinamos e julgamos. Assim, é indispensável observar, para o estudo da verdade, que nosso saber parte de nós, para voltar a nós; que há um círculo formado por nós mesmos, que nos envolve e nos enlaça fraternalmente, mau grado nosso. Os filósofos atuais o ignoram e o sofrem sem se aperceberem. É ele que os ofusca, que os cega e os impede de olhar além e acima deles. Assim, teremos muitas oportunidades de constatar sua cegueira. Ao contrário, os antigos conheciam esse círculo e sua influência misteriosa, pois simbolizavam a Ciência sob a figura de uma serpente mordendo a própria cauda, depois de ter-se dobrado sobre si mesma. Aos seus olhos isto significava que nosso saber parte de um ponto dado, faz a volta de nosso horizonte intelectual e retorna ao ponto de partida. Ora, se esse ponto de partida for elevado e o olhar for penetrante, o horizonte será largo e a ciência vasta; se, ao contrário, o solo for raso e a visão turva, o horizonte será restrito e limitada a inteligência das coisas. Desse modo, tais quais formos pessoalmente, tal será o conjunto e o alcance dos nossos conhecimentos. Por este motivo torna-se evidente que a primeira condição da ciência individual é a de examinar-se a si mesmo, não só para distinguir suas qualidades, seus defeitos e seus vícios, mas, antes de tudo, para conhecer a constituição íntima do nosso ser e, depois, para elevar o nosso espírito e formar o nosso caráter.

Por conseguinte, a verdadeira ciência não é feita para cada um. Aquele que a aspira não só deve ter inteligência e instrução, mas, sobretudo, ser sério, sóbrio, prudente, e não se deixar levar pelo capricho da imaginação, por sua vaidade, seus interesses, sua suficiência. O que deve guiar o verdadeiro amante da verdade é um amor desinteressado por esse objetivo venerado; é a vontade enérgica e constante de jamais parar e de separar rigorosamente o joio do trigo. Quanto mais o homem possui, tanto mais é calmo e nobre e melhor saberá discernir as veredas que o conduzirão à verdade; quanto mais leviano, presunçoso ou apaixonado, tanto mais corromperá com seu hálito impuro os frutos que colherá na árvore da vida.

A primeira condição para chegar ao conhecimento das coisas é, pois, o caráter individual; é por esta razão que, na antiguidade, provas solenes precediam a toda iniciação. Hoje o saber é espalhado sem discernimento e cada um julga poder penetrá-lo; mas, também, mais que nunca a verdade é bem acolhida, enquanto as doutrinas mais estranhas encontram numerosos aderentes. Deveriam, pois, convencer-se de que os espíritos indiferentes, limitados pelas ciências exatas e naturais, levados pela imaginação, ou cheios de impertinência, são impróprios à pesquisa da verdade, e que seria mais prudente reservar esse nobre labor para alguns escolhidos. Entretanto, disposições mais sensatas hoje se manifestam pelo advento do Espiritismo; e, com efeito, os espíritas são homens bem-dispostos para a busca da verdade porque, separando-se do turbilhão geral que arrasta a sociedade, renunciaram por si mesmos às vaidades mundanas, aos princípios superficiais dos livres-pensadores e à superstição oficial dos cultos reconhecidos. Dão prova de sadia independência, de um amor sincero da verdade e de uma tocante solicitude por seus interesses eternos. São estas as melhores disposições morais para abordar os graves problemas da alma, do mundo e da Divindade. Para nosso bem eterno, experimentemos entender-nos e seguir juntos as pegadas que nos conduzirão à via sagrada. Porque temos necessidade de nos ajudarmos reciprocamente para alcançar o objetivo que todos buscamos: o de nos esclarecer apenas sobre o que é real e durável.

Depois das disposições morais que acabamos de indicar, a coisa mais indispensável para bem se engajar na obra delicada da iniciação é o conhecimento do princípio da dualidade da essência da alma, porquanto é ele que constitui uma parte do misterioso segredo da Esfinge É uma das chaves da Ciência e, sem a possuir, tornam-se inúteis todos os esforços para o atingir. Por si só, esse princípio da essência da alma encerra, como consequências, as noções consideráveis que desejamos adquirir, enquanto todos os princípios secundários até hoje descobertos não se elevam bastante para dominar o vasto horizonte dos conhecimentos humanos e para lhes abraçar todos os detalhes. Os princípios inferiores afastam os que deles se servem no dédalo de numerosos fatos que não esclarecem; e é pela insuficiência de seus princípios primordiais que os filósofos se transviaram e se perderam nas sutilezas arbitrárias de suas doutrinas incompletas. Fatalmente levaram a confusão onde acreditavam tocar a verdade. Nessas matérias, mais delicadas que difíceis, só o princípio verdadeiro espalha a luz, resolve facilmente todos os problemas e abre as portas secretas que conduzem ao mais distante santuário. Ora, já sabemos que levamos conosco esse princípio e que, para o descobrir, basta que nos estudemos, com calma e imparcialidade.

Sabemos que esse princípio é a dualidade de nossa essência anímica, de sorte que não nos resta senão desenrolar o fio cuidadosamente, do qual temos o nó mais importante. Não obstante, à medida que avançarmos em nosso estudo psicológico, consultaremos os trabalhos de nossos mais ilustres filósofos, a fim de reconhecer onde falharam e em que ponto suas doutrinas confirmam as nossas próprias pesquisas.

Assim, como observamos acima, parece evidente que tudo quanto em nós se prende à ordem sensível depende da substância de nossa alma, porque é o seu elemento extenso e sólido que recebe todas as impressões exteriores e que se ressente de nossa atividade interior. Com efeito, nossa alma não poderia ser tocada de uma maneira qualquer, sem que, primeiro, apresentasse um obstáculo às oscilações do meio ambiente e, em seguida, às vibrações das emoções que nos afetam intimamente. Portanto, é essa maneira de ser muito natural que explica as nossas relações com tudo o que existe, com o que não somos, com o nosso não-eu moral, intelectual e físico, visível ou invisível. A solidez e extensão de nossa substância não devem, em princípio, ser rejeitadas. Entretanto, não é essa opinião que reina na Universidade e no Instituto. O espiritualismo a nega como absurda, sob o pretexto especioso de que a divisibilidade, que seria a sua consequência, implicaria a corruptibilidade da substância. Mas isto não passa de um mal-entendido, pois o que importa à corruptibilidade da natureza anímica é a simplicidade química de sua fluidez corporal e não a sua indivisibilidade mecânica, em falta da qual há mil maneiras de remediar, ao passo que, para ficar na verdade científica, é preciso evitar a admissão de um efeito sem causa, uma impressão possível sem resistência. Assim, a sensibilidade de nossa alma nada ensina à nossa escola espiritualista; liga gratuitamente os sentimentos à razão, atribui as sensações ao organismo material e não dá explicações sobre a conexão dessas diversas faculdades. Eis uma das causas de sua impotência filosófica.

Quanto a nós, a sensibilidade de nossa alma é a prova irrecusável da solidez e da extensão de sua substância, e é a noção dessas propriedades que nos abre um vasto campo de observação. Assim, de início, a extensão e a solidez substancial permitem à nossa alma tomar diferentes formas e encerrar o tipo de todos os órgãos que constituem nosso organismo corporal. Serve, assim, de origem e sustentáculo aos nossos nervos, aos nossos sentidos, ao nosso cérebro, às nossas vísceras, aos nossos músculos e ossos, permitindo que nos encarnemos por meio desta lei da mutabilidade das moléculas corporais, tão conhecida de nossos modernos fisiologistas. Nossos cientistas supõem apenas, e erradamente, em nossa opinião, que essa lei seja efeito de uma força misteriosa da matéria, que se renova, se absorve, se escoa e se forma por si mesma, pois a matéria é inerte e nada forma por sua própria iniciativa. Evidentemente esta mutabilidade é efeito da atividade instintiva de nossa dupla essência anímica, que se acha sob o nosso envoltório. A existência desta lei prova que a nossa encarnação está na ordem da Natureza, visto ser contínua e, ao cabo de uma série de anos, nosso corpo se renova regularmente. A formação do nosso revestimento material, e a nossa encarnação sucessiva explicam-se, muito naturalmente, desta maneira. Mas, além disso, essa substancialidade extensa de nossa alma nos faz compreender igualmente o laço existente entre ela e o nosso corpo, porquanto, não passando o nosso organismo visível de cobertura do nosso organismo substancial, tudo quanto é sentido por um deve repercutir necessariamente no outro. As emoções da substância da alma devem abalar o corpo e o estado deste deve afetar, inevitavelmente, suas próprias disposições morais e intelectuais. Eis o primeiro ensinamento resultante da natureza concreta de nossa substância.

O segundo ensinamento que daí retiramos é que a parte da substância de nossa alma, que não serve de tipo ao nosso organismo material, deve ser a base do nosso senso íntimo, daquele que recebe todas as nossas impressões morais e intelectuais, e que nos põe em contato com a própria substância divina, de sorte que nossa substância recebe as impressões da irradiação de todas as existências e de todas as atividades possíveis e se acha entre a origem primeira de todas as nossas noções. É da mesma maneira que recebemos o conhecimento de nós mesmos. Porque se perguntarmos a um céptico como pode afirmar-se, sem a menor reserva responderá: “É que eu me sinto”, pois o próprio céptico não pode duvidar de suas sensações. Entretanto, sentir-se não é todo o nosso conhecimento: o céptico também não pode negar que sabe que se sente. Ora, a percepção do nosso sentimento é consequência de nossa atividade intelectual, o que prova que nossa alma não só é passiva, mas, também, ativa, tem vontade, percebe, pensa e é livre por sua própria iniciativa. Nossos próprios órgãos funcionam sem que tenhamos consciência, de sorte que se é forçado a atribuir à nossa alma um segundo elemento, um elemento ativo, virtual, isto é, uma força essencial, que está atenta quando nossa sensibilidade está desperta e que, por efeito de seu próprio movimento, percebe, pensa e reflete por meio do nosso órgão cerebral, age auxiliada por nossos membros e anima nosso organismo com um movimento involuntário. É pela presença em nossa alma dessa dupla ordem essencial: da ordem substancial passiva e sensível, e da ordem virtual ativa e pensante, que nós sentimos, sabemos e temos consciência de nossa própria personalidade, sem nenhum auxílio do mundo exterior.

Nossa força anímica é o nosso elemento espiritual por excelência, porque não tem, por si mesma, nem extensão nem solidez; só nos é conhecida por sua atividade. Desde que não quer, nem pensa, nem age, é como se não existisse; e se nossa alma não fosse substancialmente concreta, pela virtude de um outro elemento, nosso corpo não teria consistência e não passaria de um amontoado de pó; nem mesmo poderia existir na erraticidade, pois se perderia no nada, a menos que se admitisse, com o espiritualismo, um mistério impenetrável, que lhe permitisse existir sem ter extensão nem solidez, suposição que o Espiritismo e as leis naturais tornam completamente inadmissível. Entretanto, é nossa força essencial que Leibniz considera como sendo nossa substância, sem levar em conta a sua natureza fugidia; e a escola espiritualista francesa o repete, a seu exemplo, sem se deter nessa confusão ilógica. Todavia, não basta chamar força a uma substância para que esta realmente o seja, e considerar essa substância imaginária como sendo o fundo de nosso ser, para que se saia do vazio das abstrações. Uma substância não é tal senão por seu estado concreto, sua extensão e sua solidez, por mais sutil que a queiramos conceber e é o que nossa escola espiritualista se compraz em passar em silêncio. Eis aí uma outra causa de sua impotência moral e filosófica.

Nossa força essencial é o princípio de nossa atividade; ela nos anima, mas não nos constitui. É o princípio de nossa vida, mas não o de nossa existência. Está por toda parte em nossa substância, espalha-se com ela em todo o nosso ser e dele recebe diretamente as impressões, sem o nosso concurso voluntário. É por esta íntima união de nossos dois elementos essenciais que nosso organismo funciona espontaneamente; que nossas sensações despertam a seguir nossa atenção e nos levam, sem outro intermediário, a perceber a causa de nossas impressões; que nossa consciência é um conjunto de sentimentos e de reflexões e que toda noção, seja qual for o seu objeto, exige que o sintamos e o saibamos. Desde então somente nós estamos certos de sua existência. É por este mesmo processo que temos conhecimento do Ser Supremo. Temos a sensação de sua presença por nosso senso íntimo, e nos explicamos esta sensação sublime por nossa razão, porque o ideal do verdadeiro, do bem e do belo está, inicialmente, em nosso coração, antes de nos entrar na cabeça. Os povos selvagens nisto não se enganam; não duvidam de Deus; apenas o imaginam conforme o nível de sua grosseira inteligência, ao passo que vemos nossos cientistas a querelar sobre a sua personalidade, porque nada pretendem admitir, a não ser pela força de seu raciocínio, e porque se debatem em abstrações, sem ponto de apoio na ordem sensível.

Tal a constituição de nossa alma. Ela se compõe de dois elementos bem distintos entre si e, não obstante, indissoluvelmente unidos; porque jamais e em parte alguma esses elementos se encontraram separadamente: toda substância tem sua força e toda força tem sua substância. Assim, esta dualidade se acha reunida na essência de tudo o que existe; está na matéria, na alma, em Deus. Nós o repetimos: esta distinção na unidade é necessariamente admissível, porque cada um desses elementos está bem caracterizado; porque têm suas propriedades respectivas e sua modalidade categórica; e porque é uma lei universal que um mesmo princípio não pode ter efeitos contrários, que qualidades que se excluem revelam outros tantos princípios particulares. Mas sua unidade não é menos peremptória, porque nenhuma função, nenhuma faculdade, nenhum fenômeno se produz em nós e alhures sem o concurso simultâneo desses dois elementos irredutíveis.

É esta unidade na dualidade constante de nossa alma que nos explica ainda esse fenômeno psicológico importante, a saber: a espontaneidade instintiva de todas as nossas faculdades e de todas as nossas funções, assim como a formação do nosso caráter e da nossa natureza moral íntima. Efetivamente, nossas impressões se nos conservam e se reproduzem involuntariamente, de sorte que, como a substância é o elemento passivo e permanente de nossa alma, é preciso que se lhe atribua a propriedade de conservar as nossas sensações, de concretizá-las em si e de transmiti-las à atenção de nossa força essencial. Sendo essas impressões de toda espécie, forma-se em nós, por esta propriedade conservadora, uma ordem moral, intelectual e prática permanente, que se manifesta por nossa atividade instintiva e espontânea, que nos inspira os sentimentos e as ideias e guia os nossos atos sem o nosso concurso voluntário e, muitas vezes, à nossa revelia. Além disso, esses sentimentos e essas ideias adquiridas se agrupam em nossa alma e nos produzem novas ideias e novas imagens, que estávamos longe de esperar. As funções psicológicas de nossa substância, unida à nossa força essencial, são, assim, multiplicadas e nos formam uma natureza moral, intelectual e prática espontânea, que é o fundo do nosso caráter, a origem de nossas disposições naturais. Desse modo, a nossa substância encerra, em estado latente, ou em potencial, como se exprime a escola, todas as nossas qualidades, todos os nossos conhecimentos, todos os nossos hábitos passados em estado permanente. Em consequência, a ela e à sua atividade instintiva é que se deve atribuir a memória, a imaginação, o espírito e os sentidos naturais, bem como a origem de nossas ideias e sentimentos.

Esta ordem substancial instintiva existe incontestavelmente em nossa alma. Cada um se reconhece uma natureza moral permanente, disposições intelectuais e hábitos próprios, que lhe facilitam a carreira e a conduta, se forem bons; ou que impede o sucesso e o arrasta em desvios deploráveis, se forem maus. Só os nossos filósofos não percebem, porque, não admitindo, como já fizemos notar, uma ordem psicológica substancial, condenam-se a atribuir tudo o que é resistente em nossa alma à influência da matéria, e a confundir tudo o que é sensível e vivo com a nossa inteligência. É verdade que Aristóteles reconhecia no homem uma ordem potencial, onde todas as nossas qualidades estão em potencial; mas o define mal e também a confunde com a matéria. Desde então, ninguém mais se ocupou dessa ordem especial, a não ser o Sr. Cousin. Mas este filósofo contemporâneo, não reconhecendo na alma senão a inteligência, só considerou a atividade espontânea, sem lhe buscar a origem no elemento permanente da nossa natureza anímica. Ele a designa como sendo a razão espontânea e instintiva, em oposição à razão refletida, sem se dar conta da contradição existente entre o instinto e a reflexão, qualidades que se excluem e que, evidentemente, não podem pertencer ao mesmo princípio! É por isso que o Sr. Cousin tira apenas consequências limitadas desta descoberta, razão pela qual a sua psicologia, como a sua escola, tornou-se uma ciência árida, ilógica e sem grande alcance.

Detenhamos agora o pensamento sobre o conjunto de observações que precedem, pois elas nos fizeram conhecer fenômenos psicológicos até hoje desconhecidos. Elas nos fizeram constatar em nossa alma a existência de duas ordens morais, intelectuais e práticas bem distintas e fortemente caracterizadas: uma se reportando perfeitamente às propriedades particulares de nossa substância, que são a permanência, a extensão e a solidez; a outra, as de nossa força essencial, que são a sua causalidade, sua inextensão e sua intermitência. A primeira é passiva, sensível, conservadora; a segunda é ativa, voluntária e refletida. A união íntima dos nossos dois elementos essenciais produz em nós, além disso, nossa tríplice atividade instintiva, que é o reflexo direto do estado verdadeiro de nossas qualidades e de nossos defeitos naturais.

Com efeito, de um lado, quanto mais sensível, delicada e conservadora for a nossa natureza substancial, e mais viva e enérgica a nossa atividade instintiva, tanto mais puros e elevados serão nossas ideias e sentimentos, justo o nosso bom-senso e fáceis e seguras a nossa memória e a nossa imaginação. Ao contrário, quanto menos aperfeiçoado for o nosso estado substancial, mais lentas e limitadas serão a nossa memória e a nossa imaginação, mais grosseiras as nossas ideias, mais vis os nossos sentimentos e mais obtuso o nosso senso comum. Mas, por outro lado, quanto mais enérgica, constante e flexível a nossa força causadora, mais fortes serão a nossa atenção, a nossa vontade, a nossa virtude e o nosso domínio sobre nós mesmos, mais alcance terão a nossa percepção, o nosso pensamento, o nosso juízo e a nossa razão e, enfim, maior a nossa habilidade e mais honrosa a nossa conduta, porque todas essas qualidades e faculdades derivam de nosso elemento virtual. Ao contrário, quanto mais mole, entorpecida ou rígida a nossa força essencial, tanto mais a nossa brutalidade e a nossa covardia moral e intelectual se manifestarão em plena luz. Desse modo, o nosso valor tanto depende do estado das qualidades e das propriedades de um, quanto do outro elemento de nossa alma.

Tal o quadro sumário que apresenta a constituição íntima de nossa essência anímica, e que nos revela a nossa dupla faculdade de nos sentir e de nos saber. Esse quadro no-la mostra, para começar, em sua unidade viva, pois descobrimos o duplo princípio de sua atividade e de sua passividade, de sua permanência e de sua causalidade, de sua existência no tempo e no espaço, e de sua independência própria e distinta de Deus, do mundo e de seu envoltório material. Ele no-la mostra depois na sua diversidade maravilhosa, pois reconhecemos a origem de suas qualidades e de suas faculdades, de suas funções e de seu organismo, nas propriedades respectivas de nossos elementos essenciais e em seu concurso recíproco. Entretanto, este quadro não passa de um primeiro esboço e, contudo, fácil é nele notar o método de observação rigorosa que seguimos e que é o mesmo que Bacon descobriu, que Descartes introduziu na psicologia, que a escola escocesa aplicou e que a escola espiritualista e eclética observou em toda a sua doutrina. Encontramo-nos, pois, no mesmo terreno que o de toda filosofia séria e, se muitas vezes estamos em desacordo com as nossas celebridades acadêmicas, é que não podemos deixar de crer que a maioria dos fatos de consciência foi por elas mal observados e mal explicados.

Com efeito, o ecletismo espiritualista nos reconhece três faculdades principais: a vontade, a sensação e a razão. Estas faculdades se distinguem do nosso corpo, que é sólido e extenso, de modo que possuímos, necessariamente, uma alma inextensa e espiritual. Feita esta consideração, o ecletismo não pergunta como a nossa alma deve ser constituída para ser sensível, nem se a vontade e a razão, que são ambas ativas, não são duas manifestações de um mesmo princípio virtual. São perguntas que não o inquietam. Ele apenas sustenta que, dessas três faculdades, só a vontade de fato nos pertence, pois só ela é o resultado de uma força substancial inextensa, que é o princípio primordial do nosso eu. Aos seus olhos, a sensibilidade não passa de efeito do choque resultante da ação que a força do mundo exterior exerce sobre a nossa, por meio do nosso organismo. Mas, também, o ecletismo não pesquisa como a nossa força inextensa se liga ao nosso organismo, nem como, nesse isolamento inextenso, ela pode receber o choque, assim como não explica como podemos ser sensíveis. São pequenos mistérios que não poderiam detê-lo.

A razão, conforme o Sr. Cousin, é a faculdade soberana do conhecimento, mas é impessoal, isto é, não nos pertence, embora dela nos sirvamos. Dizer minha razão, segundo ele, é uma insensatez, pela mesma razão por que não se diz minha verdade. Tal motivo não nos parece muito concludente, mas, provavelmente, a falta é nossa. Com efeito, em seu sistema, a razão é o conjunto das verdades necessárias e universais, tais como os princípios da causalidade, da substância, da unidade, do verdadeiro, etc. A coleção destes princípios forma, pois, segundo ele, a razão divina, da qual participamos pela vontade inefável do Todo-Poderoso. Mas é aí que se deve crer sob palavra, pois não vimos precisamente como uma coleção de verdades, por mais universais que sejam, poderia constituir a razão divina e humana. Vulgarmente as verdades são leis e a razão é uma faculdade. Ora, eu vejo o Sol, mas jamais a faculdade de ver foi tomada pelo Sol, nem pelo menor de seus raios. Eis, pois, aí um novo mistério, a juntar aos precedentes; de sorte que, nessa doutrina, nada se explica por si, nada se liga e nossa alma aí só é representada como um conjunto heterogêneo de faculdades, de qualidades, de funções distintas, ligadas ao acaso, como folhas esparsas que tivessem sido reunidas num volume, sob o título pomposo de Doutrina filosófica do século XIX. O segundo prefácio da terceira edição dos Fragmentos filosóficos lhe trazem um resumo, interessante sob vários aspectos.

De acordo com estas considerações, podem julgar-se as causas que fazem da filosofia espiritualista oficial, apesar de suas boas intenções, uma doutrina bizarra e indigesta. Estaríamos mesmo autorizados a tratá-la mais duramente, se se perdessem de vista os eminentes serviços que ela prestou ao espírito francês, desviando-o de um sensualismo imoral e de um cepticismo desesperador. Aí estavam, evidentemente, as principais preocupações do ilustre filósofo no começo de sua brilhante carreira; e, estudando suas obras notáveis, vê-se que Condillac e Kant foram seus principais adversários. Assim, esta luta é a parte mais importante de seus trabalhos. Ao contrário, seu próprio sistema nos parece muito defeituoso e sua moral, sua teodiceia e sua ontologia contêm numerosos pontos muito controvertidos. A verdade é uma flor tão delicada! o menor sopro do erro a emurchece em nossas mãos e a reduz a um pó pernicioso e ofuscante. É, sobretudo, no calor do combate ou na emoção da ambição que se torna difícil conservar a calma de espírito e a delicadeza do sentimento de evidência, de modo que o homem preocupado é facilmente arrastado a ultrapassar os limites da verdadeira sabedoria. Felizmente o Criador nos reservou fatos, circunstâncias, acontecimentos providenciais, bastante chocantes para nos reconduzir ao bom caminho. E, certamente, as doutrinas e os fatos sobre os quais se funda o Espiritismo estão neste número. Que os nossos grandes e sábios filósofos não o repilam sob o fútil pretexto de superstição. Que os estudem sem prevenção! Neles reconhecerão a natureza extensa e sólida de nossa alma, sua preexistência e sua perpetuidade. Nele encontrarão uma moral suave e salutar, apropriada a reconduzir todo o mundo ao bem. Se, então, seu espírito pedir para dele se dar conta, que se atirem francamente à obra, que examinem cientificamente os seus princípios e consequências. E, então, talvez o princípio da dualidade da essência da alma lhes apareça em todo o seu esplendor e em toda a sua força, porque, parece-nos, ele lança uma viva luz sobre os segredos íntimos do nosso ser. É o que continuaremos a examinar dentro de pouco tempo.


F. Herrenschneider.





Maio 7 ALGUMAS REFUTAÇÕES

Maio

1. – De vários pontos nos assinalam novas prédicas contra o Espiritismo, todas no mesmo espírito daquelas de que temos falado; e como não passam, quase sempre, de variantes do mesmo pensamento, em termos mais ou menos escolhidos, julgamos supérfluo fazer-lhes a análise. Limitar-nos-emos a destacar certas passagens, acompanhando-as de algumas reflexões.


“Meus irmãos, é um cristão que fala a cristãos e, nessa qualidade, temos o direito de nos admirarmos, vendo o Espiritismo crescer entre nós. O que é o Espiritismo, eu vos pergunto, senão um mosaico de horrores que só a loucura pode justificar?”

A isto nada temos a dizer, senão que todas as prédicas feitas nesta cidade foram incapazes de deter o crescimento do Espiritismo, como bem constata o orador; portanto, os argumentos que lhe opõem têm menos autoridade que os seus; e, se as prédicas emanam de Deus e o Espiritismo procede do diabo, é que este é mais poderoso que Deus. Nada mais brutal que um fato. Ora, a propagação do Espiritismo, em consequência mesma das prédicas, é um fato notório, e por certo as pessoas julgam que os argumentos por ele dados são mais convincentes que os dos adversários. É uma trama de horrores. Seja. Mas haveis de concordar que se esses Espíritos viessem abraçar todas as vossas ideias, em vez de demônios, deles faríeis santos; e, longe de condenar as evocações, vós as encorajaríeis.


2. – “Nosso século não respeita mais nada; nem mesmo a cinza dos túmulos é poupada, pois insensatos ousam chamar os mortos para conversar com eles. Infelizmente é assim. Eis até onde chegou esse pretenso século das luzes: conversar com as almas do outro mundo.”

Conversar com os mortos não é privilégio deste século, já que a história de todos os povos comprova que isto tem ocorrido em todos os tempos. A única diferença é que hoje isto é feito em toda parte sem os acessórios supersticiosos com que outrora cercavam as evocações, e com um sentimento mais religioso e mais respeitoso. De duas uma: ou a coisa é possível, ou não é. Se não é, é uma crença ilusória; tal como acreditar na fatalidade da sexta-feira, na influência do sal derramado. Não vemos, pois, que haja tantos horrores e que sé falte com o respeito conversando com seres que já não pertencem a este mundo. Se os mortos vêm conversar conosco, só pode ser com a permissão de Deus, a menos que se pretenda que venham sem essa permissão, ou contra a sua vontade, o que implicaria que Deus não se importa com isso ou que os evocadores são mais poderosos que Deus. Mas notai as contradições: de um lado dizeis que só o diabo se comunica e, de outro, que se perturbam as cinzas dos mortos, chamando-os. Se é o diabo, não são os mortos; portanto, não são perturbados nem se lhes falta com o respeito. Se são os mortos, então não é o diabo. Seria preciso, ao menos, que vos pusésseis de acordo sobre este ponto capital. Admitindo que sejam os mortos, reconhecemos que haveria profanação em chamá-los levianamente, por razões fúteis, sobretudo para fazer disto profissão lucrativa. Condenamos todas essas coisas e não nos responsabilizamos pelos que se afastam dos princípios do Espiritismo sério. Não assumais responsabilidade pelos falsos devotos, que da religião só têm a máscara, que pregam o que não praticam ou que especulam com as coisas santas. Certamente evocações feitas em condições burlescas atribuídas a um eloquente orador que citamos mais adiante, seriam um sacrilégio; mas, graças a Deus, não nos envolvemos com isso e não cremos que a do Sr. Viennois, igualmente referida adiante [v. Sr. Philibert 5iennois], esteja neste caso.


3. – “Eu mesmo testemunhei estes fatos e ouvi pregar a moral, a caridade; é verdade. Mas sobre que se apoiam esta moral e esta caridade? Ah! sobre nada, porquanto não se pode chamar moral uma doutrina que nega as penas eternas.”

Se essa moral leva a fazer o bem sem o temor das penas eternas, é mais meritória ainda. Outrora se julgava impossível manter a disciplina na escola sem o medo da palmatória. Eram melhores os estudantes? Não; hoje ela não é mais usada e eles não são piores: ao contrário. Logo, o regime atual é preferível.

Julga-se a qualidade de um meio pelos seus efeitos. Aliás, a quem se dirige essa moral? Exatamente aos que não acreditam nas penas eternas, e a quem damos um freio, que aceitam, ao passo que não lhos dais, uma vez que não aceitam o vosso. Impedimos acreditem na danação absoluta aqueles a quem isto convém? Absolutamente. Ainda uma vez, não nos dirigimos aos que têm fé e aos quais esta basta, mas aos que não a têm ou duvidam. Preferiríeis que eles ficassem na incredulidade absoluta? Seria pouco caridoso. Temeis que vos tomem ovelhas? É que não tendes muita confiança no poder de vossos meios para retê-las; é que receais que elas sejam atraídas pela erva tenra do perdão e da misericórdia divina. Acreditais, então, que as que vacilam na incerteza preferirão as labaredas do inferno? Por outro lado, quem deve estar mais convencido das penas eternas, senão os que são alimentados no seio da Igreja? Ora, dizei por que essa perspectiva não deteve todos os escândalos, todas as atrocidades, todas as prevaricações contra as leis divinas e humanas, que pululam na História e se reproduzem incessantemente em nossos dias? São crimes ou não? Se, pois, os que fazem profissão desta crença não são tolhidos em suas ações, como querer que o sejam os que não creem? Não; ao homem esclarecido de nossos dias é preciso outro freio: aquele que sua razão admite. Ora, a crença nas penas eternas, talvez útil em outras épocas, está superada; extingue-se dia a dia e, por mais que fizerdes, não dareis vida a um cadáver nem fareis reviver os usos, costumes e ideias da Idade Média. Se a Igreja Católica julga sua segurança comprometida pelo desaparecimento dessa crença, devemos lamentá-la por repousar sobre base tão frágil, porque, se algo a atormenta, este é o dogma das penas eternas.


4. – “Assim, apelo à moralidade de todas as almas honestas; apelo aos magistrados, pois eles são responsáveis por todo o mal que semelhante heresia atrai sobre nossas cabeças.”

Não sabíamos que na França os magistrados fossem encarregados de instaurar processos contra as heresias, pois se entre eles há católicos, também há protestantes e judeus; assim, os próprios heréticos se incumbiriam de sua perseguição e condenação. E os há entre os funcionários da mais alta categoria.


5. – “Sim, os espíritas – e não receio declarar aqui abertamente – não apenas são passíveis da polícia correcional e da Corte Imperial, mas, também – prestai bem atenção – do tribunal do júri, porque são falsários; assinam comunicações em nome de pessoas que certamente jamais as teriam assinado em vida, pessoas que hoje eles tanto fazem falar.”

Os espíritas estão realmente muito contentes, porque Confúcio, Sócrates, Santo Agostinho, São Vicente de Paulo, Fénelon e outros não lhes podem mover processos por crimes de falsificação de escrita particular. Bem que eu sonho com isso: eles teriam uma tábua de salvação precisamente nos tribunais do júri a cuja jurisdição estão sujeitos, pois ali os jurados se pronunciam segundo a sua consciência. Ora, entre eles há também protestantes e judeus; há, até – coisa abominável! – filósofos, incrédulos, horríveis livres-pensadores que, à vista de nossas detestáveis leis modernas, se acham em toda parte. Assim, se nos acusam de fazer Santo Agostinho dizer algo de heterodoxo, sempre encontraremos jurados que nos absolvam. Ó perversidade do século! dizer que em nossos dias Voltaire, Diderot, Lutero, Calvino, João Huss, Ário teriam sido jurados por direito de nascimento, que poderiam ter sido juízes perfeitos, ministro da justiça e mesmo dos cultos! Vede-os, esses celerados infernais, a se pronunciarem sobre uma questão de heresia! Porque, para condenar a assinatura de Fénelon, posta abaixo de uma suposta comunicação herética, é preciso julgar a questão da ortodoxia; e quem será competente no júri?


6. – “Entretanto, seria tão fácil interditar semelhante impiedade! O que se precisaria fazer? quase nada; mesmo sem lhes fazer a honra da capa do comissário, podeis colocar um sargento à entrada de cada grupo para dizer: não entreis. Pinto o mal e descrevo o remédio, apenas isto, pois eu os dispenso da Inquisição.”

Muito obrigado, mas não há grande mérito em oferecer aquilo que não se tem. Infelizmente, para vós, não podeis contar com a Inquisição, sem o que seria duvidoso que nos liberásseis dela. O que não dizeis aos magistrados, visando à interdição da entrada dos templos judeus e protestantes, onde se pregam publicamente dogmas que não são os vossos? Quanto aos espíritas, não têm templos nem sacerdotes, mas – o que para vós é a mesma coisa – grupos, à entrada dos quais basta pôr um sargento para que tudo fique dito. Realmente é muito simples. Mas esqueceis que os Espíritos ignoram qualquer proibição e entram em toda parte sem pedir permissão, mesmo em vossa casa, pois os tendes ao vosso lado, escutando-vos, sem que o suspeiteis e, ademais, vos falando ao ouvido. Trazei à memória as vossas lembranças e vereis que tivestes mais de uma manifestação, mesmo sem a haverdes buscado.

Pareceis ignorar uma coisa que é bom saibais. Os grupos espíritas não são absolutamente necessários; são simples reuniões onde se sentem felizes por encontrar-se pessoas que pensam do mesmo modo. E a prova disto é que hoje, na França, há mais de 600.000 espíritas, 99% dos quais não fazem parte de nenhum grupo e neles jamais puseram os pés; que eles não existem numa porção de cidades; que nem os grupos nem as sociedades abrem suas portas ao público para pregar suas doutrinas aos transeuntes; que o Espiritismo se prega por si mesmo e pela força das coisas, porque responde a uma necessidade da época; que as ideias espíritas estão no ar e são aspiradas por todos os poros da inteligência; que o contágio está no exemplo dos que são felizes com essas crenças e que são encontrados por toda parte, na sociedade, sem que se precise procurá-los nos grupos. Assim, não são os grupos que fazem a propaganda, pois não apelam ao primeiro que apareça; ela é feita pouco a pouco, de indivíduo a indivíduo. Se, portanto, admitíssemos a interdição de todas as reuniões, os espíritas ficariam livres para se reunirem em família, como já ocorre em milhares de lugares, sem que o Espiritismo nada sofra com isso; muito ao contrário, pois temos sempre condenado as grandes assembleias, que são mais prejudiciais que úteis; além disso, a intimidade é reconhecida como a condição mais favorável às manifestações. Interditaríeis as reuniões familiares? Colocaríeis um sargento à porta de um salão para vigiar o que se passa à lareira? Isto não se faz na Espanha, nem em Roma, onde há mais espíritas e médiuns do que pensais. Só faltava isso para aumentar ainda mais a importância do Espiritismo.

Admitamos agora a interdição legal dos grupos. Sabeis o que fariam esses espíritas que acusais de semear a desordem? Eles diriam: Respeitamos a lei; dura lex, sed lex [A lei é dura mais é lei]. Vamos dar o exemplo, mostrando que, se pregamos a união, a paz e a concórdia, não é para nos transformarmos em promotores de desordens. As sociedades organizadas não são necessárias à existência do Espiritismo; não há entre elas nenhuma solidariedade material que possa ser quebrada por sua supressão. O que os Espíritos aí ensinam, igualmente ensinam numa conversa particular entre duas pessoas, porque o Espiritismo tem o incrível privilégio de ter o seu foco de ensino por toda parte. Seu sinal de ligação é o amor de Deus e do próximo e, para o pôr em prática, não há necessidade de reuniões oficiais, pois ele tanto se estende sobre os amigos quanto sobre os inimigos. Qualquer um pode dizer o mesmo; e mais de uma vez a autoridade não tem encontrado resistência onde esperava encontrar a maior submissão? Se os espíritas fossem pessoas tão turbulentas e tão pervertidas quanto pretendeis, por que os funcionários encarregados da manutenção da ordem têm menos trabalho nos centros onde eles constituem maioria? Um funcionário chegou a dizer que se todos os seus administrados fossem espíritas, sua repartição podia ser fechada. Por que há menos penas disciplinares entre os militares espíritas?

E, depois, não pensais que atualmente há espíritas em toda parte, de alto a baixo na escala social; que há reuniões e médiuns até em casa daqueles que invocais contra nós. Vede, pois, que o vosso meio é insuficiente; é preciso buscar outro. – Temos a condenação fulminante do púlpito. – Está bem; e vós a usais largamente. Mas não vedes que por toda parte onde lançam raios o número de espíritas aumenta? – Temos a censura da Igreja e a excomunhão. – É melhor; mas ainda uma vez bateis no vazio. Repetimos: o Espiritismo nem se dirige a vós nem aos que estão convosco; não os vai buscar e dizer-lhes: deixai a vossa religião e segui-me; sereis danados se não o fizerdes. Não; ele é mais tolerante que isso e deixa a cada um a liberdade de consciência. Como já dissemos, ele se dirige à massa inumerável dos incrédulos, aos que duvidam e aos indiferentes; estes não estão convosco e vossas censuras não os podem atingir. Eles vinham a vós, mas os repelíeis. Quanta inabilidade! Se alguns dos vossos os seguem, é que vossos argumentos não são bastante fortes para os reter e não é com rigor que o conseguireis. O Espiritismo agrada porque não se impõe e é aceito pela vontade e o livre-exame. Nisto ele é de nossa época. Agrada pela doçura, pelas consolações que prodigaliza nas adversidades, pela fé inabalável que dá no futuro, na bondade e na misericórdia de Deus. Além disso, ele se apoia em fatos patentes, materiais, irrecusáveis, que desafiam toda negação. Eis o segredo de sua tão rápida propagação. Que lhe opondes? Sempre a danação eterna, expediente ruim para os tempos que correm; depois a deturpação de suas doutrinas: vós o acusais de pregar o aborto,, o adultério e todos os crimes. A quem pensais impor isto? Não aos espíritas, certamente. Aos que não o conhecem? Mas nesse número muitos querem saber o que é essa abominável doutrina; leem, e vendo que ela diz exatamente o contrário do que lhe atribuem, vos deixam para a seguir. E isto sem que ele os vá procurar.

A posição, bem o sei, é embaraçosa: Se falamos contra o Espiritismo – dizeis – recrutamos-lhe partidários; se nos calamos, ele marcha sozinho. Que fazer então? Outrora se dizia: Deixai passar a justiça do rei; agora é preciso dizer: Deixemos passar a justiça de Deus.

(Continua no próximo número)


7. ALGUMAS REFUTAÇÕES.

(2° artigo. – Ver o número de maio.) [Revista de junho de 1863.]

Toda ideia nova encontra forçosamente oposição, por parte daqueles cujas opiniões e interesses contraria. Julgam alguns que a Igreja está comprometida – pensamos que não, mas nossa opinião não faz lei – razão por que nos atacam em seu nome com um furor ao qual só faltam as grandes execuções da Idade Média. Os sermões, as instruções pastorais lançam raios em todas as direções; as brochuras e artigos de jornais chovem em grande quantidade, na maioria com um cinismo de expressão pouquíssimo evangélico. Em vários deles é um raio que toca o frenesi. Por que, então, essa exibição de força e tanta cólera? Porque dizemos que Deus perdoa à criatura que se arrepende e que as penas só seriam eternas para aquelas que jamais se arrependessem, e porque proclamamos a bondade e a clemência de Deus, somos heréticos votados à execração e a sociedade está perdida. Apontam-nos como perturbadores; desafiam a autoridade a nos perseguir em nome da moral e da ordem pública; alegam que aquela não cumpre o seu dever deixando-nos tranquilos!

Aqui se apresenta um problema interessante. Pergunta-se por que essa violência contra o Espiritismo, e não contra tantas outras teorias filosóficas ou religiosas muito menos ortodoxas? A Igreja fulminou o materialismo, que tudo nega, como o faz contra o Espiritismo, que se limita à interpretação de alguns dogmas? Esses dogmas e muitos outros não foram tantas vezes negados, discutidos, polemizados numa porção de escritos que ela deixa passar despercebidos? Os princípios fundamentais da fé – Deus, a alma e a imortalidade – não foram publicamente atacados sem que ela se perturbasse? Jamais o saint-simonismo, o fourierismo, a própria Igreja do padre Chatel levantaram tantas cóleras, sem falar de outras seitas menos conhecidas, tais como os fusionistas, cujo chefe acaba de morrer, que têm um culto, seu jornal e não admitem a divindade do Cristo; os católicos apostólicos, que não reconhecem o papa, que têm seus padres e bispos casados, suas igrejas em Paris e nas províncias, onde batizam, casam e promovem cerimônias fúnebres. Por que, então, o Espiritismo, que não tem culto nem igreja, e cujos padres só existem na imaginação, levanta tanta animosidade? Coisa bizarra! o partido religioso e o partido materialista, que são a negação um do outro, dão-se as mãos para nos pulverizar, segundo dizem. Realmente o espírito humano apresenta caprichos singulares quando enceguecido pela paixão, e a história do Espiritismo terá coisas divertidas para registrar.


8. – A reposta está por inteiro nesta conclusão da brochura do Rev. Pe. Nampon: “Em geral nada é mais abjeto, mais degradante, mais vazio de fundo e de atrativo na forma que tais publicações, cujo sucesso fabuloso é um dos sintomas mais alarmantes de nossa época. Destruí-os, pois, e nada perdereis com isso. Com o dinheiro gasto em Lyon para essas inépcias, facilmente se teriam criado mais leitos nos hospitais de alienados, superlotados desde a invasão do Espiritismo. E que faremos dessas brochuras perniciosas? Faremos o mesmo que fez o grande apóstolo em Éfeso; e assim agindo conservaremos em nosso meio o império da razão e da fé, preservando as vítimas dessas lamentáveis ilusões de uma porção de decepções na vida presente e das chamas da eternidade infeliz.”


9. – Esse sucesso fabuloso é que confunde os nossos adversários. Eles não podem compreender a inutilidade de tudo quanto fazem para travar essa ideia que passa por cima de suas ciladas, endireita-se sob os seus golpes e prossegue sua marcha ascendente sem se preocupar com as pedras que lhe atiram. Isto é um fato indubitável e constatado muitas vezes pelos adversários desta ou daquela categoria, em suas prédicas e publicações. Todos deploram o progresso incrível dessa epidemia, que ataca até os homens de ciência, os médicos e os magistrados. Na verdade é preciso voltar do Texas para dizer que o Espiritismo está morto e ninguém mais fala dele. (Vide a Revista de fevereiro de 1863.)

Que fazemos para triunfar? Vamos pregar o Espiritismo nas praças? Convocamos o público às nossas reuniões? Temos missionários de propaganda? Contamos com o apoio da imprensa? Temos, enfim, todos os meios de ação, ostensivos e secretos, que possuís e usais com tanta prodigalidade? Não; para recrutar partidários temos mil vezes menos trabalho do que vós para os desviar. Contentamo-nos em dizer: “Lede; e se isto vos convém, voltai a nós.” Fazemos mais, dizendo: “Lede os prós e os contras e comparai.” Respondemos aos vossos ataques sem fel sem animosidade, sem acrimônia, porque não temos cólera. Longe de nos lamentarmos da vossa, nós a aplaudimos, porque ela serve à nossa causa. Eis entre milhares uma prova da força persuasiva dos argumentos dos nossos adversários. Um senhor que acaba de escrever à Sociedade de Paris, pedindo para dela fazer parte, assim começa sua carta: “A leitura de: A questão do Sobrenatural, os mortos e os vivos, do Padre Matignon; A questão dos Espíritos, do Sr. de Mirville; O Espírito batedor, do Dr. Bronson, e, finalmente, diversos artigos contra o Espiritismo, não fizeram senão que eu aderisse completamente à doutrina exposta em O Livro dos Espíritos e me deram o mais vivo desejo de fazer parte da Sociedade Espírita de Paris, para poder continuar o estudo do Espiritismo de maneira mais seguida e mais proveitosa.”


10. – Por vezes a paixão cega, a ponto de fazer cometer singulares inconsequências. Na passagem citada acima, o Rev. Pe. Nampon diz que “nada é mais vazio de atrativo que essas publicações, cujo sucesso fabuloso, etc.” Não percebe ele que essas duas proposições se destroem reciprocamente; uma coisa sem atrativo não poderia ter nenhum sucesso, porquanto só o terá com a condição de ter atrativo; com mais forte razão quando o sucesso é fabuloso.

Acrescenta que com o dinheiro gasto em Lyon com essas inépcias, facilmente teriam sido criados mais leitos nos hospícios de alienados daquela cidade, superlotados desde a invasão do Espiritismo. É verdade que seriam precisos trinta a quarenta mil leitos, só em Lyon, já que todos os espíritas são loucos. Por outro lado, visto que são inépcias, nenhum valor possuem. Por que, então, lhes dar as honras de tantos sermões, pastorais e brochuras? Quanto à questão do emprego de dinheiro, sabemos que em Lyon muita gente, por certo animada de maus sentimentos, havia dito que os dois milhões fornecidos por esta cidade aos cofres de São Pedro teriam dado mais pão a muitos operários infelizes durante o inverno, ao passo que a leitura dos livros espíritas lhes deu coragem e resignação para suportar sua miséria sem revolta.

O Pe. Nampon não é feliz em suas citações. Numa passagem de O Livro dos Espíritos ele nos faz dizer: “Há tanta distância entre a alma do animal e a alma do homem, quanto entre a alma do homem e a alma de Deus.” (Nº 597). Nós dissemos: …quanto entre a alma do homem e Deus, o que é muito diferente. A alma de Deus implica uma espécie de assimilação entre Deus e as criaturas corpóreas. Compreende-se a omissão de uma palavra por inadvertência ou erro tipográfico; mas não se acrescenta uma palavra sem intenção. Por que essa adição, que desnatura o sentido do pensamento, senão para dar um tom materialista aos olhos dos que se contentarem em ler a citação sem a verificar no original? Um livro que apareceu pouco antes de O Livro dos Espíritos, e que contém toda uma teoria cosmogônica, faz de Deus um ser muito diversamente material, porque composto de todos os globos do Universo, moléculas do ser universal, que tem um estômago, come e digere, e do qual os homens são o mau produto de sua digestão; contudo, nem uma palavra foi dita para o combater: todas as cóleras se concentraram sobre O Livro dos Espíritos. Será, talvez, porque em seis anos chegou à décima edição e espalhou-se em todos os países do mundo?

Não se contentam em criticar: truncam e desnaturam as máximas para aumentar o horror que deve inspirar essa abominável doutrina e nos pôr em contradição conosco mesmo. É assim que diz o Pe. Nampon, citando uma frase da introdução de O Livro dos Espíritos, página 30III: “Certas pessoas, dizei vós mesmos, entregando-se a esses estudos perderam a razão.” Damos assim a impressão de reconhecer que o Espiritismo conduz à loucura, ao passo que, lendo todo o parágrafo XV, a acusação cai precisamente sobre aqueles que a lançam. É assim que, tomando um trecho da frase de um autor, poderíamos levá-lo à forca. Os mais sagrados autores não escapariam a essa dissecção. É com tal sistema que certos críticos esperam mudar as tendências do Espiritismo e fazer crer que ele preconiza o aborto, o adultério, o suicídio, quando demonstra peremptoriamente a sua criminalidade e as funestas consequências para o futuro.


11. – O Pe. Nampon chega mesmo a apropriar-se de citações feitas com o objetivo de refutar certas ideias. “O autor – diz ele – às vezes chama Jesus-Cristo Homem-Deus; mas alhures (O Livro dos Médiuns, página 368), num diálogo com um médium que, tomando o nome de Jesus lhe dizia: “Eu não sou Deus, mas sou seu filho”, logo replica: “Então sois Jesus? Sim – acrescenta o Pe. Nampon – Jesus é chamado Filho de Deus, mas na acepção ariana, não sendo, portanto, consubstancial com o Pai.”

Antes de mais, não era o médium que se fazia passar por Jesus, mas um Espírito, o que é muito diferente. A citação é feita precisamente para mostrar a velhacaria de certos Espíritos e prevenir os médiuns contra seus subterfúgios. Pretendeis que o Espiritismo negue a divindade do Cristo ou vistes tal proposição formulada em princípio? É, dizeis vós, a consequência de toda a doutrina. Ah! se entrarmos no terreno das interpretações, poderemos ir mais longe do que quereis. Se disséssemos, por exemplo, que o Cristo não tinha chegado à perfeição, que teve necessidade das provas da vida corpórea para progredir; que a sua paixão lhe tinha sido necessária para subir em glória, teríeis razão, porque dele não faríamos sequer um Espírito puro, enviado à Terra com missão divina, mas um simples mortal, a quem o sofrimento era necessário, a fim de progredir. Onde encontrais que tenhamos dito isto? Pois bem! aquilo que nunca dissemos, que jamais diremos, sois vós que dizeis.

Ultimamente temos visto, no parlatório de uma casa religiosa de Paris, a seguinte inscrição, impressa em letras grandes e afixada para a instrução de todos: “Foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória, e não foi senão depois de ter bebido a longos sorvos na torrente da tribulação e do sofrimento que foi elevado ao mais alto dos céus.” (Salmo 110, v. 7.) É o comentário deste versículo, cujo texto é: “Ele beberá no caminho a água da torrente e é por ali que erguerá a cabeça (De torrente in via bibet: propterea exultabit caput [Psalmorum])”. Se, pois, “foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória; se não pôde ser elevado ao mais alto dos céus senão pelas tribulações e pelo sofrimento”, é que antes nem estava na glória nem no mais alto dos céus; por conseguinte não era Deus. Seus sofrimentos, pois, não aproveitavam somente à Humanidade, desde que necessários ao seu próprio adiantamento. Dizer que o Cristo tinha necessidade de sofrer para elevar-se é dizer que não era perfeito antes de sua vinda. Não conhecemos protesto mais enérgico contra a sua divindade. Se tal é o sentido do versículo do salmo que se canta nas vésperas todos os domingos cantam a não divindade do Cristo.

Com o sistema de interpretação vai-se muito longe, dizíamos nós. Se quiséssemos citar a de alguns concílios sobre este outro versículo: “O Senhor está a vossa direita; ele destruirá os reis no dia de sua cólera”, seria fácil provar que daí foi tirada a justificação do regicídio.


12. – Diz ainda o Pe. Nampon: “A vida muda inteiramente de aspecto (com o Espiritismo). A imortalidade da alma reduz-se a uma permanência material, sem identidade moral, sem consciência do passado.”

É um erro. O Espiritismo jamais disse que a alma ficasse sem consciência do passado. Ela perde momentaneamente a sua lembrança durante a vida corpórea, mas “quando o Espírito volta à vida anterior (a vida espírita), diante dos olhos se lhe estende toda a sua vida pretérita. Vê as faltas que cometeu e que deram causa ao seu sofrer, assim como de que modo as teria evitado. Reconhece justa a situação em que se acha e busca então uma existência capaz de reparar a que acaba de transcorrer.” (O Livro dos Espíritos, nº 393.) Uma vez que há lembrança do passado, consciência do ser, há então, identidade moral; desde que a vida espiritual é a vida normal do Espírito, que as existências corpóreas não passam de pontos na vida espírita, a imortalidade não se reduz a uma permanência material. Como se vê, o Espiritismo diz exatamente o contrário. Desnaturando-o assim, o Pe. Nampon não tem a desculpa da ignorância, porque suas citações provam que leu, mas se equivoca ao truncar citações e ao fazê-lo dizer o contrário do que diz.


13. – O Espiritismo é acusado por alguns de estribar-se no mais grosseiro materialismo, porque admite o perispírito, que tem propriedades materiais. É ainda uma falsa consequência, tirada de um princípio referido incompletamente. O Espiritismo jamais confundiu a alma com o perispírito, que não passa de um envoltório, como o corpo é um outro. Tivesse ela dez envoltórios e isto nada tiraria à sua essência imaterial. Já o mesmo não se dá com a doutrina adotada pelo concílio de Viena, no Dauphiné, na sua segunda sessão, em 3 de abril de 1312. Segundo essa doutrina, “a autoridade da Igreja ordena crer que a alma não passa da forma substancial do corpo; que não há ideias inatas e declara heréticos os que negarem a materialidade da alma.” Raul Fornier, professor de Direito ensina positivamente a mesma coisa em seus discursos acadêmicos, impressos em Paris em 1619, com aprovação e elogios de vários doutores em teologia.

É provável que o concílio, baseando-se nos fatos de numerosas manifestações espíritas visíveis e tangíveis, referidas nas Escrituras, manifestações que não deixam de ser materiais, pois ferem os sentidos, tenha confundido a alma com o envoltório fluídico ou perispírito, cuja distinção o Espiritismo demonstra. Sua doutrina é, pois, menos materialista que a do concílio.


14. – “Mas abordemos sem hesitar o homem da França, que é o mais adiantado nesses estudos. Para constatar a identidade do Espírito que fala, é preciso, diz o Sr. Allan Kardec, estudar sua linguagem. Pois bem! Que seja! Conhecemos por seus escritos autênticos o pensamento certo e, conseguintemente, a linguagem de São João, São Paulo, Santo Agostinho, Fénelon, etc. Como, pois, em vossos livros, ousais atribuir a esses grandes gênios pensamentos e sentimentos inteiramente contrários aos que ficaram para sempre consignados em suas obras?”

Assim, admitis que essas personagens em nada se enganaram; que tudo quanto escreveram é a expressão da verdade; que se hoje voltassem corporalmente deveriam ensinar tudo o que ensinaram outrora; que, vindo como Espírito, não devem renegar nenhuma de suas palavras. Entretanto, Santo Agostinho olhava como heresia a crença na redondeza da Terra e nos antípodas. Sustentava a existência dos íncubos e súcubos e acreditava na procriação pelo comércio dos homens com os Espíritos. Credes que a tal respeito e como Espírito não possa pensar de modo diverso do que pensava como homem e que hoje professasse essas doutrinas? Se suas ideias houveram de modificar-se em certos pontos, podem perfeitamente ter sido mudadas em outros. Se se enganou, logo ele, gênio incontestavelmente superior, por que vós mesmos não vos enganaríeis? Para respeitar a ortodoxia será preciso negar a Agostinho o direito, melhor dizendo, o mérito de retratar-se de seus erros?


15. – “Atribuís a São Luís esta sentença ridícula, sobretudo em sua boca, contra a eternidade das penas: Supor Espíritos incuráveis é negar a lei do progresso.” (O Livro dos Espíritos, nº 1007.)

Não é assim que ela é formulada. À pergunta: Haverá Espíritos que nunca se arrependam? respondeu São Luís: “Há os de arrependimento muito tardio; porém, pretender-se que nunca se melhorarão fora negar a lei do progresso e dizer que a criança não pode tornar-se homem.” A primeira forma poderia parecer ridícula. Por que, então, sempre truncar e desnaturar as frases? A quem pensam enganar? aos que apenas lerem esses comentários inexatos? Mas seu número é muito pequeno, perto dos que querem conhecer o fundo das coisas sobre as quais vós mesmos chamais a atenção. Ora, a comparação não pode senão favorecer o Espiritismo.


Nota. – Para a edificação de todos, recomendamos a leitura da brochura intitulada: Do Espiritismo, pelo Rev. Pe. Nampon [Adrien Nampon], da Companhia de Jesus, Livraria Girard et Josserand, Lyon, place Bellecour, nº 30; Paris, rue Cassette, nº 5. Rogamos também ler em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns os textos completos, citados resumidamente ou deturpados na brochura acima referida. [Vide ainda do Pe. Nampon Catholic doctrine as defined by the Council of Trent - Google Books.]









Maio

1. – De vários pontos nos assinalam novas prédicas contra o Espiritismo, todas no mesmo espírito daquelas de que temos falado; e como não passam, quase sempre, de variantes do mesmo pensamento, em termos mais ou menos escolhidos, julgamos supérfluo fazer-lhes a análise. Limitar-nos-emos a destacar certas passagens, acompanhando-as de algumas reflexões.


“Meus irmãos, é um cristão que fala a cristãos e, nessa qualidade, temos o direito de nos admirarmos, vendo o Espiritismo crescer entre nós. O que é o Espiritismo, eu vos pergunto, senão um mosaico de horrores que só a loucura pode justificar?”

A isto nada temos a dizer, senão que todas as prédicas feitas nesta cidade foram incapazes de deter o crescimento do Espiritismo, como bem constata o orador; portanto, os argumentos que lhe opõem têm menos autoridade que os seus; e, se as prédicas emanam de Deus e o Espiritismo procede do diabo, é que este é mais poderoso que Deus. Nada mais brutal que um fato. Ora, a propagação do Espiritismo, em consequência mesma das prédicas, é um fato notório, e por certo as pessoas julgam que os argumentos por ele dados são mais convincentes que os dos adversários. É uma trama de horrores. Seja. Mas haveis de concordar que se esses Espíritos viessem abraçar todas as vossas ideias, em vez de demônios, deles faríeis santos; e, longe de condenar as evocações, vós as encorajaríeis.


2. – “Nosso século não respeita mais nada; nem mesmo a cinza dos túmulos é poupada, pois insensatos ousam chamar os mortos para conversar com eles. Infelizmente é assim. Eis até onde chegou esse pretenso século das luzes: conversar com as almas do outro mundo.”

Conversar com os mortos não é privilégio deste século, já que a história de todos os povos comprova que isto tem ocorrido em todos os tempos. A única diferença é que hoje isto é feito em toda parte sem os acessórios supersticiosos com que outrora cercavam as evocações, e com um sentimento mais religioso e mais respeitoso. De duas uma: ou a coisa é possível, ou não é. Se não é, é uma crença ilusória; tal como acreditar na fatalidade da sexta-feira, na influência do sal derramado. Não vemos, pois, que haja tantos horrores e que sé falte com o respeito conversando com seres que já não pertencem a este mundo. Se os mortos vêm conversar conosco, só pode ser com a permissão de Deus, a menos que se pretenda que venham sem essa permissão, ou contra a sua vontade, o que implicaria que Deus não se importa com isso ou que os evocadores são mais poderosos que Deus. Mas notai as contradições: de um lado dizeis que só o diabo se comunica e, de outro, que se perturbam as cinzas dos mortos, chamando-os. Se é o diabo, não são os mortos; portanto, não são perturbados nem se lhes falta com o respeito. Se são os mortos, então não é o diabo. Seria preciso, ao menos, que vos pusésseis de acordo sobre este ponto capital. Admitindo que sejam os mortos, reconhecemos que haveria profanação em chamá-los levianamente, por razões fúteis, sobretudo para fazer disto profissão lucrativa. Condenamos todas essas coisas e não nos responsabilizamos pelos que se afastam dos princípios do Espiritismo sério. Não assumais responsabilidade pelos falsos devotos, que da religião só têm a máscara, que pregam o que não praticam ou que especulam com as coisas santas. Certamente evocações feitas em condições burlescas atribuídas a um eloquente orador que citamos mais adiante, seriam um sacrilégio; mas, graças a Deus, não nos envolvemos com isso e não cremos que a do Sr. Viennois, igualmente referida adiante [v. Sr. Philibert 5iennois], esteja neste caso.


3. – “Eu mesmo testemunhei estes fatos e ouvi pregar a moral, a caridade; é verdade. Mas sobre que se apoiam esta moral e esta caridade? Ah! sobre nada, porquanto não se pode chamar moral uma doutrina que nega as penas eternas.”

Se essa moral leva a fazer o bem sem o temor das penas eternas, é mais meritória ainda. Outrora se julgava impossível manter a disciplina na escola sem o medo da palmatória. Eram melhores os estudantes? Não; hoje ela não é mais usada e eles não são piores: ao contrário. Logo, o regime atual é preferível.

Julga-se a qualidade de um meio pelos seus efeitos. Aliás, a quem se dirige essa moral? Exatamente aos que não acreditam nas penas eternas, e a quem damos um freio, que aceitam, ao passo que não lhos dais, uma vez que não aceitam o vosso. Impedimos acreditem na danação absoluta aqueles a quem isto convém? Absolutamente. Ainda uma vez, não nos dirigimos aos que têm fé e aos quais esta basta, mas aos que não a têm ou duvidam. Preferiríeis que eles ficassem na incredulidade absoluta? Seria pouco caridoso. Temeis que vos tomem ovelhas? É que não tendes muita confiança no poder de vossos meios para retê-las; é que receais que elas sejam atraídas pela erva tenra do perdão e da misericórdia divina. Acreditais, então, que as que vacilam na incerteza preferirão as labaredas do inferno? Por outro lado, quem deve estar mais convencido das penas eternas, senão os que são alimentados no seio da Igreja? Ora, dizei por que essa perspectiva não deteve todos os escândalos, todas as atrocidades, todas as prevaricações contra as leis divinas e humanas, que pululam na História e se reproduzem incessantemente em nossos dias? São crimes ou não? Se, pois, os que fazem profissão desta crença não são tolhidos em suas ações, como querer que o sejam os que não creem? Não; ao homem esclarecido de nossos dias é preciso outro freio: aquele que sua razão admite. Ora, a crença nas penas eternas, talvez útil em outras épocas, está superada; extingue-se dia a dia e, por mais que fizerdes, não dareis vida a um cadáver nem fareis reviver os usos, costumes e ideias da Idade Média. Se a Igreja Católica julga sua segurança comprometida pelo desaparecimento dessa crença, devemos lamentá-la por repousar sobre base tão frágil, porque, se algo a atormenta, este é o dogma das penas eternas.


4. – “Assim, apelo à moralidade de todas as almas honestas; apelo aos magistrados, pois eles são responsáveis por todo o mal que semelhante heresia atrai sobre nossas cabeças.”

Não sabíamos que na França os magistrados fossem encarregados de instaurar processos contra as heresias, pois se entre eles há católicos, também há protestantes e judeus; assim, os próprios heréticos se incumbiriam de sua perseguição e condenação. E os há entre os funcionários da mais alta categoria.


5. – “Sim, os espíritas – e não receio declarar aqui abertamente – não apenas são passíveis da polícia correcional e da Corte Imperial, mas, também – prestai bem atenção – do tribunal do júri, porque são falsários; assinam comunicações em nome de pessoas que certamente jamais as teriam assinado em vida, pessoas que hoje eles tanto fazem falar.”

Os espíritas estão realmente muito contentes, porque Confúcio, Sócrates, Santo Agostinho, São Vicente de Paulo, Fénelon e outros não lhes podem mover processos por crimes de falsificação de escrita particular. Bem que eu sonho com isso: eles teriam uma tábua de salvação precisamente nos tribunais do júri a cuja jurisdição estão sujeitos, pois ali os jurados se pronunciam segundo a sua consciência. Ora, entre eles há também protestantes e judeus; há, até – coisa abominável! – filósofos, incrédulos, horríveis livres-pensadores que, à vista de nossas detestáveis leis modernas, se acham em toda parte. Assim, se nos acusam de fazer Santo Agostinho dizer algo de heterodoxo, sempre encontraremos jurados que nos absolvam. Ó perversidade do século! dizer que em nossos dias Voltaire, Diderot, Lutero, Calvino, João Huss, Ário teriam sido jurados por direito de nascimento, que poderiam ter sido juízes perfeitos, ministro da justiça e mesmo dos cultos! Vede-os, esses celerados infernais, a se pronunciarem sobre uma questão de heresia! Porque, para condenar a assinatura de Fénelon, posta abaixo de uma suposta comunicação herética, é preciso julgar a questão da ortodoxia; e quem será competente no júri?


6. – “Entretanto, seria tão fácil interditar semelhante impiedade! O que se precisaria fazer? quase nada; mesmo sem lhes fazer a honra da capa do comissário, podeis colocar um sargento à entrada de cada grupo para dizer: não entreis. Pinto o mal e descrevo o remédio, apenas isto, pois eu os dispenso da Inquisição.”

Muito obrigado, mas não há grande mérito em oferecer aquilo que não se tem. Infelizmente, para vós, não podeis contar com a Inquisição, sem o que seria duvidoso que nos liberásseis dela. O que não dizeis aos magistrados, visando à interdição da entrada dos templos judeus e protestantes, onde se pregam publicamente dogmas que não são os vossos? Quanto aos espíritas, não têm templos nem sacerdotes, mas – o que para vós é a mesma coisa – grupos, à entrada dos quais basta pôr um sargento para que tudo fique dito. Realmente é muito simples. Mas esqueceis que os Espíritos ignoram qualquer proibição e entram em toda parte sem pedir permissão, mesmo em vossa casa, pois os tendes ao vosso lado, escutando-vos, sem que o suspeiteis e, ademais, vos falando ao ouvido. Trazei à memória as vossas lembranças e vereis que tivestes mais de uma manifestação, mesmo sem a haverdes buscado.

Pareceis ignorar uma coisa que é bom saibais. Os grupos espíritas não são absolutamente necessários; são simples reuniões onde se sentem felizes por encontrar-se pessoas que pensam do mesmo modo. E a prova disto é que hoje, na França, há mais de 600.000 espíritas, 99% dos quais não fazem parte de nenhum grupo e neles jamais puseram os pés; que eles não existem numa porção de cidades; que nem os grupos nem as sociedades abrem suas portas ao público para pregar suas doutrinas aos transeuntes; que o Espiritismo se prega por si mesmo e pela força das coisas, porque responde a uma necessidade da época; que as ideias espíritas estão no ar e são aspiradas por todos os poros da inteligência; que o contágio está no exemplo dos que são felizes com essas crenças e que são encontrados por toda parte, na sociedade, sem que se precise procurá-los nos grupos. Assim, não são os grupos que fazem a propaganda, pois não apelam ao primeiro que apareça; ela é feita pouco a pouco, de indivíduo a indivíduo. Se, portanto, admitíssemos a interdição de todas as reuniões, os espíritas ficariam livres para se reunirem em família, como já ocorre em milhares de lugares, sem que o Espiritismo nada sofra com isso; muito ao contrário, pois temos sempre condenado as grandes assembleias, que são mais prejudiciais que úteis; além disso, a intimidade é reconhecida como a condição mais favorável às manifestações. Interditaríeis as reuniões familiares? Colocaríeis um sargento à porta de um salão para vigiar o que se passa à lareira? Isto não se faz na Espanha, nem em Roma, onde há mais espíritas e médiuns do que pensais. Só faltava isso para aumentar ainda mais a importância do Espiritismo.

Admitamos agora a interdição legal dos grupos. Sabeis o que fariam esses espíritas que acusais de semear a desordem? Eles diriam: Respeitamos a lei; dura lex, sed lex [A lei é dura mais é lei]. Vamos dar o exemplo, mostrando que, se pregamos a união, a paz e a concórdia, não é para nos transformarmos em promotores de desordens. As sociedades organizadas não são necessárias à existência do Espiritismo; não há entre elas nenhuma solidariedade material que possa ser quebrada por sua supressão. O que os Espíritos aí ensinam, igualmente ensinam numa conversa particular entre duas pessoas, porque o Espiritismo tem o incrível privilégio de ter o seu foco de ensino por toda parte. Seu sinal de ligação é o amor de Deus e do próximo e, para o pôr em prática, não há necessidade de reuniões oficiais, pois ele tanto se estende sobre os amigos quanto sobre os inimigos. Qualquer um pode dizer o mesmo; e mais de uma vez a autoridade não tem encontrado resistência onde esperava encontrar a maior submissão? Se os espíritas fossem pessoas tão turbulentas e tão pervertidas quanto pretendeis, por que os funcionários encarregados da manutenção da ordem têm menos trabalho nos centros onde eles constituem maioria? Um funcionário chegou a dizer que se todos os seus administrados fossem espíritas, sua repartição podia ser fechada. Por que há menos penas disciplinares entre os militares espíritas?

E, depois, não pensais que atualmente há espíritas em toda parte, de alto a baixo na escala social; que há reuniões e médiuns até em casa daqueles que invocais contra nós. Vede, pois, que o vosso meio é insuficiente; é preciso buscar outro. – Temos a condenação fulminante do púlpito. – Está bem; e vós a usais largamente. Mas não vedes que por toda parte onde lançam raios o número de espíritas aumenta? – Temos a censura da Igreja e a excomunhão. – É melhor; mas ainda uma vez bateis no vazio. Repetimos: o Espiritismo nem se dirige a vós nem aos que estão convosco; não os vai buscar e dizer-lhes: deixai a vossa religião e segui-me; sereis danados se não o fizerdes. Não; ele é mais tolerante que isso e deixa a cada um a liberdade de consciência. Como já dissemos, ele se dirige à massa inumerável dos incrédulos, aos que duvidam e aos indiferentes; estes não estão convosco e vossas censuras não os podem atingir. Eles vinham a vós, mas os repelíeis. Quanta inabilidade! Se alguns dos vossos os seguem, é que vossos argumentos não são bastante fortes para os reter e não é com rigor que o conseguireis. O Espiritismo agrada porque não se impõe e é aceito pela vontade e o livre-exame. Nisto ele é de nossa época. Agrada pela doçura, pelas consolações que prodigaliza nas adversidades, pela fé inabalável que dá no futuro, na bondade e na misericórdia de Deus. Além disso, ele se apoia em fatos patentes, materiais, irrecusáveis, que desafiam toda negação. Eis o segredo de sua tão rápida propagação. Que lhe opondes? Sempre a danação eterna, expediente ruim para os tempos que correm; depois a deturpação de suas doutrinas: vós o acusais de pregar o aborto,, o adultério e todos os crimes. A quem pensais impor isto? Não aos espíritas, certamente. Aos que não o conhecem? Mas nesse número muitos querem saber o que é essa abominável doutrina; leem, e vendo que ela diz exatamente o contrário do que lhe atribuem, vos deixam para a seguir. E isto sem que ele os vá procurar.

A posição, bem o sei, é embaraçosa: Se falamos contra o Espiritismo – dizeis – recrutamos-lhe partidários; se nos calamos, ele marcha sozinho. Que fazer então? Outrora se dizia: Deixai passar a justiça do rei; agora é preciso dizer: Deixemos passar a justiça de Deus.

(Continua no próximo número)


7. ALGUMAS REFUTAÇÕES.

(2° artigo. – Ver o número de maio.) [Revista de junho de 1863.]

Toda ideia nova encontra forçosamente oposição, por parte daqueles cujas opiniões e interesses contraria. Julgam alguns que a Igreja está comprometida – pensamos que não, mas nossa opinião não faz lei – razão por que nos atacam em seu nome com um furor ao qual só faltam as grandes execuções da Idade Média. Os sermões, as instruções pastorais lançam raios em todas as direções; as brochuras e artigos de jornais chovem em grande quantidade, na maioria com um cinismo de expressão pouquíssimo evangélico. Em vários deles é um raio que toca o frenesi. Por que, então, essa exibição de força e tanta cólera? Porque dizemos que Deus perdoa à criatura que se arrepende e que as penas só seriam eternas para aquelas que jamais se arrependessem, e porque proclamamos a bondade e a clemência de Deus, somos heréticos votados à execração e a sociedade está perdida. Apontam-nos como perturbadores; desafiam a autoridade a nos perseguir em nome da moral e da ordem pública; alegam que aquela não cumpre o seu dever deixando-nos tranquilos!

Aqui se apresenta um problema interessante. Pergunta-se por que essa violência contra o Espiritismo, e não contra tantas outras teorias filosóficas ou religiosas muito menos ortodoxas? A Igreja fulminou o materialismo, que tudo nega, como o faz contra o Espiritismo, que se limita à interpretação de alguns dogmas? Esses dogmas e muitos outros não foram tantas vezes negados, discutidos, polemizados numa porção de escritos que ela deixa passar despercebidos? Os princípios fundamentais da fé – Deus, a alma e a imortalidade – não foram publicamente atacados sem que ela se perturbasse? Jamais o saint-simonismo, o fourierismo, a própria Igreja do padre Chatel levantaram tantas cóleras, sem falar de outras seitas menos conhecidas, tais como os fusionistas, cujo chefe acaba de morrer, que têm um culto, seu jornal e não admitem a divindade do Cristo; os católicos apostólicos, que não reconhecem o papa, que têm seus padres e bispos casados, suas igrejas em Paris e nas províncias, onde batizam, casam e promovem cerimônias fúnebres. Por que, então, o Espiritismo, que não tem culto nem igreja, e cujos padres só existem na imaginação, levanta tanta animosidade? Coisa bizarra! o partido religioso e o partido materialista, que são a negação um do outro, dão-se as mãos para nos pulverizar, segundo dizem. Realmente o espírito humano apresenta caprichos singulares quando enceguecido pela paixão, e a história do Espiritismo terá coisas divertidas para registrar.


8. – A reposta está por inteiro nesta conclusão da brochura do Rev. Pe. Nampon: “Em geral nada é mais abjeto, mais degradante, mais vazio de fundo e de atrativo na forma que tais publicações, cujo sucesso fabuloso é um dos sintomas mais alarmantes de nossa época. Destruí-os, pois, e nada perdereis com isso. Com o dinheiro gasto em Lyon para essas inépcias, facilmente se teriam criado mais leitos nos hospitais de alienados, superlotados desde a invasão do Espiritismo. E que faremos dessas brochuras perniciosas? Faremos o mesmo que fez o grande apóstolo em Éfeso; e assim agindo conservaremos em nosso meio o império da razão e da fé, preservando as vítimas dessas lamentáveis ilusões de uma porção de decepções na vida presente e das chamas da eternidade infeliz.”


9. – Esse sucesso fabuloso é que confunde os nossos adversários. Eles não podem compreender a inutilidade de tudo quanto fazem para travar essa ideia que passa por cima de suas ciladas, endireita-se sob os seus golpes e prossegue sua marcha ascendente sem se preocupar com as pedras que lhe atiram. Isto é um fato indubitável e constatado muitas vezes pelos adversários desta ou daquela categoria, em suas prédicas e publicações. Todos deploram o progresso incrível dessa epidemia, que ataca até os homens de ciência, os médicos e os magistrados. Na verdade é preciso voltar do Texas para dizer que o Espiritismo está morto e ninguém mais fala dele. (Vide a Revista de fevereiro de 1863.)

Que fazemos para triunfar? Vamos pregar o Espiritismo nas praças? Convocamos o público às nossas reuniões? Temos missionários de propaganda? Contamos com o apoio da imprensa? Temos, enfim, todos os meios de ação, ostensivos e secretos, que possuís e usais com tanta prodigalidade? Não; para recrutar partidários temos mil vezes menos trabalho do que vós para os desviar. Contentamo-nos em dizer: “Lede; e se isto vos convém, voltai a nós.” Fazemos mais, dizendo: “Lede os prós e os contras e comparai.” Respondemos aos vossos ataques sem fel sem animosidade, sem acrimônia, porque não temos cólera. Longe de nos lamentarmos da vossa, nós a aplaudimos, porque ela serve à nossa causa. Eis entre milhares uma prova da força persuasiva dos argumentos dos nossos adversários. Um senhor que acaba de escrever à Sociedade de Paris, pedindo para dela fazer parte, assim começa sua carta: “A leitura de: A questão do Sobrenatural, os mortos e os vivos, do Padre Matignon; A questão dos Espíritos, do Sr. de Mirville; O Espírito batedor, do Dr. Bronson, e, finalmente, diversos artigos contra o Espiritismo, não fizeram senão que eu aderisse completamente à doutrina exposta em O Livro dos Espíritos e me deram o mais vivo desejo de fazer parte da Sociedade Espírita de Paris, para poder continuar o estudo do Espiritismo de maneira mais seguida e mais proveitosa.”


10. – Por vezes a paixão cega, a ponto de fazer cometer singulares inconsequências. Na passagem citada acima, o Rev. Pe. Nampon diz que “nada é mais vazio de atrativo que essas publicações, cujo sucesso fabuloso, etc.” Não percebe ele que essas duas proposições se destroem reciprocamente; uma coisa sem atrativo não poderia ter nenhum sucesso, porquanto só o terá com a condição de ter atrativo; com mais forte razão quando o sucesso é fabuloso.

Acrescenta que com o dinheiro gasto em Lyon com essas inépcias, facilmente teriam sido criados mais leitos nos hospícios de alienados daquela cidade, superlotados desde a invasão do Espiritismo. É verdade que seriam precisos trinta a quarenta mil leitos, só em Lyon, já que todos os espíritas são loucos. Por outro lado, visto que são inépcias, nenhum valor possuem. Por que, então, lhes dar as honras de tantos sermões, pastorais e brochuras? Quanto à questão do emprego de dinheiro, sabemos que em Lyon muita gente, por certo animada de maus sentimentos, havia dito que os dois milhões fornecidos por esta cidade aos cofres de São Pedro teriam dado mais pão a muitos operários infelizes durante o inverno, ao passo que a leitura dos livros espíritas lhes deu coragem e resignação para suportar sua miséria sem revolta.

O Pe. Nampon não é feliz em suas citações. Numa passagem de O Livro dos Espíritos ele nos faz dizer: “Há tanta distância entre a alma do animal e a alma do homem, quanto entre a alma do homem e a alma de Deus.” (Nº 597). Nós dissemos: …quanto entre a alma do homem e Deus, o que é muito diferente. A alma de Deus implica uma espécie de assimilação entre Deus e as criaturas corpóreas. Compreende-se a omissão de uma palavra por inadvertência ou erro tipográfico; mas não se acrescenta uma palavra sem intenção. Por que essa adição, que desnatura o sentido do pensamento, senão para dar um tom materialista aos olhos dos que se contentarem em ler a citação sem a verificar no original? Um livro que apareceu pouco antes de O Livro dos Espíritos, e que contém toda uma teoria cosmogônica, faz de Deus um ser muito diversamente material, porque composto de todos os globos do Universo, moléculas do ser universal, que tem um estômago, come e digere, e do qual os homens são o mau produto de sua digestão; contudo, nem uma palavra foi dita para o combater: todas as cóleras se concentraram sobre O Livro dos Espíritos. Será, talvez, porque em seis anos chegou à décima edição e espalhou-se em todos os países do mundo?

Não se contentam em criticar: truncam e desnaturam as máximas para aumentar o horror que deve inspirar essa abominável doutrina e nos pôr em contradição conosco mesmo. É assim que diz o Pe. Nampon, citando uma frase da introdução de O Livro dos Espíritos, página 30III: “Certas pessoas, dizei vós mesmos, entregando-se a esses estudos perderam a razão.” Damos assim a impressão de reconhecer que o Espiritismo conduz à loucura, ao passo que, lendo todo o parágrafo XV, a acusação cai precisamente sobre aqueles que a lançam. É assim que, tomando um trecho da frase de um autor, poderíamos levá-lo à forca. Os mais sagrados autores não escapariam a essa dissecção. É com tal sistema que certos críticos esperam mudar as tendências do Espiritismo e fazer crer que ele preconiza o aborto, o adultério, o suicídio, quando demonstra peremptoriamente a sua criminalidade e as funestas consequências para o futuro.


11. – O Pe. Nampon chega mesmo a apropriar-se de citações feitas com o objetivo de refutar certas ideias. “O autor – diz ele – às vezes chama Jesus-Cristo Homem-Deus; mas alhures (O Livro dos Médiuns, página 368), num diálogo com um médium que, tomando o nome de Jesus lhe dizia: “Eu não sou Deus, mas sou seu filho”, logo replica: “Então sois Jesus? Sim – acrescenta o Pe. Nampon – Jesus é chamado Filho de Deus, mas na acepção ariana, não sendo, portanto, consubstancial com o Pai.”

Antes de mais, não era o médium que se fazia passar por Jesus, mas um Espírito, o que é muito diferente. A citação é feita precisamente para mostrar a velhacaria de certos Espíritos e prevenir os médiuns contra seus subterfúgios. Pretendeis que o Espiritismo negue a divindade do Cristo ou vistes tal proposição formulada em princípio? É, dizeis vós, a consequência de toda a doutrina. Ah! se entrarmos no terreno das interpretações, poderemos ir mais longe do que quereis. Se disséssemos, por exemplo, que o Cristo não tinha chegado à perfeição, que teve necessidade das provas da vida corpórea para progredir; que a sua paixão lhe tinha sido necessária para subir em glória, teríeis razão, porque dele não faríamos sequer um Espírito puro, enviado à Terra com missão divina, mas um simples mortal, a quem o sofrimento era necessário, a fim de progredir. Onde encontrais que tenhamos dito isto? Pois bem! aquilo que nunca dissemos, que jamais diremos, sois vós que dizeis.

Ultimamente temos visto, no parlatório de uma casa religiosa de Paris, a seguinte inscrição, impressa em letras grandes e afixada para a instrução de todos: “Foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória, e não foi senão depois de ter bebido a longos sorvos na torrente da tribulação e do sofrimento que foi elevado ao mais alto dos céus.” (Salmo 110, v. 7.) É o comentário deste versículo, cujo texto é: “Ele beberá no caminho a água da torrente e é por ali que erguerá a cabeça (De torrente in via bibet: propterea exultabit caput [Psalmorum])”. Se, pois, “foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória; se não pôde ser elevado ao mais alto dos céus senão pelas tribulações e pelo sofrimento”, é que antes nem estava na glória nem no mais alto dos céus; por conseguinte não era Deus. Seus sofrimentos, pois, não aproveitavam somente à Humanidade, desde que necessários ao seu próprio adiantamento. Dizer que o Cristo tinha necessidade de sofrer para elevar-se é dizer que não era perfeito antes de sua vinda. Não conhecemos protesto mais enérgico contra a sua divindade. Se tal é o sentido do versículo do salmo que se canta nas vésperas todos os domingos cantam a não divindade do Cristo.

Com o sistema de interpretação vai-se muito longe, dizíamos nós. Se quiséssemos citar a de alguns concílios sobre este outro versículo: “O Senhor está a vossa direita; ele destruirá os reis no dia de sua cólera”, seria fácil provar que daí foi tirada a justificação do regicídio.


12. – Diz ainda o Pe. Nampon: “A vida muda inteiramente de aspecto (com o Espiritismo). A imortalidade da alma reduz-se a uma permanência material, sem identidade moral, sem consciência do passado.”

É um erro. O Espiritismo jamais disse que a alma ficasse sem consciência do passado. Ela perde momentaneamente a sua lembrança durante a vida corpórea, mas “quando o Espírito volta à vida anterior (a vida espírita), diante dos olhos se lhe estende toda a sua vida pretérita. Vê as faltas que cometeu e que deram causa ao seu sofrer, assim como de que modo as teria evitado. Reconhece justa a situação em que se acha e busca então uma existência capaz de reparar a que acaba de transcorrer.” (O Livro dos Espíritos, nº 393.) Uma vez que há lembrança do passado, consciência do ser, há então, identidade moral; desde que a vida espiritual é a vida normal do Espírito, que as existências corpóreas não passam de pontos na vida espírita, a imortalidade não se reduz a uma permanência material. Como se vê, o Espiritismo diz exatamente o contrário. Desnaturando-o assim, o Pe. Nampon não tem a desculpa da ignorância, porque suas citações provam que leu, mas se equivoca ao truncar citações e ao fazê-lo dizer o contrário do que diz.


13. – O Espiritismo é acusado por alguns de estribar-se no mais grosseiro materialismo, porque admite o perispírito, que tem propriedades materiais. É ainda uma falsa consequência, tirada de um princípio referido incompletamente. O Espiritismo jamais confundiu a alma com o perispírito, que não passa de um envoltório, como o corpo é um outro. Tivesse ela dez envoltórios e isto nada tiraria à sua essência imaterial. Já o mesmo não se dá com a doutrina adotada pelo concílio de Viena, no Dauphiné, na sua segunda sessão, em 3 de abril de 1312. Segundo essa doutrina, “a autoridade da Igreja ordena crer que a alma não passa da forma substancial do corpo; que não há ideias inatas e declara heréticos os que negarem a materialidade da alma.” Raul Fornier, professor de Direito ensina positivamente a mesma coisa em seus discursos acadêmicos, impressos em Paris em 1619, com aprovação e elogios de vários doutores em teologia.

É provável que o concílio, baseando-se nos fatos de numerosas manifestações espíritas visíveis e tangíveis, referidas nas Escrituras, manifestações que não deixam de ser materiais, pois ferem os sentidos, tenha confundido a alma com o envoltório fluídico ou perispírito, cuja distinção o Espiritismo demonstra. Sua doutrina é, pois, menos materialista que a do concílio.


14. – “Mas abordemos sem hesitar o homem da França, que é o mais adiantado nesses estudos. Para constatar a identidade do Espírito que fala, é preciso, diz o Sr. Allan Kardec, estudar sua linguagem. Pois bem! Que seja! Conhecemos por seus escritos autênticos o pensamento certo e, conseguintemente, a linguagem de São João, São Paulo, Santo Agostinho, Fénelon, etc. Como, pois, em vossos livros, ousais atribuir a esses grandes gênios pensamentos e sentimentos inteiramente contrários aos que ficaram para sempre consignados em suas obras?”

Assim, admitis que essas personagens em nada se enganaram; que tudo quanto escreveram é a expressão da verdade; que se hoje voltassem corporalmente deveriam ensinar tudo o que ensinaram outrora; que, vindo como Espírito, não devem renegar nenhuma de suas palavras. Entretanto, Santo Agostinho olhava como heresia a crença na redondeza da Terra e nos antípodas. Sustentava a existência dos íncubos e súcubos e acreditava na procriação pelo comércio dos homens com os Espíritos. Credes que a tal respeito e como Espírito não possa pensar de modo diverso do que pensava como homem e que hoje professasse essas doutrinas? Se suas ideias houveram de modificar-se em certos pontos, podem perfeitamente ter sido mudadas em outros. Se se enganou, logo ele, gênio incontestavelmente superior, por que vós mesmos não vos enganaríeis? Para respeitar a ortodoxia será preciso negar a Agostinho o direito, melhor dizendo, o mérito de retratar-se de seus erros?


15. – “Atribuís a São Luís esta sentença ridícula, sobretudo em sua boca, contra a eternidade das penas: Supor Espíritos incuráveis é negar a lei do progresso.” (O Livro dos Espíritos, nº 1007.)

Não é assim que ela é formulada. À pergunta: Haverá Espíritos que nunca se arrependam? respondeu São Luís: “Há os de arrependimento muito tardio; porém, pretender-se que nunca se melhorarão fora negar a lei do progresso e dizer que a criança não pode tornar-se homem.” A primeira forma poderia parecer ridícula. Por que, então, sempre truncar e desnaturar as frases? A quem pensam enganar? aos que apenas lerem esses comentários inexatos? Mas seu número é muito pequeno, perto dos que querem conhecer o fundo das coisas sobre as quais vós mesmos chamais a atenção. Ora, a comparação não pode senão favorecer o Espiritismo.


Nota. – Para a edificação de todos, recomendamos a leitura da brochura intitulada: Do Espiritismo, pelo Rev. Pe. Nampon [Adrien Nampon], da Companhia de Jesus, Livraria Girard et Josserand, Lyon, place Bellecour, nº 30; Paris, rue Cassette, nº 5. Rogamos também ler em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns os textos completos, citados resumidamente ou deturpados na brochura acima referida. [Vide ainda do Pe. Nampon Catholic doctrine as defined by the Council of Trent - Google Books.]









Maio

1. – De vários pontos nos assinalam novas prédicas contra o Espiritismo, todas no mesmo espírito daquelas de que temos falado; e como não passam, quase sempre, de variantes do mesmo pensamento, em termos mais ou menos escolhidos, julgamos supérfluo fazer-lhes a análise. Limitar-nos-emos a destacar certas passagens, acompanhando-as de algumas reflexões.


“Meus irmãos, é um cristão que fala a cristãos e, nessa qualidade, temos o direito de nos admirarmos, vendo o Espiritismo crescer entre nós. O que é o Espiritismo, eu vos pergunto, senão um mosaico de horrores que só a loucura pode justificar?”

A isto nada temos a dizer, senão que todas as prédicas feitas nesta cidade foram incapazes de deter o crescimento do Espiritismo, como bem constata o orador; portanto, os argumentos que lhe opõem têm menos autoridade que os seus; e, se as prédicas emanam de Deus e o Espiritismo procede do diabo, é que este é mais poderoso que Deus. Nada mais brutal que um fato. Ora, a propagação do Espiritismo, em consequência mesma das prédicas, é um fato notório, e por certo as pessoas julgam que os argumentos por ele dados são mais convincentes que os dos adversários. É uma trama de horrores. Seja. Mas haveis de concordar que se esses Espíritos viessem abraçar todas as vossas ideias, em vez de demônios, deles faríeis santos; e, longe de condenar as evocações, vós as encorajaríeis.


2. – “Nosso século não respeita mais nada; nem mesmo a cinza dos túmulos é poupada, pois insensatos ousam chamar os mortos para conversar com eles. Infelizmente é assim. Eis até onde chegou esse pretenso século das luzes: conversar com as almas do outro mundo.”

Conversar com os mortos não é privilégio deste século, já que a história de todos os povos comprova que isto tem ocorrido em todos os tempos. A única diferença é que hoje isto é feito em toda parte sem os acessórios supersticiosos com que outrora cercavam as evocações, e com um sentimento mais religioso e mais respeitoso. De duas uma: ou a coisa é possível, ou não é. Se não é, é uma crença ilusória; tal como acreditar na fatalidade da sexta-feira, na influência do sal derramado. Não vemos, pois, que haja tantos horrores e que sé falte com o respeito conversando com seres que já não pertencem a este mundo. Se os mortos vêm conversar conosco, só pode ser com a permissão de Deus, a menos que se pretenda que venham sem essa permissão, ou contra a sua vontade, o que implicaria que Deus não se importa com isso ou que os evocadores são mais poderosos que Deus. Mas notai as contradições: de um lado dizeis que só o diabo se comunica e, de outro, que se perturbam as cinzas dos mortos, chamando-os. Se é o diabo, não são os mortos; portanto, não são perturbados nem se lhes falta com o respeito. Se são os mortos, então não é o diabo. Seria preciso, ao menos, que vos pusésseis de acordo sobre este ponto capital. Admitindo que sejam os mortos, reconhecemos que haveria profanação em chamá-los levianamente, por razões fúteis, sobretudo para fazer disto profissão lucrativa. Condenamos todas essas coisas e não nos responsabilizamos pelos que se afastam dos princípios do Espiritismo sério. Não assumais responsabilidade pelos falsos devotos, que da religião só têm a máscara, que pregam o que não praticam ou que especulam com as coisas santas. Certamente evocações feitas em condições burlescas atribuídas a um eloquente orador que citamos mais adiante, seriam um sacrilégio; mas, graças a Deus, não nos envolvemos com isso e não cremos que a do Sr. Viennois, igualmente referida adiante [v. Sr. Philibert 5iennois], esteja neste caso.


3. – “Eu mesmo testemunhei estes fatos e ouvi pregar a moral, a caridade; é verdade. Mas sobre que se apoiam esta moral e esta caridade? Ah! sobre nada, porquanto não se pode chamar moral uma doutrina que nega as penas eternas.”

Se essa moral leva a fazer o bem sem o temor das penas eternas, é mais meritória ainda. Outrora se julgava impossível manter a disciplina na escola sem o medo da palmatória. Eram melhores os estudantes? Não; hoje ela não é mais usada e eles não são piores: ao contrário. Logo, o regime atual é preferível.

Julga-se a qualidade de um meio pelos seus efeitos. Aliás, a quem se dirige essa moral? Exatamente aos que não acreditam nas penas eternas, e a quem damos um freio, que aceitam, ao passo que não lhos dais, uma vez que não aceitam o vosso. Impedimos acreditem na danação absoluta aqueles a quem isto convém? Absolutamente. Ainda uma vez, não nos dirigimos aos que têm fé e aos quais esta basta, mas aos que não a têm ou duvidam. Preferiríeis que eles ficassem na incredulidade absoluta? Seria pouco caridoso. Temeis que vos tomem ovelhas? É que não tendes muita confiança no poder de vossos meios para retê-las; é que receais que elas sejam atraídas pela erva tenra do perdão e da misericórdia divina. Acreditais, então, que as que vacilam na incerteza preferirão as labaredas do inferno? Por outro lado, quem deve estar mais convencido das penas eternas, senão os que são alimentados no seio da Igreja? Ora, dizei por que essa perspectiva não deteve todos os escândalos, todas as atrocidades, todas as prevaricações contra as leis divinas e humanas, que pululam na História e se reproduzem incessantemente em nossos dias? São crimes ou não? Se, pois, os que fazem profissão desta crença não são tolhidos em suas ações, como querer que o sejam os que não creem? Não; ao homem esclarecido de nossos dias é preciso outro freio: aquele que sua razão admite. Ora, a crença nas penas eternas, talvez útil em outras épocas, está superada; extingue-se dia a dia e, por mais que fizerdes, não dareis vida a um cadáver nem fareis reviver os usos, costumes e ideias da Idade Média. Se a Igreja Católica julga sua segurança comprometida pelo desaparecimento dessa crença, devemos lamentá-la por repousar sobre base tão frágil, porque, se algo a atormenta, este é o dogma das penas eternas.


4. – “Assim, apelo à moralidade de todas as almas honestas; apelo aos magistrados, pois eles são responsáveis por todo o mal que semelhante heresia atrai sobre nossas cabeças.”

Não sabíamos que na França os magistrados fossem encarregados de instaurar processos contra as heresias, pois se entre eles há católicos, também há protestantes e judeus; assim, os próprios heréticos se incumbiriam de sua perseguição e condenação. E os há entre os funcionários da mais alta categoria.


5. – “Sim, os espíritas – e não receio declarar aqui abertamente – não apenas são passíveis da polícia correcional e da Corte Imperial, mas, também – prestai bem atenção – do tribunal do júri, porque são falsários; assinam comunicações em nome de pessoas que certamente jamais as teriam assinado em vida, pessoas que hoje eles tanto fazem falar.”

Os espíritas estão realmente muito contentes, porque Confúcio, Sócrates, Santo Agostinho, São Vicente de Paulo, Fénelon e outros não lhes podem mover processos por crimes de falsificação de escrita particular. Bem que eu sonho com isso: eles teriam uma tábua de salvação precisamente nos tribunais do júri a cuja jurisdição estão sujeitos, pois ali os jurados se pronunciam segundo a sua consciência. Ora, entre eles há também protestantes e judeus; há, até – coisa abominável! – filósofos, incrédulos, horríveis livres-pensadores que, à vista de nossas detestáveis leis modernas, se acham em toda parte. Assim, se nos acusam de fazer Santo Agostinho dizer algo de heterodoxo, sempre encontraremos jurados que nos absolvam. Ó perversidade do século! dizer que em nossos dias Voltaire, Diderot, Lutero, Calvino, João Huss, Ário teriam sido jurados por direito de nascimento, que poderiam ter sido juízes perfeitos, ministro da justiça e mesmo dos cultos! Vede-os, esses celerados infernais, a se pronunciarem sobre uma questão de heresia! Porque, para condenar a assinatura de Fénelon, posta abaixo de uma suposta comunicação herética, é preciso julgar a questão da ortodoxia; e quem será competente no júri?


6. – “Entretanto, seria tão fácil interditar semelhante impiedade! O que se precisaria fazer? quase nada; mesmo sem lhes fazer a honra da capa do comissário, podeis colocar um sargento à entrada de cada grupo para dizer: não entreis. Pinto o mal e descrevo o remédio, apenas isto, pois eu os dispenso da Inquisição.”

Muito obrigado, mas não há grande mérito em oferecer aquilo que não se tem. Infelizmente, para vós, não podeis contar com a Inquisição, sem o que seria duvidoso que nos liberásseis dela. O que não dizeis aos magistrados, visando à interdição da entrada dos templos judeus e protestantes, onde se pregam publicamente dogmas que não são os vossos? Quanto aos espíritas, não têm templos nem sacerdotes, mas – o que para vós é a mesma coisa – grupos, à entrada dos quais basta pôr um sargento para que tudo fique dito. Realmente é muito simples. Mas esqueceis que os Espíritos ignoram qualquer proibição e entram em toda parte sem pedir permissão, mesmo em vossa casa, pois os tendes ao vosso lado, escutando-vos, sem que o suspeiteis e, ademais, vos falando ao ouvido. Trazei à memória as vossas lembranças e vereis que tivestes mais de uma manifestação, mesmo sem a haverdes buscado.

Pareceis ignorar uma coisa que é bom saibais. Os grupos espíritas não são absolutamente necessários; são simples reuniões onde se sentem felizes por encontrar-se pessoas que pensam do mesmo modo. E a prova disto é que hoje, na França, há mais de 600.000 espíritas, 99% dos quais não fazem parte de nenhum grupo e neles jamais puseram os pés; que eles não existem numa porção de cidades; que nem os grupos nem as sociedades abrem suas portas ao público para pregar suas doutrinas aos transeuntes; que o Espiritismo se prega por si mesmo e pela força das coisas, porque responde a uma necessidade da época; que as ideias espíritas estão no ar e são aspiradas por todos os poros da inteligência; que o contágio está no exemplo dos que são felizes com essas crenças e que são encontrados por toda parte, na sociedade, sem que se precise procurá-los nos grupos. Assim, não são os grupos que fazem a propaganda, pois não apelam ao primeiro que apareça; ela é feita pouco a pouco, de indivíduo a indivíduo. Se, portanto, admitíssemos a interdição de todas as reuniões, os espíritas ficariam livres para se reunirem em família, como já ocorre em milhares de lugares, sem que o Espiritismo nada sofra com isso; muito ao contrário, pois temos sempre condenado as grandes assembleias, que são mais prejudiciais que úteis; além disso, a intimidade é reconhecida como a condição mais favorável às manifestações. Interditaríeis as reuniões familiares? Colocaríeis um sargento à porta de um salão para vigiar o que se passa à lareira? Isto não se faz na Espanha, nem em Roma, onde há mais espíritas e médiuns do que pensais. Só faltava isso para aumentar ainda mais a importância do Espiritismo.

Admitamos agora a interdição legal dos grupos. Sabeis o que fariam esses espíritas que acusais de semear a desordem? Eles diriam: Respeitamos a lei; dura lex, sed lex [A lei é dura mais é lei]. Vamos dar o exemplo, mostrando que, se pregamos a união, a paz e a concórdia, não é para nos transformarmos em promotores de desordens. As sociedades organizadas não são necessárias à existência do Espiritismo; não há entre elas nenhuma solidariedade material que possa ser quebrada por sua supressão. O que os Espíritos aí ensinam, igualmente ensinam numa conversa particular entre duas pessoas, porque o Espiritismo tem o incrível privilégio de ter o seu foco de ensino por toda parte. Seu sinal de ligação é o amor de Deus e do próximo e, para o pôr em prática, não há necessidade de reuniões oficiais, pois ele tanto se estende sobre os amigos quanto sobre os inimigos. Qualquer um pode dizer o mesmo; e mais de uma vez a autoridade não tem encontrado resistência onde esperava encontrar a maior submissão? Se os espíritas fossem pessoas tão turbulentas e tão pervertidas quanto pretendeis, por que os funcionários encarregados da manutenção da ordem têm menos trabalho nos centros onde eles constituem maioria? Um funcionário chegou a dizer que se todos os seus administrados fossem espíritas, sua repartição podia ser fechada. Por que há menos penas disciplinares entre os militares espíritas?

E, depois, não pensais que atualmente há espíritas em toda parte, de alto a baixo na escala social; que há reuniões e médiuns até em casa daqueles que invocais contra nós. Vede, pois, que o vosso meio é insuficiente; é preciso buscar outro. – Temos a condenação fulminante do púlpito. – Está bem; e vós a usais largamente. Mas não vedes que por toda parte onde lançam raios o número de espíritas aumenta? – Temos a censura da Igreja e a excomunhão. – É melhor; mas ainda uma vez bateis no vazio. Repetimos: o Espiritismo nem se dirige a vós nem aos que estão convosco; não os vai buscar e dizer-lhes: deixai a vossa religião e segui-me; sereis danados se não o fizerdes. Não; ele é mais tolerante que isso e deixa a cada um a liberdade de consciência. Como já dissemos, ele se dirige à massa inumerável dos incrédulos, aos que duvidam e aos indiferentes; estes não estão convosco e vossas censuras não os podem atingir. Eles vinham a vós, mas os repelíeis. Quanta inabilidade! Se alguns dos vossos os seguem, é que vossos argumentos não são bastante fortes para os reter e não é com rigor que o conseguireis. O Espiritismo agrada porque não se impõe e é aceito pela vontade e o livre-exame. Nisto ele é de nossa época. Agrada pela doçura, pelas consolações que prodigaliza nas adversidades, pela fé inabalável que dá no futuro, na bondade e na misericórdia de Deus. Além disso, ele se apoia em fatos patentes, materiais, irrecusáveis, que desafiam toda negação. Eis o segredo de sua tão rápida propagação. Que lhe opondes? Sempre a danação eterna, expediente ruim para os tempos que correm; depois a deturpação de suas doutrinas: vós o acusais de pregar o aborto,, o adultério e todos os crimes. A quem pensais impor isto? Não aos espíritas, certamente. Aos que não o conhecem? Mas nesse número muitos querem saber o que é essa abominável doutrina; leem, e vendo que ela diz exatamente o contrário do que lhe atribuem, vos deixam para a seguir. E isto sem que ele os vá procurar.

A posição, bem o sei, é embaraçosa: Se falamos contra o Espiritismo – dizeis – recrutamos-lhe partidários; se nos calamos, ele marcha sozinho. Que fazer então? Outrora se dizia: Deixai passar a justiça do rei; agora é preciso dizer: Deixemos passar a justiça de Deus.

(Continua no próximo número)


7. ALGUMAS REFUTAÇÕES.

(2° artigo. – Ver o número de maio.) [Revista de junho de 1863.]

Toda ideia nova encontra forçosamente oposição, por parte daqueles cujas opiniões e interesses contraria. Julgam alguns que a Igreja está comprometida – pensamos que não, mas nossa opinião não faz lei – razão por que nos atacam em seu nome com um furor ao qual só faltam as grandes execuções da Idade Média. Os sermões, as instruções pastorais lançam raios em todas as direções; as brochuras e artigos de jornais chovem em grande quantidade, na maioria com um cinismo de expressão pouquíssimo evangélico. Em vários deles é um raio que toca o frenesi. Por que, então, essa exibição de força e tanta cólera? Porque dizemos que Deus perdoa à criatura que se arrepende e que as penas só seriam eternas para aquelas que jamais se arrependessem, e porque proclamamos a bondade e a clemência de Deus, somos heréticos votados à execração e a sociedade está perdida. Apontam-nos como perturbadores; desafiam a autoridade a nos perseguir em nome da moral e da ordem pública; alegam que aquela não cumpre o seu dever deixando-nos tranquilos!

Aqui se apresenta um problema interessante. Pergunta-se por que essa violência contra o Espiritismo, e não contra tantas outras teorias filosóficas ou religiosas muito menos ortodoxas? A Igreja fulminou o materialismo, que tudo nega, como o faz contra o Espiritismo, que se limita à interpretação de alguns dogmas? Esses dogmas e muitos outros não foram tantas vezes negados, discutidos, polemizados numa porção de escritos que ela deixa passar despercebidos? Os princípios fundamentais da fé – Deus, a alma e a imortalidade – não foram publicamente atacados sem que ela se perturbasse? Jamais o saint-simonismo, o fourierismo, a própria Igreja do padre Chatel levantaram tantas cóleras, sem falar de outras seitas menos conhecidas, tais como os fusionistas, cujo chefe acaba de morrer, que têm um culto, seu jornal e não admitem a divindade do Cristo; os católicos apostólicos, que não reconhecem o papa, que têm seus padres e bispos casados, suas igrejas em Paris e nas províncias, onde batizam, casam e promovem cerimônias fúnebres. Por que, então, o Espiritismo, que não tem culto nem igreja, e cujos padres só existem na imaginação, levanta tanta animosidade? Coisa bizarra! o partido religioso e o partido materialista, que são a negação um do outro, dão-se as mãos para nos pulverizar, segundo dizem. Realmente o espírito humano apresenta caprichos singulares quando enceguecido pela paixão, e a história do Espiritismo terá coisas divertidas para registrar.


8. – A reposta está por inteiro nesta conclusão da brochura do Rev. Pe. Nampon: “Em geral nada é mais abjeto, mais degradante, mais vazio de fundo e de atrativo na forma que tais publicações, cujo sucesso fabuloso é um dos sintomas mais alarmantes de nossa época. Destruí-os, pois, e nada perdereis com isso. Com o dinheiro gasto em Lyon para essas inépcias, facilmente se teriam criado mais leitos nos hospitais de alienados, superlotados desde a invasão do Espiritismo. E que faremos dessas brochuras perniciosas? Faremos o mesmo que fez o grande apóstolo em Éfeso; e assim agindo conservaremos em nosso meio o império da razão e da fé, preservando as vítimas dessas lamentáveis ilusões de uma porção de decepções na vida presente e das chamas da eternidade infeliz.”


9. – Esse sucesso fabuloso é que confunde os nossos adversários. Eles não podem compreender a inutilidade de tudo quanto fazem para travar essa ideia que passa por cima de suas ciladas, endireita-se sob os seus golpes e prossegue sua marcha ascendente sem se preocupar com as pedras que lhe atiram. Isto é um fato indubitável e constatado muitas vezes pelos adversários desta ou daquela categoria, em suas prédicas e publicações. Todos deploram o progresso incrível dessa epidemia, que ataca até os homens de ciência, os médicos e os magistrados. Na verdade é preciso voltar do Texas para dizer que o Espiritismo está morto e ninguém mais fala dele. (Vide a Revista de fevereiro de 1863.)

Que fazemos para triunfar? Vamos pregar o Espiritismo nas praças? Convocamos o público às nossas reuniões? Temos missionários de propaganda? Contamos com o apoio da imprensa? Temos, enfim, todos os meios de ação, ostensivos e secretos, que possuís e usais com tanta prodigalidade? Não; para recrutar partidários temos mil vezes menos trabalho do que vós para os desviar. Contentamo-nos em dizer: “Lede; e se isto vos convém, voltai a nós.” Fazemos mais, dizendo: “Lede os prós e os contras e comparai.” Respondemos aos vossos ataques sem fel sem animosidade, sem acrimônia, porque não temos cólera. Longe de nos lamentarmos da vossa, nós a aplaudimos, porque ela serve à nossa causa. Eis entre milhares uma prova da força persuasiva dos argumentos dos nossos adversários. Um senhor que acaba de escrever à Sociedade de Paris, pedindo para dela fazer parte, assim começa sua carta: “A leitura de: A questão do Sobrenatural, os mortos e os vivos, do Padre Matignon; A questão dos Espíritos, do Sr. de Mirville; O Espírito batedor, do Dr. Bronson, e, finalmente, diversos artigos contra o Espiritismo, não fizeram senão que eu aderisse completamente à doutrina exposta em O Livro dos Espíritos e me deram o mais vivo desejo de fazer parte da Sociedade Espírita de Paris, para poder continuar o estudo do Espiritismo de maneira mais seguida e mais proveitosa.”


10. – Por vezes a paixão cega, a ponto de fazer cometer singulares inconsequências. Na passagem citada acima, o Rev. Pe. Nampon diz que “nada é mais vazio de atrativo que essas publicações, cujo sucesso fabuloso, etc.” Não percebe ele que essas duas proposições se destroem reciprocamente; uma coisa sem atrativo não poderia ter nenhum sucesso, porquanto só o terá com a condição de ter atrativo; com mais forte razão quando o sucesso é fabuloso.

Acrescenta que com o dinheiro gasto em Lyon com essas inépcias, facilmente teriam sido criados mais leitos nos hospícios de alienados daquela cidade, superlotados desde a invasão do Espiritismo. É verdade que seriam precisos trinta a quarenta mil leitos, só em Lyon, já que todos os espíritas são loucos. Por outro lado, visto que são inépcias, nenhum valor possuem. Por que, então, lhes dar as honras de tantos sermões, pastorais e brochuras? Quanto à questão do emprego de dinheiro, sabemos que em Lyon muita gente, por certo animada de maus sentimentos, havia dito que os dois milhões fornecidos por esta cidade aos cofres de São Pedro teriam dado mais pão a muitos operários infelizes durante o inverno, ao passo que a leitura dos livros espíritas lhes deu coragem e resignação para suportar sua miséria sem revolta.

O Pe. Nampon não é feliz em suas citações. Numa passagem de O Livro dos Espíritos ele nos faz dizer: “Há tanta distância entre a alma do animal e a alma do homem, quanto entre a alma do homem e a alma de Deus.” (Nº 597). Nós dissemos: …quanto entre a alma do homem e Deus, o que é muito diferente. A alma de Deus implica uma espécie de assimilação entre Deus e as criaturas corpóreas. Compreende-se a omissão de uma palavra por inadvertência ou erro tipográfico; mas não se acrescenta uma palavra sem intenção. Por que essa adição, que desnatura o sentido do pensamento, senão para dar um tom materialista aos olhos dos que se contentarem em ler a citação sem a verificar no original? Um livro que apareceu pouco antes de O Livro dos Espíritos, e que contém toda uma teoria cosmogônica, faz de Deus um ser muito diversamente material, porque composto de todos os globos do Universo, moléculas do ser universal, que tem um estômago, come e digere, e do qual os homens são o mau produto de sua digestão; contudo, nem uma palavra foi dita para o combater: todas as cóleras se concentraram sobre O Livro dos Espíritos. Será, talvez, porque em seis anos chegou à décima edição e espalhou-se em todos os países do mundo?

Não se contentam em criticar: truncam e desnaturam as máximas para aumentar o horror que deve inspirar essa abominável doutrina e nos pôr em contradição conosco mesmo. É assim que diz o Pe. Nampon, citando uma frase da introdução de O Livro dos Espíritos, página 30III: “Certas pessoas, dizei vós mesmos, entregando-se a esses estudos perderam a razão.” Damos assim a impressão de reconhecer que o Espiritismo conduz à loucura, ao passo que, lendo todo o parágrafo XV, a acusação cai precisamente sobre aqueles que a lançam. É assim que, tomando um trecho da frase de um autor, poderíamos levá-lo à forca. Os mais sagrados autores não escapariam a essa dissecção. É com tal sistema que certos críticos esperam mudar as tendências do Espiritismo e fazer crer que ele preconiza o aborto, o adultério, o suicídio, quando demonstra peremptoriamente a sua criminalidade e as funestas consequências para o futuro.


11. – O Pe. Nampon chega mesmo a apropriar-se de citações feitas com o objetivo de refutar certas ideias. “O autor – diz ele – às vezes chama Jesus-Cristo Homem-Deus; mas alhures (O Livro dos Médiuns, página 368), num diálogo com um médium que, tomando o nome de Jesus lhe dizia: “Eu não sou Deus, mas sou seu filho”, logo replica: “Então sois Jesus? Sim – acrescenta o Pe. Nampon – Jesus é chamado Filho de Deus, mas na acepção ariana, não sendo, portanto, consubstancial com o Pai.”

Antes de mais, não era o médium que se fazia passar por Jesus, mas um Espírito, o que é muito diferente. A citação é feita precisamente para mostrar a velhacaria de certos Espíritos e prevenir os médiuns contra seus subterfúgios. Pretendeis que o Espiritismo negue a divindade do Cristo ou vistes tal proposição formulada em princípio? É, dizeis vós, a consequência de toda a doutrina. Ah! se entrarmos no terreno das interpretações, poderemos ir mais longe do que quereis. Se disséssemos, por exemplo, que o Cristo não tinha chegado à perfeição, que teve necessidade das provas da vida corpórea para progredir; que a sua paixão lhe tinha sido necessária para subir em glória, teríeis razão, porque dele não faríamos sequer um Espírito puro, enviado à Terra com missão divina, mas um simples mortal, a quem o sofrimento era necessário, a fim de progredir. Onde encontrais que tenhamos dito isto? Pois bem! aquilo que nunca dissemos, que jamais diremos, sois vós que dizeis.

Ultimamente temos visto, no parlatório de uma casa religiosa de Paris, a seguinte inscrição, impressa em letras grandes e afixada para a instrução de todos: “Foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória, e não foi senão depois de ter bebido a longos sorvos na torrente da tribulação e do sofrimento que foi elevado ao mais alto dos céus.” (Salmo 110, v. 7.) É o comentário deste versículo, cujo texto é: “Ele beberá no caminho a água da torrente e é por ali que erguerá a cabeça (De torrente in via bibet: propterea exultabit caput [Psalmorum])”. Se, pois, “foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória; se não pôde ser elevado ao mais alto dos céus senão pelas tribulações e pelo sofrimento”, é que antes nem estava na glória nem no mais alto dos céus; por conseguinte não era Deus. Seus sofrimentos, pois, não aproveitavam somente à Humanidade, desde que necessários ao seu próprio adiantamento. Dizer que o Cristo tinha necessidade de sofrer para elevar-se é dizer que não era perfeito antes de sua vinda. Não conhecemos protesto mais enérgico contra a sua divindade. Se tal é o sentido do versículo do salmo que se canta nas vésperas todos os domingos cantam a não divindade do Cristo.

Com o sistema de interpretação vai-se muito longe, dizíamos nós. Se quiséssemos citar a de alguns concílios sobre este outro versículo: “O Senhor está a vossa direita; ele destruirá os reis no dia de sua cólera”, seria fácil provar que daí foi tirada a justificação do regicídio.


12. – Diz ainda o Pe. Nampon: “A vida muda inteiramente de aspecto (com o Espiritismo). A imortalidade da alma reduz-se a uma permanência material, sem identidade moral, sem consciência do passado.”

É um erro. O Espiritismo jamais disse que a alma ficasse sem consciência do passado. Ela perde momentaneamente a sua lembrança durante a vida corpórea, mas “quando o Espírito volta à vida anterior (a vida espírita), diante dos olhos se lhe estende toda a sua vida pretérita. Vê as faltas que cometeu e que deram causa ao seu sofrer, assim como de que modo as teria evitado. Reconhece justa a situação em que se acha e busca então uma existência capaz de reparar a que acaba de transcorrer.” (O Livro dos Espíritos, nº 393.) Uma vez que há lembrança do passado, consciência do ser, há então, identidade moral; desde que a vida espiritual é a vida normal do Espírito, que as existências corpóreas não passam de pontos na vida espírita, a imortalidade não se reduz a uma permanência material. Como se vê, o Espiritismo diz exatamente o contrário. Desnaturando-o assim, o Pe. Nampon não tem a desculpa da ignorância, porque suas citações provam que leu, mas se equivoca ao truncar citações e ao fazê-lo dizer o contrário do que diz.


13. – O Espiritismo é acusado por alguns de estribar-se no mais grosseiro materialismo, porque admite o perispírito, que tem propriedades materiais. É ainda uma falsa consequência, tirada de um princípio referido incompletamente. O Espiritismo jamais confundiu a alma com o perispírito, que não passa de um envoltório, como o corpo é um outro. Tivesse ela dez envoltórios e isto nada tiraria à sua essência imaterial. Já o mesmo não se dá com a doutrina adotada pelo concílio de Viena, no Dauphiné, na sua segunda sessão, em 3 de abril de 1312. Segundo essa doutrina, “a autoridade da Igreja ordena crer que a alma não passa da forma substancial do corpo; que não há ideias inatas e declara heréticos os que negarem a materialidade da alma.” Raul Fornier, professor de Direito ensina positivamente a mesma coisa em seus discursos acadêmicos, impressos em Paris em 1619, com aprovação e elogios de vários doutores em teologia.

É provável que o concílio, baseando-se nos fatos de numerosas manifestações espíritas visíveis e tangíveis, referidas nas Escrituras, manifestações que não deixam de ser materiais, pois ferem os sentidos, tenha confundido a alma com o envoltório fluídico ou perispírito, cuja distinção o Espiritismo demonstra. Sua doutrina é, pois, menos materialista que a do concílio.


14. – “Mas abordemos sem hesitar o homem da França, que é o mais adiantado nesses estudos. Para constatar a identidade do Espírito que fala, é preciso, diz o Sr. Allan Kardec, estudar sua linguagem. Pois bem! Que seja! Conhecemos por seus escritos autênticos o pensamento certo e, conseguintemente, a linguagem de São João, São Paulo, Santo Agostinho, Fénelon, etc. Como, pois, em vossos livros, ousais atribuir a esses grandes gênios pensamentos e sentimentos inteiramente contrários aos que ficaram para sempre consignados em suas obras?”

Assim, admitis que essas personagens em nada se enganaram; que tudo quanto escreveram é a expressão da verdade; que se hoje voltassem corporalmente deveriam ensinar tudo o que ensinaram outrora; que, vindo como Espírito, não devem renegar nenhuma de suas palavras. Entretanto, Santo Agostinho olhava como heresia a crença na redondeza da Terra e nos antípodas. Sustentava a existência dos íncubos e súcubos e acreditava na procriação pelo comércio dos homens com os Espíritos. Credes que a tal respeito e como Espírito não possa pensar de modo diverso do que pensava como homem e que hoje professasse essas doutrinas? Se suas ideias houveram de modificar-se em certos pontos, podem perfeitamente ter sido mudadas em outros. Se se enganou, logo ele, gênio incontestavelmente superior, por que vós mesmos não vos enganaríeis? Para respeitar a ortodoxia será preciso negar a Agostinho o direito, melhor dizendo, o mérito de retratar-se de seus erros?


15. – “Atribuís a São Luís esta sentença ridícula, sobretudo em sua boca, contra a eternidade das penas: Supor Espíritos incuráveis é negar a lei do progresso.” (O Livro dos Espíritos, nº 1007.)

Não é assim que ela é formulada. À pergunta: Haverá Espíritos que nunca se arrependam? respondeu São Luís: “Há os de arrependimento muito tardio; porém, pretender-se que nunca se melhorarão fora negar a lei do progresso e dizer que a criança não pode tornar-se homem.” A primeira forma poderia parecer ridícula. Por que, então, sempre truncar e desnaturar as frases? A quem pensam enganar? aos que apenas lerem esses comentários inexatos? Mas seu número é muito pequeno, perto dos que querem conhecer o fundo das coisas sobre as quais vós mesmos chamais a atenção. Ora, a comparação não pode senão favorecer o Espiritismo.


Nota. – Para a edificação de todos, recomendamos a leitura da brochura intitulada: Do Espiritismo, pelo Rev. Pe. Nampon [Adrien Nampon], da Companhia de Jesus, Livraria Girard et Josserand, Lyon, place Bellecour, nº 30; Paris, rue Cassette, nº 5. Rogamos também ler em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns os textos completos, citados resumidamente ou deturpados na brochura acima referida. [Vide ainda do Pe. Nampon Catholic doctrine as defined by the Council of Trent - Google Books.]









Maio

1. – De vários pontos nos assinalam novas prédicas contra o Espiritismo, todas no mesmo espírito daquelas de que temos falado; e como não passam, quase sempre, de variantes do mesmo pensamento, em termos mais ou menos escolhidos, julgamos supérfluo fazer-lhes a análise. Limitar-nos-emos a destacar certas passagens, acompanhando-as de algumas reflexões.


“Meus irmãos, é um cristão que fala a cristãos e, nessa qualidade, temos o direito de nos admirarmos, vendo o Espiritismo crescer entre nós. O que é o Espiritismo, eu vos pergunto, senão um mosaico de horrores que só a loucura pode justificar?”

A isto nada temos a dizer, senão que todas as prédicas feitas nesta cidade foram incapazes de deter o crescimento do Espiritismo, como bem constata o orador; portanto, os argumentos que lhe opõem têm menos autoridade que os seus; e, se as prédicas emanam de Deus e o Espiritismo procede do diabo, é que este é mais poderoso que Deus. Nada mais brutal que um fato. Ora, a propagação do Espiritismo, em consequência mesma das prédicas, é um fato notório, e por certo as pessoas julgam que os argumentos por ele dados são mais convincentes que os dos adversários. É uma trama de horrores. Seja. Mas haveis de concordar que se esses Espíritos viessem abraçar todas as vossas ideias, em vez de demônios, deles faríeis santos; e, longe de condenar as evocações, vós as encorajaríeis.


2. – “Nosso século não respeita mais nada; nem mesmo a cinza dos túmulos é poupada, pois insensatos ousam chamar os mortos para conversar com eles. Infelizmente é assim. Eis até onde chegou esse pretenso século das luzes: conversar com as almas do outro mundo.”

Conversar com os mortos não é privilégio deste século, já que a história de todos os povos comprova que isto tem ocorrido em todos os tempos. A única diferença é que hoje isto é feito em toda parte sem os acessórios supersticiosos com que outrora cercavam as evocações, e com um sentimento mais religioso e mais respeitoso. De duas uma: ou a coisa é possível, ou não é. Se não é, é uma crença ilusória; tal como acreditar na fatalidade da sexta-feira, na influência do sal derramado. Não vemos, pois, que haja tantos horrores e que sé falte com o respeito conversando com seres que já não pertencem a este mundo. Se os mortos vêm conversar conosco, só pode ser com a permissão de Deus, a menos que se pretenda que venham sem essa permissão, ou contra a sua vontade, o que implicaria que Deus não se importa com isso ou que os evocadores são mais poderosos que Deus. Mas notai as contradições: de um lado dizeis que só o diabo se comunica e, de outro, que se perturbam as cinzas dos mortos, chamando-os. Se é o diabo, não são os mortos; portanto, não são perturbados nem se lhes falta com o respeito. Se são os mortos, então não é o diabo. Seria preciso, ao menos, que vos pusésseis de acordo sobre este ponto capital. Admitindo que sejam os mortos, reconhecemos que haveria profanação em chamá-los levianamente, por razões fúteis, sobretudo para fazer disto profissão lucrativa. Condenamos todas essas coisas e não nos responsabilizamos pelos que se afastam dos princípios do Espiritismo sério. Não assumais responsabilidade pelos falsos devotos, que da religião só têm a máscara, que pregam o que não praticam ou que especulam com as coisas santas. Certamente evocações feitas em condições burlescas atribuídas a um eloquente orador que citamos mais adiante, seriam um sacrilégio; mas, graças a Deus, não nos envolvemos com isso e não cremos que a do Sr. Viennois, igualmente referida adiante [v. Sr. Philibert 5iennois], esteja neste caso.


3. – “Eu mesmo testemunhei estes fatos e ouvi pregar a moral, a caridade; é verdade. Mas sobre que se apoiam esta moral e esta caridade? Ah! sobre nada, porquanto não se pode chamar moral uma doutrina que nega as penas eternas.”

Se essa moral leva a fazer o bem sem o temor das penas eternas, é mais meritória ainda. Outrora se julgava impossível manter a disciplina na escola sem o medo da palmatória. Eram melhores os estudantes? Não; hoje ela não é mais usada e eles não são piores: ao contrário. Logo, o regime atual é preferível.

Julga-se a qualidade de um meio pelos seus efeitos. Aliás, a quem se dirige essa moral? Exatamente aos que não acreditam nas penas eternas, e a quem damos um freio, que aceitam, ao passo que não lhos dais, uma vez que não aceitam o vosso. Impedimos acreditem na danação absoluta aqueles a quem isto convém? Absolutamente. Ainda uma vez, não nos dirigimos aos que têm fé e aos quais esta basta, mas aos que não a têm ou duvidam. Preferiríeis que eles ficassem na incredulidade absoluta? Seria pouco caridoso. Temeis que vos tomem ovelhas? É que não tendes muita confiança no poder de vossos meios para retê-las; é que receais que elas sejam atraídas pela erva tenra do perdão e da misericórdia divina. Acreditais, então, que as que vacilam na incerteza preferirão as labaredas do inferno? Por outro lado, quem deve estar mais convencido das penas eternas, senão os que são alimentados no seio da Igreja? Ora, dizei por que essa perspectiva não deteve todos os escândalos, todas as atrocidades, todas as prevaricações contra as leis divinas e humanas, que pululam na História e se reproduzem incessantemente em nossos dias? São crimes ou não? Se, pois, os que fazem profissão desta crença não são tolhidos em suas ações, como querer que o sejam os que não creem? Não; ao homem esclarecido de nossos dias é preciso outro freio: aquele que sua razão admite. Ora, a crença nas penas eternas, talvez útil em outras épocas, está superada; extingue-se dia a dia e, por mais que fizerdes, não dareis vida a um cadáver nem fareis reviver os usos, costumes e ideias da Idade Média. Se a Igreja Católica julga sua segurança comprometida pelo desaparecimento dessa crença, devemos lamentá-la por repousar sobre base tão frágil, porque, se algo a atormenta, este é o dogma das penas eternas.


4. – “Assim, apelo à moralidade de todas as almas honestas; apelo aos magistrados, pois eles são responsáveis por todo o mal que semelhante heresia atrai sobre nossas cabeças.”

Não sabíamos que na França os magistrados fossem encarregados de instaurar processos contra as heresias, pois se entre eles há católicos, também há protestantes e judeus; assim, os próprios heréticos se incumbiriam de sua perseguição e condenação. E os há entre os funcionários da mais alta categoria.


5. – “Sim, os espíritas – e não receio declarar aqui abertamente – não apenas são passíveis da polícia correcional e da Corte Imperial, mas, também – prestai bem atenção – do tribunal do júri, porque são falsários; assinam comunicações em nome de pessoas que certamente jamais as teriam assinado em vida, pessoas que hoje eles tanto fazem falar.”

Os espíritas estão realmente muito contentes, porque Confúcio, Sócrates, Santo Agostinho, São Vicente de Paulo, Fénelon e outros não lhes podem mover processos por crimes de falsificação de escrita particular. Bem que eu sonho com isso: eles teriam uma tábua de salvação precisamente nos tribunais do júri a cuja jurisdição estão sujeitos, pois ali os jurados se pronunciam segundo a sua consciência. Ora, entre eles há também protestantes e judeus; há, até – coisa abominável! – filósofos, incrédulos, horríveis livres-pensadores que, à vista de nossas detestáveis leis modernas, se acham em toda parte. Assim, se nos acusam de fazer Santo Agostinho dizer algo de heterodoxo, sempre encontraremos jurados que nos absolvam. Ó perversidade do século! dizer que em nossos dias Voltaire, Diderot, Lutero, Calvino, João Huss, Ário teriam sido jurados por direito de nascimento, que poderiam ter sido juízes perfeitos, ministro da justiça e mesmo dos cultos! Vede-os, esses celerados infernais, a se pronunciarem sobre uma questão de heresia! Porque, para condenar a assinatura de Fénelon, posta abaixo de uma suposta comunicação herética, é preciso julgar a questão da ortodoxia; e quem será competente no júri?


6. – “Entretanto, seria tão fácil interditar semelhante impiedade! O que se precisaria fazer? quase nada; mesmo sem lhes fazer a honra da capa do comissário, podeis colocar um sargento à entrada de cada grupo para dizer: não entreis. Pinto o mal e descrevo o remédio, apenas isto, pois eu os dispenso da Inquisição.”

Muito obrigado, mas não há grande mérito em oferecer aquilo que não se tem. Infelizmente, para vós, não podeis contar com a Inquisição, sem o que seria duvidoso que nos liberásseis dela. O que não dizeis aos magistrados, visando à interdição da entrada dos templos judeus e protestantes, onde se pregam publicamente dogmas que não são os vossos? Quanto aos espíritas, não têm templos nem sacerdotes, mas – o que para vós é a mesma coisa – grupos, à entrada dos quais basta pôr um sargento para que tudo fique dito. Realmente é muito simples. Mas esqueceis que os Espíritos ignoram qualquer proibição e entram em toda parte sem pedir permissão, mesmo em vossa casa, pois os tendes ao vosso lado, escutando-vos, sem que o suspeiteis e, ademais, vos falando ao ouvido. Trazei à memória as vossas lembranças e vereis que tivestes mais de uma manifestação, mesmo sem a haverdes buscado.

Pareceis ignorar uma coisa que é bom saibais. Os grupos espíritas não são absolutamente necessários; são simples reuniões onde se sentem felizes por encontrar-se pessoas que pensam do mesmo modo. E a prova disto é que hoje, na França, há mais de 600.000 espíritas, 99% dos quais não fazem parte de nenhum grupo e neles jamais puseram os pés; que eles não existem numa porção de cidades; que nem os grupos nem as sociedades abrem suas portas ao público para pregar suas doutrinas aos transeuntes; que o Espiritismo se prega por si mesmo e pela força das coisas, porque responde a uma necessidade da época; que as ideias espíritas estão no ar e são aspiradas por todos os poros da inteligência; que o contágio está no exemplo dos que são felizes com essas crenças e que são encontrados por toda parte, na sociedade, sem que se precise procurá-los nos grupos. Assim, não são os grupos que fazem a propaganda, pois não apelam ao primeiro que apareça; ela é feita pouco a pouco, de indivíduo a indivíduo. Se, portanto, admitíssemos a interdição de todas as reuniões, os espíritas ficariam livres para se reunirem em família, como já ocorre em milhares de lugares, sem que o Espiritismo nada sofra com isso; muito ao contrário, pois temos sempre condenado as grandes assembleias, que são mais prejudiciais que úteis; além disso, a intimidade é reconhecida como a condição mais favorável às manifestações. Interditaríeis as reuniões familiares? Colocaríeis um sargento à porta de um salão para vigiar o que se passa à lareira? Isto não se faz na Espanha, nem em Roma, onde há mais espíritas e médiuns do que pensais. Só faltava isso para aumentar ainda mais a importância do Espiritismo.

Admitamos agora a interdição legal dos grupos. Sabeis o que fariam esses espíritas que acusais de semear a desordem? Eles diriam: Respeitamos a lei; dura lex, sed lex [A lei é dura mais é lei]. Vamos dar o exemplo, mostrando que, se pregamos a união, a paz e a concórdia, não é para nos transformarmos em promotores de desordens. As sociedades organizadas não são necessárias à existência do Espiritismo; não há entre elas nenhuma solidariedade material que possa ser quebrada por sua supressão. O que os Espíritos aí ensinam, igualmente ensinam numa conversa particular entre duas pessoas, porque o Espiritismo tem o incrível privilégio de ter o seu foco de ensino por toda parte. Seu sinal de ligação é o amor de Deus e do próximo e, para o pôr em prática, não há necessidade de reuniões oficiais, pois ele tanto se estende sobre os amigos quanto sobre os inimigos. Qualquer um pode dizer o mesmo; e mais de uma vez a autoridade não tem encontrado resistência onde esperava encontrar a maior submissão? Se os espíritas fossem pessoas tão turbulentas e tão pervertidas quanto pretendeis, por que os funcionários encarregados da manutenção da ordem têm menos trabalho nos centros onde eles constituem maioria? Um funcionário chegou a dizer que se todos os seus administrados fossem espíritas, sua repartição podia ser fechada. Por que há menos penas disciplinares entre os militares espíritas?

E, depois, não pensais que atualmente há espíritas em toda parte, de alto a baixo na escala social; que há reuniões e médiuns até em casa daqueles que invocais contra nós. Vede, pois, que o vosso meio é insuficiente; é preciso buscar outro. – Temos a condenação fulminante do púlpito. – Está bem; e vós a usais largamente. Mas não vedes que por toda parte onde lançam raios o número de espíritas aumenta? – Temos a censura da Igreja e a excomunhão. – É melhor; mas ainda uma vez bateis no vazio. Repetimos: o Espiritismo nem se dirige a vós nem aos que estão convosco; não os vai buscar e dizer-lhes: deixai a vossa religião e segui-me; sereis danados se não o fizerdes. Não; ele é mais tolerante que isso e deixa a cada um a liberdade de consciência. Como já dissemos, ele se dirige à massa inumerável dos incrédulos, aos que duvidam e aos indiferentes; estes não estão convosco e vossas censuras não os podem atingir. Eles vinham a vós, mas os repelíeis. Quanta inabilidade! Se alguns dos vossos os seguem, é que vossos argumentos não são bastante fortes para os reter e não é com rigor que o conseguireis. O Espiritismo agrada porque não se impõe e é aceito pela vontade e o livre-exame. Nisto ele é de nossa época. Agrada pela doçura, pelas consolações que prodigaliza nas adversidades, pela fé inabalável que dá no futuro, na bondade e na misericórdia de Deus. Além disso, ele se apoia em fatos patentes, materiais, irrecusáveis, que desafiam toda negação. Eis o segredo de sua tão rápida propagação. Que lhe opondes? Sempre a danação eterna, expediente ruim para os tempos que correm; depois a deturpação de suas doutrinas: vós o acusais de pregar o aborto,, o adultério e todos os crimes. A quem pensais impor isto? Não aos espíritas, certamente. Aos que não o conhecem? Mas nesse número muitos querem saber o que é essa abominável doutrina; leem, e vendo que ela diz exatamente o contrário do que lhe atribuem, vos deixam para a seguir. E isto sem que ele os vá procurar.

A posição, bem o sei, é embaraçosa: Se falamos contra o Espiritismo – dizeis – recrutamos-lhe partidários; se nos calamos, ele marcha sozinho. Que fazer então? Outrora se dizia: Deixai passar a justiça do rei; agora é preciso dizer: Deixemos passar a justiça de Deus.

(Continua no próximo número)


7. ALGUMAS REFUTAÇÕES.

(2° artigo. – Ver o número de maio.) [Revista de junho de 1863.]

Toda ideia nova encontra forçosamente oposição, por parte daqueles cujas opiniões e interesses contraria. Julgam alguns que a Igreja está comprometida – pensamos que não, mas nossa opinião não faz lei – razão por que nos atacam em seu nome com um furor ao qual só faltam as grandes execuções da Idade Média. Os sermões, as instruções pastorais lançam raios em todas as direções; as brochuras e artigos de jornais chovem em grande quantidade, na maioria com um cinismo de expressão pouquíssimo evangélico. Em vários deles é um raio que toca o frenesi. Por que, então, essa exibição de força e tanta cólera? Porque dizemos que Deus perdoa à criatura que se arrepende e que as penas só seriam eternas para aquelas que jamais se arrependessem, e porque proclamamos a bondade e a clemência de Deus, somos heréticos votados à execração e a sociedade está perdida. Apontam-nos como perturbadores; desafiam a autoridade a nos perseguir em nome da moral e da ordem pública; alegam que aquela não cumpre o seu dever deixando-nos tranquilos!

Aqui se apresenta um problema interessante. Pergunta-se por que essa violência contra o Espiritismo, e não contra tantas outras teorias filosóficas ou religiosas muito menos ortodoxas? A Igreja fulminou o materialismo, que tudo nega, como o faz contra o Espiritismo, que se limita à interpretação de alguns dogmas? Esses dogmas e muitos outros não foram tantas vezes negados, discutidos, polemizados numa porção de escritos que ela deixa passar despercebidos? Os princípios fundamentais da fé – Deus, a alma e a imortalidade – não foram publicamente atacados sem que ela se perturbasse? Jamais o saint-simonismo, o fourierismo, a própria Igreja do padre Chatel levantaram tantas cóleras, sem falar de outras seitas menos conhecidas, tais como os fusionistas, cujo chefe acaba de morrer, que têm um culto, seu jornal e não admitem a divindade do Cristo; os católicos apostólicos, que não reconhecem o papa, que têm seus padres e bispos casados, suas igrejas em Paris e nas províncias, onde batizam, casam e promovem cerimônias fúnebres. Por que, então, o Espiritismo, que não tem culto nem igreja, e cujos padres só existem na imaginação, levanta tanta animosidade? Coisa bizarra! o partido religioso e o partido materialista, que são a negação um do outro, dão-se as mãos para nos pulverizar, segundo dizem. Realmente o espírito humano apresenta caprichos singulares quando enceguecido pela paixão, e a história do Espiritismo terá coisas divertidas para registrar.


8. – A reposta está por inteiro nesta conclusão da brochura do Rev. Pe. Nampon: “Em geral nada é mais abjeto, mais degradante, mais vazio de fundo e de atrativo na forma que tais publicações, cujo sucesso fabuloso é um dos sintomas mais alarmantes de nossa época. Destruí-os, pois, e nada perdereis com isso. Com o dinheiro gasto em Lyon para essas inépcias, facilmente se teriam criado mais leitos nos hospitais de alienados, superlotados desde a invasão do Espiritismo. E que faremos dessas brochuras perniciosas? Faremos o mesmo que fez o grande apóstolo em Éfeso; e assim agindo conservaremos em nosso meio o império da razão e da fé, preservando as vítimas dessas lamentáveis ilusões de uma porção de decepções na vida presente e das chamas da eternidade infeliz.”


9. – Esse sucesso fabuloso é que confunde os nossos adversários. Eles não podem compreender a inutilidade de tudo quanto fazem para travar essa ideia que passa por cima de suas ciladas, endireita-se sob os seus golpes e prossegue sua marcha ascendente sem se preocupar com as pedras que lhe atiram. Isto é um fato indubitável e constatado muitas vezes pelos adversários desta ou daquela categoria, em suas prédicas e publicações. Todos deploram o progresso incrível dessa epidemia, que ataca até os homens de ciência, os médicos e os magistrados. Na verdade é preciso voltar do Texas para dizer que o Espiritismo está morto e ninguém mais fala dele. (Vide a Revista de fevereiro de 1863.)

Que fazemos para triunfar? Vamos pregar o Espiritismo nas praças? Convocamos o público às nossas reuniões? Temos missionários de propaganda? Contamos com o apoio da imprensa? Temos, enfim, todos os meios de ação, ostensivos e secretos, que possuís e usais com tanta prodigalidade? Não; para recrutar partidários temos mil vezes menos trabalho do que vós para os desviar. Contentamo-nos em dizer: “Lede; e se isto vos convém, voltai a nós.” Fazemos mais, dizendo: “Lede os prós e os contras e comparai.” Respondemos aos vossos ataques sem fel sem animosidade, sem acrimônia, porque não temos cólera. Longe de nos lamentarmos da vossa, nós a aplaudimos, porque ela serve à nossa causa. Eis entre milhares uma prova da força persuasiva dos argumentos dos nossos adversários. Um senhor que acaba de escrever à Sociedade de Paris, pedindo para dela fazer parte, assim começa sua carta: “A leitura de: A questão do Sobrenatural, os mortos e os vivos, do Padre Matignon; A questão dos Espíritos, do Sr. de Mirville; O Espírito batedor, do Dr. Bronson, e, finalmente, diversos artigos contra o Espiritismo, não fizeram senão que eu aderisse completamente à doutrina exposta em O Livro dos Espíritos e me deram o mais vivo desejo de fazer parte da Sociedade Espírita de Paris, para poder continuar o estudo do Espiritismo de maneira mais seguida e mais proveitosa.”


10. – Por vezes a paixão cega, a ponto de fazer cometer singulares inconsequências. Na passagem citada acima, o Rev. Pe. Nampon diz que “nada é mais vazio de atrativo que essas publicações, cujo sucesso fabuloso, etc.” Não percebe ele que essas duas proposições se destroem reciprocamente; uma coisa sem atrativo não poderia ter nenhum sucesso, porquanto só o terá com a condição de ter atrativo; com mais forte razão quando o sucesso é fabuloso.

Acrescenta que com o dinheiro gasto em Lyon com essas inépcias, facilmente teriam sido criados mais leitos nos hospícios de alienados daquela cidade, superlotados desde a invasão do Espiritismo. É verdade que seriam precisos trinta a quarenta mil leitos, só em Lyon, já que todos os espíritas são loucos. Por outro lado, visto que são inépcias, nenhum valor possuem. Por que, então, lhes dar as honras de tantos sermões, pastorais e brochuras? Quanto à questão do emprego de dinheiro, sabemos que em Lyon muita gente, por certo animada de maus sentimentos, havia dito que os dois milhões fornecidos por esta cidade aos cofres de São Pedro teriam dado mais pão a muitos operários infelizes durante o inverno, ao passo que a leitura dos livros espíritas lhes deu coragem e resignação para suportar sua miséria sem revolta.

O Pe. Nampon não é feliz em suas citações. Numa passagem de O Livro dos Espíritos ele nos faz dizer: “Há tanta distância entre a alma do animal e a alma do homem, quanto entre a alma do homem e a alma de Deus.” (Nº 597). Nós dissemos: …quanto entre a alma do homem e Deus, o que é muito diferente. A alma de Deus implica uma espécie de assimilação entre Deus e as criaturas corpóreas. Compreende-se a omissão de uma palavra por inadvertência ou erro tipográfico; mas não se acrescenta uma palavra sem intenção. Por que essa adição, que desnatura o sentido do pensamento, senão para dar um tom materialista aos olhos dos que se contentarem em ler a citação sem a verificar no original? Um livro que apareceu pouco antes de O Livro dos Espíritos, e que contém toda uma teoria cosmogônica, faz de Deus um ser muito diversamente material, porque composto de todos os globos do Universo, moléculas do ser universal, que tem um estômago, come e digere, e do qual os homens são o mau produto de sua digestão; contudo, nem uma palavra foi dita para o combater: todas as cóleras se concentraram sobre O Livro dos Espíritos. Será, talvez, porque em seis anos chegou à décima edição e espalhou-se em todos os países do mundo?

Não se contentam em criticar: truncam e desnaturam as máximas para aumentar o horror que deve inspirar essa abominável doutrina e nos pôr em contradição conosco mesmo. É assim que diz o Pe. Nampon, citando uma frase da introdução de O Livro dos Espíritos, página 30III: “Certas pessoas, dizei vós mesmos, entregando-se a esses estudos perderam a razão.” Damos assim a impressão de reconhecer que o Espiritismo conduz à loucura, ao passo que, lendo todo o parágrafo XV, a acusação cai precisamente sobre aqueles que a lançam. É assim que, tomando um trecho da frase de um autor, poderíamos levá-lo à forca. Os mais sagrados autores não escapariam a essa dissecção. É com tal sistema que certos críticos esperam mudar as tendências do Espiritismo e fazer crer que ele preconiza o aborto, o adultério, o suicídio, quando demonstra peremptoriamente a sua criminalidade e as funestas consequências para o futuro.


11. – O Pe. Nampon chega mesmo a apropriar-se de citações feitas com o objetivo de refutar certas ideias. “O autor – diz ele – às vezes chama Jesus-Cristo Homem-Deus; mas alhures (O Livro dos Médiuns, página 368), num diálogo com um médium que, tomando o nome de Jesus lhe dizia: “Eu não sou Deus, mas sou seu filho”, logo replica: “Então sois Jesus? Sim – acrescenta o Pe. Nampon – Jesus é chamado Filho de Deus, mas na acepção ariana, não sendo, portanto, consubstancial com o Pai.”

Antes de mais, não era o médium que se fazia passar por Jesus, mas um Espírito, o que é muito diferente. A citação é feita precisamente para mostrar a velhacaria de certos Espíritos e prevenir os médiuns contra seus subterfúgios. Pretendeis que o Espiritismo negue a divindade do Cristo ou vistes tal proposição formulada em princípio? É, dizeis vós, a consequência de toda a doutrina. Ah! se entrarmos no terreno das interpretações, poderemos ir mais longe do que quereis. Se disséssemos, por exemplo, que o Cristo não tinha chegado à perfeição, que teve necessidade das provas da vida corpórea para progredir; que a sua paixão lhe tinha sido necessária para subir em glória, teríeis razão, porque dele não faríamos sequer um Espírito puro, enviado à Terra com missão divina, mas um simples mortal, a quem o sofrimento era necessário, a fim de progredir. Onde encontrais que tenhamos dito isto? Pois bem! aquilo que nunca dissemos, que jamais diremos, sois vós que dizeis.

Ultimamente temos visto, no parlatório de uma casa religiosa de Paris, a seguinte inscrição, impressa em letras grandes e afixada para a instrução de todos: “Foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória, e não foi senão depois de ter bebido a longos sorvos na torrente da tribulação e do sofrimento que foi elevado ao mais alto dos céus.” (Salmo 110, v. 7.) É o comentário deste versículo, cujo texto é: “Ele beberá no caminho a água da torrente e é por ali que erguerá a cabeça (De torrente in via bibet: propterea exultabit caput [Psalmorum])”. Se, pois, “foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória; se não pôde ser elevado ao mais alto dos céus senão pelas tribulações e pelo sofrimento”, é que antes nem estava na glória nem no mais alto dos céus; por conseguinte não era Deus. Seus sofrimentos, pois, não aproveitavam somente à Humanidade, desde que necessários ao seu próprio adiantamento. Dizer que o Cristo tinha necessidade de sofrer para elevar-se é dizer que não era perfeito antes de sua vinda. Não conhecemos protesto mais enérgico contra a sua divindade. Se tal é o sentido do versículo do salmo que se canta nas vésperas todos os domingos cantam a não divindade do Cristo.

Com o sistema de interpretação vai-se muito longe, dizíamos nós. Se quiséssemos citar a de alguns concílios sobre este outro versículo: “O Senhor está a vossa direita; ele destruirá os reis no dia de sua cólera”, seria fácil provar que daí foi tirada a justificação do regicídio.


12. – Diz ainda o Pe. Nampon: “A vida muda inteiramente de aspecto (com o Espiritismo). A imortalidade da alma reduz-se a uma permanência material, sem identidade moral, sem consciência do passado.”

É um erro. O Espiritismo jamais disse que a alma ficasse sem consciência do passado. Ela perde momentaneamente a sua lembrança durante a vida corpórea, mas “quando o Espírito volta à vida anterior (a vida espírita), diante dos olhos se lhe estende toda a sua vida pretérita. Vê as faltas que cometeu e que deram causa ao seu sofrer, assim como de que modo as teria evitado. Reconhece justa a situação em que se acha e busca então uma existência capaz de reparar a que acaba de transcorrer.” (O Livro dos Espíritos, nº 393.) Uma vez que há lembrança do passado, consciência do ser, há então, identidade moral; desde que a vida espiritual é a vida normal do Espírito, que as existências corpóreas não passam de pontos na vida espírita, a imortalidade não se reduz a uma permanência material. Como se vê, o Espiritismo diz exatamente o contrário. Desnaturando-o assim, o Pe. Nampon não tem a desculpa da ignorância, porque suas citações provam que leu, mas se equivoca ao truncar citações e ao fazê-lo dizer o contrário do que diz.


13. – O Espiritismo é acusado por alguns de estribar-se no mais grosseiro materialismo, porque admite o perispírito, que tem propriedades materiais. É ainda uma falsa consequência, tirada de um princípio referido incompletamente. O Espiritismo jamais confundiu a alma com o perispírito, que não passa de um envoltório, como o corpo é um outro. Tivesse ela dez envoltórios e isto nada tiraria à sua essência imaterial. Já o mesmo não se dá com a doutrina adotada pelo concílio de Viena, no Dauphiné, na sua segunda sessão, em 3 de abril de 1312. Segundo essa doutrina, “a autoridade da Igreja ordena crer que a alma não passa da forma substancial do corpo; que não há ideias inatas e declara heréticos os que negarem a materialidade da alma.” Raul Fornier, professor de Direito ensina positivamente a mesma coisa em seus discursos acadêmicos, impressos em Paris em 1619, com aprovação e elogios de vários doutores em teologia.

É provável que o concílio, baseando-se nos fatos de numerosas manifestações espíritas visíveis e tangíveis, referidas nas Escrituras, manifestações que não deixam de ser materiais, pois ferem os sentidos, tenha confundido a alma com o envoltório fluídico ou perispírito, cuja distinção o Espiritismo demonstra. Sua doutrina é, pois, menos materialista que a do concílio.


14. – “Mas abordemos sem hesitar o homem da França, que é o mais adiantado nesses estudos. Para constatar a identidade do Espírito que fala, é preciso, diz o Sr. Allan Kardec, estudar sua linguagem. Pois bem! Que seja! Conhecemos por seus escritos autênticos o pensamento certo e, conseguintemente, a linguagem de São João, São Paulo, Santo Agostinho, Fénelon, etc. Como, pois, em vossos livros, ousais atribuir a esses grandes gênios pensamentos e sentimentos inteiramente contrários aos que ficaram para sempre consignados em suas obras?”

Assim, admitis que essas personagens em nada se enganaram; que tudo quanto escreveram é a expressão da verdade; que se hoje voltassem corporalmente deveriam ensinar tudo o que ensinaram outrora; que, vindo como Espírito, não devem renegar nenhuma de suas palavras. Entretanto, Santo Agostinho olhava como heresia a crença na redondeza da Terra e nos antípodas. Sustentava a existência dos íncubos e súcubos e acreditava na procriação pelo comércio dos homens com os Espíritos. Credes que a tal respeito e como Espírito não possa pensar de modo diverso do que pensava como homem e que hoje professasse essas doutrinas? Se suas ideias houveram de modificar-se em certos pontos, podem perfeitamente ter sido mudadas em outros. Se se enganou, logo ele, gênio incontestavelmente superior, por que vós mesmos não vos enganaríeis? Para respeitar a ortodoxia será preciso negar a Agostinho o direito, melhor dizendo, o mérito de retratar-se de seus erros?


15. – “Atribuís a São Luís esta sentença ridícula, sobretudo em sua boca, contra a eternidade das penas: Supor Espíritos incuráveis é negar a lei do progresso.” (O Livro dos Espíritos, nº 1007.)

Não é assim que ela é formulada. À pergunta: Haverá Espíritos que nunca se arrependam? respondeu São Luís: “Há os de arrependimento muito tardio; porém, pretender-se que nunca se melhorarão fora negar a lei do progresso e dizer que a criança não pode tornar-se homem.” A primeira forma poderia parecer ridícula. Por que, então, sempre truncar e desnaturar as frases? A quem pensam enganar? aos que apenas lerem esses comentários inexatos? Mas seu número é muito pequeno, perto dos que querem conhecer o fundo das coisas sobre as quais vós mesmos chamais a atenção. Ora, a comparação não pode senão favorecer o Espiritismo.


Nota. – Para a edificação de todos, recomendamos a leitura da brochura intitulada: Do Espiritismo, pelo Rev. Pe. Nampon [Adrien Nampon], da Companhia de Jesus, Livraria Girard et Josserand, Lyon, place Bellecour, nº 30; Paris, rue Cassette, nº 5. Rogamos também ler em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns os textos completos, citados resumidamente ou deturpados na brochura acima referida. [Vide ainda do Pe. Nampon Catholic doctrine as defined by the Council of Trent - Google Books.]









Maio

1. – De vários pontos nos assinalam novas prédicas contra o Espiritismo, todas no mesmo espírito daquelas de que temos falado; e como não passam, quase sempre, de variantes do mesmo pensamento, em termos mais ou menos escolhidos, julgamos supérfluo fazer-lhes a análise. Limitar-nos-emos a destacar certas passagens, acompanhando-as de algumas reflexões.


“Meus irmãos, é um cristão que fala a cristãos e, nessa qualidade, temos o direito de nos admirarmos, vendo o Espiritismo crescer entre nós. O que é o Espiritismo, eu vos pergunto, senão um mosaico de horrores que só a loucura pode justificar?”

A isto nada temos a dizer, senão que todas as prédicas feitas nesta cidade foram incapazes de deter o crescimento do Espiritismo, como bem constata o orador; portanto, os argumentos que lhe opõem têm menos autoridade que os seus; e, se as prédicas emanam de Deus e o Espiritismo procede do diabo, é que este é mais poderoso que Deus. Nada mais brutal que um fato. Ora, a propagação do Espiritismo, em consequência mesma das prédicas, é um fato notório, e por certo as pessoas julgam que os argumentos por ele dados são mais convincentes que os dos adversários. É uma trama de horrores. Seja. Mas haveis de concordar que se esses Espíritos viessem abraçar todas as vossas ideias, em vez de demônios, deles faríeis santos; e, longe de condenar as evocações, vós as encorajaríeis.


2. – “Nosso século não respeita mais nada; nem mesmo a cinza dos túmulos é poupada, pois insensatos ousam chamar os mortos para conversar com eles. Infelizmente é assim. Eis até onde chegou esse pretenso século das luzes: conversar com as almas do outro mundo.”

Conversar com os mortos não é privilégio deste século, já que a história de todos os povos comprova que isto tem ocorrido em todos os tempos. A única diferença é que hoje isto é feito em toda parte sem os acessórios supersticiosos com que outrora cercavam as evocações, e com um sentimento mais religioso e mais respeitoso. De duas uma: ou a coisa é possível, ou não é. Se não é, é uma crença ilusória; tal como acreditar na fatalidade da sexta-feira, na influência do sal derramado. Não vemos, pois, que haja tantos horrores e que sé falte com o respeito conversando com seres que já não pertencem a este mundo. Se os mortos vêm conversar conosco, só pode ser com a permissão de Deus, a menos que se pretenda que venham sem essa permissão, ou contra a sua vontade, o que implicaria que Deus não se importa com isso ou que os evocadores são mais poderosos que Deus. Mas notai as contradições: de um lado dizeis que só o diabo se comunica e, de outro, que se perturbam as cinzas dos mortos, chamando-os. Se é o diabo, não são os mortos; portanto, não são perturbados nem se lhes falta com o respeito. Se são os mortos, então não é o diabo. Seria preciso, ao menos, que vos pusésseis de acordo sobre este ponto capital. Admitindo que sejam os mortos, reconhecemos que haveria profanação em chamá-los levianamente, por razões fúteis, sobretudo para fazer disto profissão lucrativa. Condenamos todas essas coisas e não nos responsabilizamos pelos que se afastam dos princípios do Espiritismo sério. Não assumais responsabilidade pelos falsos devotos, que da religião só têm a máscara, que pregam o que não praticam ou que especulam com as coisas santas. Certamente evocações feitas em condições burlescas atribuídas a um eloquente orador que citamos mais adiante, seriam um sacrilégio; mas, graças a Deus, não nos envolvemos com isso e não cremos que a do Sr. Viennois, igualmente referida adiante [v. Sr. Philibert 5iennois], esteja neste caso.


3. – “Eu mesmo testemunhei estes fatos e ouvi pregar a moral, a caridade; é verdade. Mas sobre que se apoiam esta moral e esta caridade? Ah! sobre nada, porquanto não se pode chamar moral uma doutrina que nega as penas eternas.”

Se essa moral leva a fazer o bem sem o temor das penas eternas, é mais meritória ainda. Outrora se julgava impossível manter a disciplina na escola sem o medo da palmatória. Eram melhores os estudantes? Não; hoje ela não é mais usada e eles não são piores: ao contrário. Logo, o regime atual é preferível.

Julga-se a qualidade de um meio pelos seus efeitos. Aliás, a quem se dirige essa moral? Exatamente aos que não acreditam nas penas eternas, e a quem damos um freio, que aceitam, ao passo que não lhos dais, uma vez que não aceitam o vosso. Impedimos acreditem na danação absoluta aqueles a quem isto convém? Absolutamente. Ainda uma vez, não nos dirigimos aos que têm fé e aos quais esta basta, mas aos que não a têm ou duvidam. Preferiríeis que eles ficassem na incredulidade absoluta? Seria pouco caridoso. Temeis que vos tomem ovelhas? É que não tendes muita confiança no poder de vossos meios para retê-las; é que receais que elas sejam atraídas pela erva tenra do perdão e da misericórdia divina. Acreditais, então, que as que vacilam na incerteza preferirão as labaredas do inferno? Por outro lado, quem deve estar mais convencido das penas eternas, senão os que são alimentados no seio da Igreja? Ora, dizei por que essa perspectiva não deteve todos os escândalos, todas as atrocidades, todas as prevaricações contra as leis divinas e humanas, que pululam na História e se reproduzem incessantemente em nossos dias? São crimes ou não? Se, pois, os que fazem profissão desta crença não são tolhidos em suas ações, como querer que o sejam os que não creem? Não; ao homem esclarecido de nossos dias é preciso outro freio: aquele que sua razão admite. Ora, a crença nas penas eternas, talvez útil em outras épocas, está superada; extingue-se dia a dia e, por mais que fizerdes, não dareis vida a um cadáver nem fareis reviver os usos, costumes e ideias da Idade Média. Se a Igreja Católica julga sua segurança comprometida pelo desaparecimento dessa crença, devemos lamentá-la por repousar sobre base tão frágil, porque, se algo a atormenta, este é o dogma das penas eternas.


4. – “Assim, apelo à moralidade de todas as almas honestas; apelo aos magistrados, pois eles são responsáveis por todo o mal que semelhante heresia atrai sobre nossas cabeças.”

Não sabíamos que na França os magistrados fossem encarregados de instaurar processos contra as heresias, pois se entre eles há católicos, também há protestantes e judeus; assim, os próprios heréticos se incumbiriam de sua perseguição e condenação. E os há entre os funcionários da mais alta categoria.


5. – “Sim, os espíritas – e não receio declarar aqui abertamente – não apenas são passíveis da polícia correcional e da Corte Imperial, mas, também – prestai bem atenção – do tribunal do júri, porque são falsários; assinam comunicações em nome de pessoas que certamente jamais as teriam assinado em vida, pessoas que hoje eles tanto fazem falar.”

Os espíritas estão realmente muito contentes, porque Confúcio, Sócrates, Santo Agostinho, São Vicente de Paulo, Fénelon e outros não lhes podem mover processos por crimes de falsificação de escrita particular. Bem que eu sonho com isso: eles teriam uma tábua de salvação precisamente nos tribunais do júri a cuja jurisdição estão sujeitos, pois ali os jurados se pronunciam segundo a sua consciência. Ora, entre eles há também protestantes e judeus; há, até – coisa abominável! – filósofos, incrédulos, horríveis livres-pensadores que, à vista de nossas detestáveis leis modernas, se acham em toda parte. Assim, se nos acusam de fazer Santo Agostinho dizer algo de heterodoxo, sempre encontraremos jurados que nos absolvam. Ó perversidade do século! dizer que em nossos dias Voltaire, Diderot, Lutero, Calvino, João Huss, Ário teriam sido jurados por direito de nascimento, que poderiam ter sido juízes perfeitos, ministro da justiça e mesmo dos cultos! Vede-os, esses celerados infernais, a se pronunciarem sobre uma questão de heresia! Porque, para condenar a assinatura de Fénelon, posta abaixo de uma suposta comunicação herética, é preciso julgar a questão da ortodoxia; e quem será competente no júri?


6. – “Entretanto, seria tão fácil interditar semelhante impiedade! O que se precisaria fazer? quase nada; mesmo sem lhes fazer a honra da capa do comissário, podeis colocar um sargento à entrada de cada grupo para dizer: não entreis. Pinto o mal e descrevo o remédio, apenas isto, pois eu os dispenso da Inquisição.”

Muito obrigado, mas não há grande mérito em oferecer aquilo que não se tem. Infelizmente, para vós, não podeis contar com a Inquisição, sem o que seria duvidoso que nos liberásseis dela. O que não dizeis aos magistrados, visando à interdição da entrada dos templos judeus e protestantes, onde se pregam publicamente dogmas que não são os vossos? Quanto aos espíritas, não têm templos nem sacerdotes, mas – o que para vós é a mesma coisa – grupos, à entrada dos quais basta pôr um sargento para que tudo fique dito. Realmente é muito simples. Mas esqueceis que os Espíritos ignoram qualquer proibição e entram em toda parte sem pedir permissão, mesmo em vossa casa, pois os tendes ao vosso lado, escutando-vos, sem que o suspeiteis e, ademais, vos falando ao ouvido. Trazei à memória as vossas lembranças e vereis que tivestes mais de uma manifestação, mesmo sem a haverdes buscado.

Pareceis ignorar uma coisa que é bom saibais. Os grupos espíritas não são absolutamente necessários; são simples reuniões onde se sentem felizes por encontrar-se pessoas que pensam do mesmo modo. E a prova disto é que hoje, na França, há mais de 600.000 espíritas, 99% dos quais não fazem parte de nenhum grupo e neles jamais puseram os pés; que eles não existem numa porção de cidades; que nem os grupos nem as sociedades abrem suas portas ao público para pregar suas doutrinas aos transeuntes; que o Espiritismo se prega por si mesmo e pela força das coisas, porque responde a uma necessidade da época; que as ideias espíritas estão no ar e são aspiradas por todos os poros da inteligência; que o contágio está no exemplo dos que são felizes com essas crenças e que são encontrados por toda parte, na sociedade, sem que se precise procurá-los nos grupos. Assim, não são os grupos que fazem a propaganda, pois não apelam ao primeiro que apareça; ela é feita pouco a pouco, de indivíduo a indivíduo. Se, portanto, admitíssemos a interdição de todas as reuniões, os espíritas ficariam livres para se reunirem em família, como já ocorre em milhares de lugares, sem que o Espiritismo nada sofra com isso; muito ao contrário, pois temos sempre condenado as grandes assembleias, que são mais prejudiciais que úteis; além disso, a intimidade é reconhecida como a condição mais favorável às manifestações. Interditaríeis as reuniões familiares? Colocaríeis um sargento à porta de um salão para vigiar o que se passa à lareira? Isto não se faz na Espanha, nem em Roma, onde há mais espíritas e médiuns do que pensais. Só faltava isso para aumentar ainda mais a importância do Espiritismo.

Admitamos agora a interdição legal dos grupos. Sabeis o que fariam esses espíritas que acusais de semear a desordem? Eles diriam: Respeitamos a lei; dura lex, sed lex [A lei é dura mais é lei]. Vamos dar o exemplo, mostrando que, se pregamos a união, a paz e a concórdia, não é para nos transformarmos em promotores de desordens. As sociedades organizadas não são necessárias à existência do Espiritismo; não há entre elas nenhuma solidariedade material que possa ser quebrada por sua supressão. O que os Espíritos aí ensinam, igualmente ensinam numa conversa particular entre duas pessoas, porque o Espiritismo tem o incrível privilégio de ter o seu foco de ensino por toda parte. Seu sinal de ligação é o amor de Deus e do próximo e, para o pôr em prática, não há necessidade de reuniões oficiais, pois ele tanto se estende sobre os amigos quanto sobre os inimigos. Qualquer um pode dizer o mesmo; e mais de uma vez a autoridade não tem encontrado resistência onde esperava encontrar a maior submissão? Se os espíritas fossem pessoas tão turbulentas e tão pervertidas quanto pretendeis, por que os funcionários encarregados da manutenção da ordem têm menos trabalho nos centros onde eles constituem maioria? Um funcionário chegou a dizer que se todos os seus administrados fossem espíritas, sua repartição podia ser fechada. Por que há menos penas disciplinares entre os militares espíritas?

E, depois, não pensais que atualmente há espíritas em toda parte, de alto a baixo na escala social; que há reuniões e médiuns até em casa daqueles que invocais contra nós. Vede, pois, que o vosso meio é insuficiente; é preciso buscar outro. – Temos a condenação fulminante do púlpito. – Está bem; e vós a usais largamente. Mas não vedes que por toda parte onde lançam raios o número de espíritas aumenta? – Temos a censura da Igreja e a excomunhão. – É melhor; mas ainda uma vez bateis no vazio. Repetimos: o Espiritismo nem se dirige a vós nem aos que estão convosco; não os vai buscar e dizer-lhes: deixai a vossa religião e segui-me; sereis danados se não o fizerdes. Não; ele é mais tolerante que isso e deixa a cada um a liberdade de consciência. Como já dissemos, ele se dirige à massa inumerável dos incrédulos, aos que duvidam e aos indiferentes; estes não estão convosco e vossas censuras não os podem atingir. Eles vinham a vós, mas os repelíeis. Quanta inabilidade! Se alguns dos vossos os seguem, é que vossos argumentos não são bastante fortes para os reter e não é com rigor que o conseguireis. O Espiritismo agrada porque não se impõe e é aceito pela vontade e o livre-exame. Nisto ele é de nossa época. Agrada pela doçura, pelas consolações que prodigaliza nas adversidades, pela fé inabalável que dá no futuro, na bondade e na misericórdia de Deus. Além disso, ele se apoia em fatos patentes, materiais, irrecusáveis, que desafiam toda negação. Eis o segredo de sua tão rápida propagação. Que lhe opondes? Sempre a danação eterna, expediente ruim para os tempos que correm; depois a deturpação de suas doutrinas: vós o acusais de pregar o aborto,, o adultério e todos os crimes. A quem pensais impor isto? Não aos espíritas, certamente. Aos que não o conhecem? Mas nesse número muitos querem saber o que é essa abominável doutrina; leem, e vendo que ela diz exatamente o contrário do que lhe atribuem, vos deixam para a seguir. E isto sem que ele os vá procurar.

A posição, bem o sei, é embaraçosa: Se falamos contra o Espiritismo – dizeis – recrutamos-lhe partidários; se nos calamos, ele marcha sozinho. Que fazer então? Outrora se dizia: Deixai passar a justiça do rei; agora é preciso dizer: Deixemos passar a justiça de Deus.

(Continua no próximo número)


7. ALGUMAS REFUTAÇÕES.

(2° artigo. – Ver o número de maio.) [Revista de junho de 1863.]

Toda ideia nova encontra forçosamente oposição, por parte daqueles cujas opiniões e interesses contraria. Julgam alguns que a Igreja está comprometida – pensamos que não, mas nossa opinião não faz lei – razão por que nos atacam em seu nome com um furor ao qual só faltam as grandes execuções da Idade Média. Os sermões, as instruções pastorais lançam raios em todas as direções; as brochuras e artigos de jornais chovem em grande quantidade, na maioria com um cinismo de expressão pouquíssimo evangélico. Em vários deles é um raio que toca o frenesi. Por que, então, essa exibição de força e tanta cólera? Porque dizemos que Deus perdoa à criatura que se arrepende e que as penas só seriam eternas para aquelas que jamais se arrependessem, e porque proclamamos a bondade e a clemência de Deus, somos heréticos votados à execração e a sociedade está perdida. Apontam-nos como perturbadores; desafiam a autoridade a nos perseguir em nome da moral e da ordem pública; alegam que aquela não cumpre o seu dever deixando-nos tranquilos!

Aqui se apresenta um problema interessante. Pergunta-se por que essa violência contra o Espiritismo, e não contra tantas outras teorias filosóficas ou religiosas muito menos ortodoxas? A Igreja fulminou o materialismo, que tudo nega, como o faz contra o Espiritismo, que se limita à interpretação de alguns dogmas? Esses dogmas e muitos outros não foram tantas vezes negados, discutidos, polemizados numa porção de escritos que ela deixa passar despercebidos? Os princípios fundamentais da fé – Deus, a alma e a imortalidade – não foram publicamente atacados sem que ela se perturbasse? Jamais o saint-simonismo, o fourierismo, a própria Igreja do padre Chatel levantaram tantas cóleras, sem falar de outras seitas menos conhecidas, tais como os fusionistas, cujo chefe acaba de morrer, que têm um culto, seu jornal e não admitem a divindade do Cristo; os católicos apostólicos, que não reconhecem o papa, que têm seus padres e bispos casados, suas igrejas em Paris e nas províncias, onde batizam, casam e promovem cerimônias fúnebres. Por que, então, o Espiritismo, que não tem culto nem igreja, e cujos padres só existem na imaginação, levanta tanta animosidade? Coisa bizarra! o partido religioso e o partido materialista, que são a negação um do outro, dão-se as mãos para nos pulverizar, segundo dizem. Realmente o espírito humano apresenta caprichos singulares quando enceguecido pela paixão, e a história do Espiritismo terá coisas divertidas para registrar.


8. – A reposta está por inteiro nesta conclusão da brochura do Rev. Pe. Nampon: “Em geral nada é mais abjeto, mais degradante, mais vazio de fundo e de atrativo na forma que tais publicações, cujo sucesso fabuloso é um dos sintomas mais alarmantes de nossa época. Destruí-os, pois, e nada perdereis com isso. Com o dinheiro gasto em Lyon para essas inépcias, facilmente se teriam criado mais leitos nos hospitais de alienados, superlotados desde a invasão do Espiritismo. E que faremos dessas brochuras perniciosas? Faremos o mesmo que fez o grande apóstolo em Éfeso; e assim agindo conservaremos em nosso meio o império da razão e da fé, preservando as vítimas dessas lamentáveis ilusões de uma porção de decepções na vida presente e das chamas da eternidade infeliz.”


9. – Esse sucesso fabuloso é que confunde os nossos adversários. Eles não podem compreender a inutilidade de tudo quanto fazem para travar essa ideia que passa por cima de suas ciladas, endireita-se sob os seus golpes e prossegue sua marcha ascendente sem se preocupar com as pedras que lhe atiram. Isto é um fato indubitável e constatado muitas vezes pelos adversários desta ou daquela categoria, em suas prédicas e publicações. Todos deploram o progresso incrível dessa epidemia, que ataca até os homens de ciência, os médicos e os magistrados. Na verdade é preciso voltar do Texas para dizer que o Espiritismo está morto e ninguém mais fala dele. (Vide a Revista de fevereiro de 1863.)

Que fazemos para triunfar? Vamos pregar o Espiritismo nas praças? Convocamos o público às nossas reuniões? Temos missionários de propaganda? Contamos com o apoio da imprensa? Temos, enfim, todos os meios de ação, ostensivos e secretos, que possuís e usais com tanta prodigalidade? Não; para recrutar partidários temos mil vezes menos trabalho do que vós para os desviar. Contentamo-nos em dizer: “Lede; e se isto vos convém, voltai a nós.” Fazemos mais, dizendo: “Lede os prós e os contras e comparai.” Respondemos aos vossos ataques sem fel sem animosidade, sem acrimônia, porque não temos cólera. Longe de nos lamentarmos da vossa, nós a aplaudimos, porque ela serve à nossa causa. Eis entre milhares uma prova da força persuasiva dos argumentos dos nossos adversários. Um senhor que acaba de escrever à Sociedade de Paris, pedindo para dela fazer parte, assim começa sua carta: “A leitura de: A questão do Sobrenatural, os mortos e os vivos, do Padre Matignon; A questão dos Espíritos, do Sr. de Mirville; O Espírito batedor, do Dr. Bronson, e, finalmente, diversos artigos contra o Espiritismo, não fizeram senão que eu aderisse completamente à doutrina exposta em O Livro dos Espíritos e me deram o mais vivo desejo de fazer parte da Sociedade Espírita de Paris, para poder continuar o estudo do Espiritismo de maneira mais seguida e mais proveitosa.”


10. – Por vezes a paixão cega, a ponto de fazer cometer singulares inconsequências. Na passagem citada acima, o Rev. Pe. Nampon diz que “nada é mais vazio de atrativo que essas publicações, cujo sucesso fabuloso, etc.” Não percebe ele que essas duas proposições se destroem reciprocamente; uma coisa sem atrativo não poderia ter nenhum sucesso, porquanto só o terá com a condição de ter atrativo; com mais forte razão quando o sucesso é fabuloso.

Acrescenta que com o dinheiro gasto em Lyon com essas inépcias, facilmente teriam sido criados mais leitos nos hospícios de alienados daquela cidade, superlotados desde a invasão do Espiritismo. É verdade que seriam precisos trinta a quarenta mil leitos, só em Lyon, já que todos os espíritas são loucos. Por outro lado, visto que são inépcias, nenhum valor possuem. Por que, então, lhes dar as honras de tantos sermões, pastorais e brochuras? Quanto à questão do emprego de dinheiro, sabemos que em Lyon muita gente, por certo animada de maus sentimentos, havia dito que os dois milhões fornecidos por esta cidade aos cofres de São Pedro teriam dado mais pão a muitos operários infelizes durante o inverno, ao passo que a leitura dos livros espíritas lhes deu coragem e resignação para suportar sua miséria sem revolta.

O Pe. Nampon não é feliz em suas citações. Numa passagem de O Livro dos Espíritos ele nos faz dizer: “Há tanta distância entre a alma do animal e a alma do homem, quanto entre a alma do homem e a alma de Deus.” (Nº 597). Nós dissemos: …quanto entre a alma do homem e Deus, o que é muito diferente. A alma de Deus implica uma espécie de assimilação entre Deus e as criaturas corpóreas. Compreende-se a omissão de uma palavra por inadvertência ou erro tipográfico; mas não se acrescenta uma palavra sem intenção. Por que essa adição, que desnatura o sentido do pensamento, senão para dar um tom materialista aos olhos dos que se contentarem em ler a citação sem a verificar no original? Um livro que apareceu pouco antes de O Livro dos Espíritos, e que contém toda uma teoria cosmogônica, faz de Deus um ser muito diversamente material, porque composto de todos os globos do Universo, moléculas do ser universal, que tem um estômago, come e digere, e do qual os homens são o mau produto de sua digestão; contudo, nem uma palavra foi dita para o combater: todas as cóleras se concentraram sobre O Livro dos Espíritos. Será, talvez, porque em seis anos chegou à décima edição e espalhou-se em todos os países do mundo?

Não se contentam em criticar: truncam e desnaturam as máximas para aumentar o horror que deve inspirar essa abominável doutrina e nos pôr em contradição conosco mesmo. É assim que diz o Pe. Nampon, citando uma frase da introdução de O Livro dos Espíritos, página 30III: “Certas pessoas, dizei vós mesmos, entregando-se a esses estudos perderam a razão.” Damos assim a impressão de reconhecer que o Espiritismo conduz à loucura, ao passo que, lendo todo o parágrafo XV, a acusação cai precisamente sobre aqueles que a lançam. É assim que, tomando um trecho da frase de um autor, poderíamos levá-lo à forca. Os mais sagrados autores não escapariam a essa dissecção. É com tal sistema que certos críticos esperam mudar as tendências do Espiritismo e fazer crer que ele preconiza o aborto, o adultério, o suicídio, quando demonstra peremptoriamente a sua criminalidade e as funestas consequências para o futuro.


11. – O Pe. Nampon chega mesmo a apropriar-se de citações feitas com o objetivo de refutar certas ideias. “O autor – diz ele – às vezes chama Jesus-Cristo Homem-Deus; mas alhures (O Livro dos Médiuns, página 368), num diálogo com um médium que, tomando o nome de Jesus lhe dizia: “Eu não sou Deus, mas sou seu filho”, logo replica: “Então sois Jesus? Sim – acrescenta o Pe. Nampon – Jesus é chamado Filho de Deus, mas na acepção ariana, não sendo, portanto, consubstancial com o Pai.”

Antes de mais, não era o médium que se fazia passar por Jesus, mas um Espírito, o que é muito diferente. A citação é feita precisamente para mostrar a velhacaria de certos Espíritos e prevenir os médiuns contra seus subterfúgios. Pretendeis que o Espiritismo negue a divindade do Cristo ou vistes tal proposição formulada em princípio? É, dizeis vós, a consequência de toda a doutrina. Ah! se entrarmos no terreno das interpretações, poderemos ir mais longe do que quereis. Se disséssemos, por exemplo, que o Cristo não tinha chegado à perfeição, que teve necessidade das provas da vida corpórea para progredir; que a sua paixão lhe tinha sido necessária para subir em glória, teríeis razão, porque dele não faríamos sequer um Espírito puro, enviado à Terra com missão divina, mas um simples mortal, a quem o sofrimento era necessário, a fim de progredir. Onde encontrais que tenhamos dito isto? Pois bem! aquilo que nunca dissemos, que jamais diremos, sois vós que dizeis.

Ultimamente temos visto, no parlatório de uma casa religiosa de Paris, a seguinte inscrição, impressa em letras grandes e afixada para a instrução de todos: “Foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória, e não foi senão depois de ter bebido a longos sorvos na torrente da tribulação e do sofrimento que foi elevado ao mais alto dos céus.” (Salmo 110, v. 7.) É o comentário deste versículo, cujo texto é: “Ele beberá no caminho a água da torrente e é por ali que erguerá a cabeça (De torrente in via bibet: propterea exultabit caput [Psalmorum])”. Se, pois, “foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória; se não pôde ser elevado ao mais alto dos céus senão pelas tribulações e pelo sofrimento”, é que antes nem estava na glória nem no mais alto dos céus; por conseguinte não era Deus. Seus sofrimentos, pois, não aproveitavam somente à Humanidade, desde que necessários ao seu próprio adiantamento. Dizer que o Cristo tinha necessidade de sofrer para elevar-se é dizer que não era perfeito antes de sua vinda. Não conhecemos protesto mais enérgico contra a sua divindade. Se tal é o sentido do versículo do salmo que se canta nas vésperas todos os domingos cantam a não divindade do Cristo.

Com o sistema de interpretação vai-se muito longe, dizíamos nós. Se quiséssemos citar a de alguns concílios sobre este outro versículo: “O Senhor está a vossa direita; ele destruirá os reis no dia de sua cólera”, seria fácil provar que daí foi tirada a justificação do regicídio.


12. – Diz ainda o Pe. Nampon: “A vida muda inteiramente de aspecto (com o Espiritismo). A imortalidade da alma reduz-se a uma permanência material, sem identidade moral, sem consciência do passado.”

É um erro. O Espiritismo jamais disse que a alma ficasse sem consciência do passado. Ela perde momentaneamente a sua lembrança durante a vida corpórea, mas “quando o Espírito volta à vida anterior (a vida espírita), diante dos olhos se lhe estende toda a sua vida pretérita. Vê as faltas que cometeu e que deram causa ao seu sofrer, assim como de que modo as teria evitado. Reconhece justa a situação em que se acha e busca então uma existência capaz de reparar a que acaba de transcorrer.” (O Livro dos Espíritos, nº 393.) Uma vez que há lembrança do passado, consciência do ser, há então, identidade moral; desde que a vida espiritual é a vida normal do Espírito, que as existências corpóreas não passam de pontos na vida espírita, a imortalidade não se reduz a uma permanência material. Como se vê, o Espiritismo diz exatamente o contrário. Desnaturando-o assim, o Pe. Nampon não tem a desculpa da ignorância, porque suas citações provam que leu, mas se equivoca ao truncar citações e ao fazê-lo dizer o contrário do que diz.


13. – O Espiritismo é acusado por alguns de estribar-se no mais grosseiro materialismo, porque admite o perispírito, que tem propriedades materiais. É ainda uma falsa consequência, tirada de um princípio referido incompletamente. O Espiritismo jamais confundiu a alma com o perispírito, que não passa de um envoltório, como o corpo é um outro. Tivesse ela dez envoltórios e isto nada tiraria à sua essência imaterial. Já o mesmo não se dá com a doutrina adotada pelo concílio de Viena, no Dauphiné, na sua segunda sessão, em 3 de abril de 1312. Segundo essa doutrina, “a autoridade da Igreja ordena crer que a alma não passa da forma substancial do corpo; que não há ideias inatas e declara heréticos os que negarem a materialidade da alma.” Raul Fornier, professor de Direito ensina positivamente a mesma coisa em seus discursos acadêmicos, impressos em Paris em 1619, com aprovação e elogios de vários doutores em teologia.

É provável que o concílio, baseando-se nos fatos de numerosas manifestações espíritas visíveis e tangíveis, referidas nas Escrituras, manifestações que não deixam de ser materiais, pois ferem os sentidos, tenha confundido a alma com o envoltório fluídico ou perispírito, cuja distinção o Espiritismo demonstra. Sua doutrina é, pois, menos materialista que a do concílio.


14. – “Mas abordemos sem hesitar o homem da França, que é o mais adiantado nesses estudos. Para constatar a identidade do Espírito que fala, é preciso, diz o Sr. Allan Kardec, estudar sua linguagem. Pois bem! Que seja! Conhecemos por seus escritos autênticos o pensamento certo e, conseguintemente, a linguagem de São João, São Paulo, Santo Agostinho, Fénelon, etc. Como, pois, em vossos livros, ousais atribuir a esses grandes gênios pensamentos e sentimentos inteiramente contrários aos que ficaram para sempre consignados em suas obras?”

Assim, admitis que essas personagens em nada se enganaram; que tudo quanto escreveram é a expressão da verdade; que se hoje voltassem corporalmente deveriam ensinar tudo o que ensinaram outrora; que, vindo como Espírito, não devem renegar nenhuma de suas palavras. Entretanto, Santo Agostinho olhava como heresia a crença na redondeza da Terra e nos antípodas. Sustentava a existência dos íncubos e súcubos e acreditava na procriação pelo comércio dos homens com os Espíritos. Credes que a tal respeito e como Espírito não possa pensar de modo diverso do que pensava como homem e que hoje professasse essas doutrinas? Se suas ideias houveram de modificar-se em certos pontos, podem perfeitamente ter sido mudadas em outros. Se se enganou, logo ele, gênio incontestavelmente superior, por que vós mesmos não vos enganaríeis? Para respeitar a ortodoxia será preciso negar a Agostinho o direito, melhor dizendo, o mérito de retratar-se de seus erros?


15. – “Atribuís a São Luís esta sentença ridícula, sobretudo em sua boca, contra a eternidade das penas: Supor Espíritos incuráveis é negar a lei do progresso.” (O Livro dos Espíritos, nº 1007.)

Não é assim que ela é formulada. À pergunta: Haverá Espíritos que nunca se arrependam? respondeu São Luís: “Há os de arrependimento muito tardio; porém, pretender-se que nunca se melhorarão fora negar a lei do progresso e dizer que a criança não pode tornar-se homem.” A primeira forma poderia parecer ridícula. Por que, então, sempre truncar e desnaturar as frases? A quem pensam enganar? aos que apenas lerem esses comentários inexatos? Mas seu número é muito pequeno, perto dos que querem conhecer o fundo das coisas sobre as quais vós mesmos chamais a atenção. Ora, a comparação não pode senão favorecer o Espiritismo.


Nota. – Para a edificação de todos, recomendamos a leitura da brochura intitulada: Do Espiritismo, pelo Rev. Pe. Nampon [Adrien Nampon], da Companhia de Jesus, Livraria Girard et Josserand, Lyon, place Bellecour, nº 30; Paris, rue Cassette, nº 5. Rogamos também ler em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns os textos completos, citados resumidamente ou deturpados na brochura acima referida. [Vide ainda do Pe. Nampon Catholic doctrine as defined by the Council of Trent - Google Books.]









Maio

1. – De vários pontos nos assinalam novas prédicas contra o Espiritismo, todas no mesmo espírito daquelas de que temos falado; e como não passam, quase sempre, de variantes do mesmo pensamento, em termos mais ou menos escolhidos, julgamos supérfluo fazer-lhes a análise. Limitar-nos-emos a destacar certas passagens, acompanhando-as de algumas reflexões.


“Meus irmãos, é um cristão que fala a cristãos e, nessa qualidade, temos o direito de nos admirarmos, vendo o Espiritismo crescer entre nós. O que é o Espiritismo, eu vos pergunto, senão um mosaico de horrores que só a loucura pode justificar?”

A isto nada temos a dizer, senão que todas as prédicas feitas nesta cidade foram incapazes de deter o crescimento do Espiritismo, como bem constata o orador; portanto, os argumentos que lhe opõem têm menos autoridade que os seus; e, se as prédicas emanam de Deus e o Espiritismo procede do diabo, é que este é mais poderoso que Deus. Nada mais brutal que um fato. Ora, a propagação do Espiritismo, em consequência mesma das prédicas, é um fato notório, e por certo as pessoas julgam que os argumentos por ele dados são mais convincentes que os dos adversários. É uma trama de horrores. Seja. Mas haveis de concordar que se esses Espíritos viessem abraçar todas as vossas ideias, em vez de demônios, deles faríeis santos; e, longe de condenar as evocações, vós as encorajaríeis.


2. – “Nosso século não respeita mais nada; nem mesmo a cinza dos túmulos é poupada, pois insensatos ousam chamar os mortos para conversar com eles. Infelizmente é assim. Eis até onde chegou esse pretenso século das luzes: conversar com as almas do outro mundo.”

Conversar com os mortos não é privilégio deste século, já que a história de todos os povos comprova que isto tem ocorrido em todos os tempos. A única diferença é que hoje isto é feito em toda parte sem os acessórios supersticiosos com que outrora cercavam as evocações, e com um sentimento mais religioso e mais respeitoso. De duas uma: ou a coisa é possível, ou não é. Se não é, é uma crença ilusória; tal como acreditar na fatalidade da sexta-feira, na influência do sal derramado. Não vemos, pois, que haja tantos horrores e que sé falte com o respeito conversando com seres que já não pertencem a este mundo. Se os mortos vêm conversar conosco, só pode ser com a permissão de Deus, a menos que se pretenda que venham sem essa permissão, ou contra a sua vontade, o que implicaria que Deus não se importa com isso ou que os evocadores são mais poderosos que Deus. Mas notai as contradições: de um lado dizeis que só o diabo se comunica e, de outro, que se perturbam as cinzas dos mortos, chamando-os. Se é o diabo, não são os mortos; portanto, não são perturbados nem se lhes falta com o respeito. Se são os mortos, então não é o diabo. Seria preciso, ao menos, que vos pusésseis de acordo sobre este ponto capital. Admitindo que sejam os mortos, reconhecemos que haveria profanação em chamá-los levianamente, por razões fúteis, sobretudo para fazer disto profissão lucrativa. Condenamos todas essas coisas e não nos responsabilizamos pelos que se afastam dos princípios do Espiritismo sério. Não assumais responsabilidade pelos falsos devotos, que da religião só têm a máscara, que pregam o que não praticam ou que especulam com as coisas santas. Certamente evocações feitas em condições burlescas atribuídas a um eloquente orador que citamos mais adiante, seriam um sacrilégio; mas, graças a Deus, não nos envolvemos com isso e não cremos que a do Sr. Viennois, igualmente referida adiante [v. Sr. Philibert 5iennois], esteja neste caso.


3. – “Eu mesmo testemunhei estes fatos e ouvi pregar a moral, a caridade; é verdade. Mas sobre que se apoiam esta moral e esta caridade? Ah! sobre nada, porquanto não se pode chamar moral uma doutrina que nega as penas eternas.”

Se essa moral leva a fazer o bem sem o temor das penas eternas, é mais meritória ainda. Outrora se julgava impossível manter a disciplina na escola sem o medo da palmatória. Eram melhores os estudantes? Não; hoje ela não é mais usada e eles não são piores: ao contrário. Logo, o regime atual é preferível.

Julga-se a qualidade de um meio pelos seus efeitos. Aliás, a quem se dirige essa moral? Exatamente aos que não acreditam nas penas eternas, e a quem damos um freio, que aceitam, ao passo que não lhos dais, uma vez que não aceitam o vosso. Impedimos acreditem na danação absoluta aqueles a quem isto convém? Absolutamente. Ainda uma vez, não nos dirigimos aos que têm fé e aos quais esta basta, mas aos que não a têm ou duvidam. Preferiríeis que eles ficassem na incredulidade absoluta? Seria pouco caridoso. Temeis que vos tomem ovelhas? É que não tendes muita confiança no poder de vossos meios para retê-las; é que receais que elas sejam atraídas pela erva tenra do perdão e da misericórdia divina. Acreditais, então, que as que vacilam na incerteza preferirão as labaredas do inferno? Por outro lado, quem deve estar mais convencido das penas eternas, senão os que são alimentados no seio da Igreja? Ora, dizei por que essa perspectiva não deteve todos os escândalos, todas as atrocidades, todas as prevaricações contra as leis divinas e humanas, que pululam na História e se reproduzem incessantemente em nossos dias? São crimes ou não? Se, pois, os que fazem profissão desta crença não são tolhidos em suas ações, como querer que o sejam os que não creem? Não; ao homem esclarecido de nossos dias é preciso outro freio: aquele que sua razão admite. Ora, a crença nas penas eternas, talvez útil em outras épocas, está superada; extingue-se dia a dia e, por mais que fizerdes, não dareis vida a um cadáver nem fareis reviver os usos, costumes e ideias da Idade Média. Se a Igreja Católica julga sua segurança comprometida pelo desaparecimento dessa crença, devemos lamentá-la por repousar sobre base tão frágil, porque, se algo a atormenta, este é o dogma das penas eternas.


4. – “Assim, apelo à moralidade de todas as almas honestas; apelo aos magistrados, pois eles são responsáveis por todo o mal que semelhante heresia atrai sobre nossas cabeças.”

Não sabíamos que na França os magistrados fossem encarregados de instaurar processos contra as heresias, pois se entre eles há católicos, também há protestantes e judeus; assim, os próprios heréticos se incumbiriam de sua perseguição e condenação. E os há entre os funcionários da mais alta categoria.


5. – “Sim, os espíritas – e não receio declarar aqui abertamente – não apenas são passíveis da polícia correcional e da Corte Imperial, mas, também – prestai bem atenção – do tribunal do júri, porque são falsários; assinam comunicações em nome de pessoas que certamente jamais as teriam assinado em vida, pessoas que hoje eles tanto fazem falar.”

Os espíritas estão realmente muito contentes, porque Confúcio, Sócrates, Santo Agostinho, São Vicente de Paulo, Fénelon e outros não lhes podem mover processos por crimes de falsificação de escrita particular. Bem que eu sonho com isso: eles teriam uma tábua de salvação precisamente nos tribunais do júri a cuja jurisdição estão sujeitos, pois ali os jurados se pronunciam segundo a sua consciência. Ora, entre eles há também protestantes e judeus; há, até – coisa abominável! – filósofos, incrédulos, horríveis livres-pensadores que, à vista de nossas detestáveis leis modernas, se acham em toda parte. Assim, se nos acusam de fazer Santo Agostinho dizer algo de heterodoxo, sempre encontraremos jurados que nos absolvam. Ó perversidade do século! dizer que em nossos dias Voltaire, Diderot, Lutero, Calvino, João Huss, Ário teriam sido jurados por direito de nascimento, que poderiam ter sido juízes perfeitos, ministro da justiça e mesmo dos cultos! Vede-os, esses celerados infernais, a se pronunciarem sobre uma questão de heresia! Porque, para condenar a assinatura de Fénelon, posta abaixo de uma suposta comunicação herética, é preciso julgar a questão da ortodoxia; e quem será competente no júri?


6. – “Entretanto, seria tão fácil interditar semelhante impiedade! O que se precisaria fazer? quase nada; mesmo sem lhes fazer a honra da capa do comissário, podeis colocar um sargento à entrada de cada grupo para dizer: não entreis. Pinto o mal e descrevo o remédio, apenas isto, pois eu os dispenso da Inquisição.”

Muito obrigado, mas não há grande mérito em oferecer aquilo que não se tem. Infelizmente, para vós, não podeis contar com a Inquisição, sem o que seria duvidoso que nos liberásseis dela. O que não dizeis aos magistrados, visando à interdição da entrada dos templos judeus e protestantes, onde se pregam publicamente dogmas que não são os vossos? Quanto aos espíritas, não têm templos nem sacerdotes, mas – o que para vós é a mesma coisa – grupos, à entrada dos quais basta pôr um sargento para que tudo fique dito. Realmente é muito simples. Mas esqueceis que os Espíritos ignoram qualquer proibição e entram em toda parte sem pedir permissão, mesmo em vossa casa, pois os tendes ao vosso lado, escutando-vos, sem que o suspeiteis e, ademais, vos falando ao ouvido. Trazei à memória as vossas lembranças e vereis que tivestes mais de uma manifestação, mesmo sem a haverdes buscado.

Pareceis ignorar uma coisa que é bom saibais. Os grupos espíritas não são absolutamente necessários; são simples reuniões onde se sentem felizes por encontrar-se pessoas que pensam do mesmo modo. E a prova disto é que hoje, na França, há mais de 600.000 espíritas, 99% dos quais não fazem parte de nenhum grupo e neles jamais puseram os pés; que eles não existem numa porção de cidades; que nem os grupos nem as sociedades abrem suas portas ao público para pregar suas doutrinas aos transeuntes; que o Espiritismo se prega por si mesmo e pela força das coisas, porque responde a uma necessidade da época; que as ideias espíritas estão no ar e são aspiradas por todos os poros da inteligência; que o contágio está no exemplo dos que são felizes com essas crenças e que são encontrados por toda parte, na sociedade, sem que se precise procurá-los nos grupos. Assim, não são os grupos que fazem a propaganda, pois não apelam ao primeiro que apareça; ela é feita pouco a pouco, de indivíduo a indivíduo. Se, portanto, admitíssemos a interdição de todas as reuniões, os espíritas ficariam livres para se reunirem em família, como já ocorre em milhares de lugares, sem que o Espiritismo nada sofra com isso; muito ao contrário, pois temos sempre condenado as grandes assembleias, que são mais prejudiciais que úteis; além disso, a intimidade é reconhecida como a condição mais favorável às manifestações. Interditaríeis as reuniões familiares? Colocaríeis um sargento à porta de um salão para vigiar o que se passa à lareira? Isto não se faz na Espanha, nem em Roma, onde há mais espíritas e médiuns do que pensais. Só faltava isso para aumentar ainda mais a importância do Espiritismo.

Admitamos agora a interdição legal dos grupos. Sabeis o que fariam esses espíritas que acusais de semear a desordem? Eles diriam: Respeitamos a lei; dura lex, sed lex [A lei é dura mais é lei]. Vamos dar o exemplo, mostrando que, se pregamos a união, a paz e a concórdia, não é para nos transformarmos em promotores de desordens. As sociedades organizadas não são necessárias à existência do Espiritismo; não há entre elas nenhuma solidariedade material que possa ser quebrada por sua supressão. O que os Espíritos aí ensinam, igualmente ensinam numa conversa particular entre duas pessoas, porque o Espiritismo tem o incrível privilégio de ter o seu foco de ensino por toda parte. Seu sinal de ligação é o amor de Deus e do próximo e, para o pôr em prática, não há necessidade de reuniões oficiais, pois ele tanto se estende sobre os amigos quanto sobre os inimigos. Qualquer um pode dizer o mesmo; e mais de uma vez a autoridade não tem encontrado resistência onde esperava encontrar a maior submissão? Se os espíritas fossem pessoas tão turbulentas e tão pervertidas quanto pretendeis, por que os funcionários encarregados da manutenção da ordem têm menos trabalho nos centros onde eles constituem maioria? Um funcionário chegou a dizer que se todos os seus administrados fossem espíritas, sua repartição podia ser fechada. Por que há menos penas disciplinares entre os militares espíritas?

E, depois, não pensais que atualmente há espíritas em toda parte, de alto a baixo na escala social; que há reuniões e médiuns até em casa daqueles que invocais contra nós. Vede, pois, que o vosso meio é insuficiente; é preciso buscar outro. – Temos a condenação fulminante do púlpito. – Está bem; e vós a usais largamente. Mas não vedes que por toda parte onde lançam raios o número de espíritas aumenta? – Temos a censura da Igreja e a excomunhão. – É melhor; mas ainda uma vez bateis no vazio. Repetimos: o Espiritismo nem se dirige a vós nem aos que estão convosco; não os vai buscar e dizer-lhes: deixai a vossa religião e segui-me; sereis danados se não o fizerdes. Não; ele é mais tolerante que isso e deixa a cada um a liberdade de consciência. Como já dissemos, ele se dirige à massa inumerável dos incrédulos, aos que duvidam e aos indiferentes; estes não estão convosco e vossas censuras não os podem atingir. Eles vinham a vós, mas os repelíeis. Quanta inabilidade! Se alguns dos vossos os seguem, é que vossos argumentos não são bastante fortes para os reter e não é com rigor que o conseguireis. O Espiritismo agrada porque não se impõe e é aceito pela vontade e o livre-exame. Nisto ele é de nossa época. Agrada pela doçura, pelas consolações que prodigaliza nas adversidades, pela fé inabalável que dá no futuro, na bondade e na misericórdia de Deus. Além disso, ele se apoia em fatos patentes, materiais, irrecusáveis, que desafiam toda negação. Eis o segredo de sua tão rápida propagação. Que lhe opondes? Sempre a danação eterna, expediente ruim para os tempos que correm; depois a deturpação de suas doutrinas: vós o acusais de pregar o aborto,, o adultério e todos os crimes. A quem pensais impor isto? Não aos espíritas, certamente. Aos que não o conhecem? Mas nesse número muitos querem saber o que é essa abominável doutrina; leem, e vendo que ela diz exatamente o contrário do que lhe atribuem, vos deixam para a seguir. E isto sem que ele os vá procurar.

A posição, bem o sei, é embaraçosa: Se falamos contra o Espiritismo – dizeis – recrutamos-lhe partidários; se nos calamos, ele marcha sozinho. Que fazer então? Outrora se dizia: Deixai passar a justiça do rei; agora é preciso dizer: Deixemos passar a justiça de Deus.

(Continua no próximo número)


7. ALGUMAS REFUTAÇÕES.

(2° artigo. – Ver o número de maio.) [Revista de junho de 1863.]

Toda ideia nova encontra forçosamente oposição, por parte daqueles cujas opiniões e interesses contraria. Julgam alguns que a Igreja está comprometida – pensamos que não, mas nossa opinião não faz lei – razão por que nos atacam em seu nome com um furor ao qual só faltam as grandes execuções da Idade Média. Os sermões, as instruções pastorais lançam raios em todas as direções; as brochuras e artigos de jornais chovem em grande quantidade, na maioria com um cinismo de expressão pouquíssimo evangélico. Em vários deles é um raio que toca o frenesi. Por que, então, essa exibição de força e tanta cólera? Porque dizemos que Deus perdoa à criatura que se arrepende e que as penas só seriam eternas para aquelas que jamais se arrependessem, e porque proclamamos a bondade e a clemência de Deus, somos heréticos votados à execração e a sociedade está perdida. Apontam-nos como perturbadores; desafiam a autoridade a nos perseguir em nome da moral e da ordem pública; alegam que aquela não cumpre o seu dever deixando-nos tranquilos!

Aqui se apresenta um problema interessante. Pergunta-se por que essa violência contra o Espiritismo, e não contra tantas outras teorias filosóficas ou religiosas muito menos ortodoxas? A Igreja fulminou o materialismo, que tudo nega, como o faz contra o Espiritismo, que se limita à interpretação de alguns dogmas? Esses dogmas e muitos outros não foram tantas vezes negados, discutidos, polemizados numa porção de escritos que ela deixa passar despercebidos? Os princípios fundamentais da fé – Deus, a alma e a imortalidade – não foram publicamente atacados sem que ela se perturbasse? Jamais o saint-simonismo, o fourierismo, a própria Igreja do padre Chatel levantaram tantas cóleras, sem falar de outras seitas menos conhecidas, tais como os fusionistas, cujo chefe acaba de morrer, que têm um culto, seu jornal e não admitem a divindade do Cristo; os católicos apostólicos, que não reconhecem o papa, que têm seus padres e bispos casados, suas igrejas em Paris e nas províncias, onde batizam, casam e promovem cerimônias fúnebres. Por que, então, o Espiritismo, que não tem culto nem igreja, e cujos padres só existem na imaginação, levanta tanta animosidade? Coisa bizarra! o partido religioso e o partido materialista, que são a negação um do outro, dão-se as mãos para nos pulverizar, segundo dizem. Realmente o espírito humano apresenta caprichos singulares quando enceguecido pela paixão, e a história do Espiritismo terá coisas divertidas para registrar.


8. – A reposta está por inteiro nesta conclusão da brochura do Rev. Pe. Nampon: “Em geral nada é mais abjeto, mais degradante, mais vazio de fundo e de atrativo na forma que tais publicações, cujo sucesso fabuloso é um dos sintomas mais alarmantes de nossa época. Destruí-os, pois, e nada perdereis com isso. Com o dinheiro gasto em Lyon para essas inépcias, facilmente se teriam criado mais leitos nos hospitais de alienados, superlotados desde a invasão do Espiritismo. E que faremos dessas brochuras perniciosas? Faremos o mesmo que fez o grande apóstolo em Éfeso; e assim agindo conservaremos em nosso meio o império da razão e da fé, preservando as vítimas dessas lamentáveis ilusões de uma porção de decepções na vida presente e das chamas da eternidade infeliz.”


9. – Esse sucesso fabuloso é que confunde os nossos adversários. Eles não podem compreender a inutilidade de tudo quanto fazem para travar essa ideia que passa por cima de suas ciladas, endireita-se sob os seus golpes e prossegue sua marcha ascendente sem se preocupar com as pedras que lhe atiram. Isto é um fato indubitável e constatado muitas vezes pelos adversários desta ou daquela categoria, em suas prédicas e publicações. Todos deploram o progresso incrível dessa epidemia, que ataca até os homens de ciência, os médicos e os magistrados. Na verdade é preciso voltar do Texas para dizer que o Espiritismo está morto e ninguém mais fala dele. (Vide a Revista de fevereiro de 1863.)

Que fazemos para triunfar? Vamos pregar o Espiritismo nas praças? Convocamos o público às nossas reuniões? Temos missionários de propaganda? Contamos com o apoio da imprensa? Temos, enfim, todos os meios de ação, ostensivos e secretos, que possuís e usais com tanta prodigalidade? Não; para recrutar partidários temos mil vezes menos trabalho do que vós para os desviar. Contentamo-nos em dizer: “Lede; e se isto vos convém, voltai a nós.” Fazemos mais, dizendo: “Lede os prós e os contras e comparai.” Respondemos aos vossos ataques sem fel sem animosidade, sem acrimônia, porque não temos cólera. Longe de nos lamentarmos da vossa, nós a aplaudimos, porque ela serve à nossa causa. Eis entre milhares uma prova da força persuasiva dos argumentos dos nossos adversários. Um senhor que acaba de escrever à Sociedade de Paris, pedindo para dela fazer parte, assim começa sua carta: “A leitura de: A questão do Sobrenatural, os mortos e os vivos, do Padre Matignon; A questão dos Espíritos, do Sr. de Mirville; O Espírito batedor, do Dr. Bronson, e, finalmente, diversos artigos contra o Espiritismo, não fizeram senão que eu aderisse completamente à doutrina exposta em O Livro dos Espíritos e me deram o mais vivo desejo de fazer parte da Sociedade Espírita de Paris, para poder continuar o estudo do Espiritismo de maneira mais seguida e mais proveitosa.”


10. – Por vezes a paixão cega, a ponto de fazer cometer singulares inconsequências. Na passagem citada acima, o Rev. Pe. Nampon diz que “nada é mais vazio de atrativo que essas publicações, cujo sucesso fabuloso, etc.” Não percebe ele que essas duas proposições se destroem reciprocamente; uma coisa sem atrativo não poderia ter nenhum sucesso, porquanto só o terá com a condição de ter atrativo; com mais forte razão quando o sucesso é fabuloso.

Acrescenta que com o dinheiro gasto em Lyon com essas inépcias, facilmente teriam sido criados mais leitos nos hospícios de alienados daquela cidade, superlotados desde a invasão do Espiritismo. É verdade que seriam precisos trinta a quarenta mil leitos, só em Lyon, já que todos os espíritas são loucos. Por outro lado, visto que são inépcias, nenhum valor possuem. Por que, então, lhes dar as honras de tantos sermões, pastorais e brochuras? Quanto à questão do emprego de dinheiro, sabemos que em Lyon muita gente, por certo animada de maus sentimentos, havia dito que os dois milhões fornecidos por esta cidade aos cofres de São Pedro teriam dado mais pão a muitos operários infelizes durante o inverno, ao passo que a leitura dos livros espíritas lhes deu coragem e resignação para suportar sua miséria sem revolta.

O Pe. Nampon não é feliz em suas citações. Numa passagem de O Livro dos Espíritos ele nos faz dizer: “Há tanta distância entre a alma do animal e a alma do homem, quanto entre a alma do homem e a alma de Deus.” (Nº 597). Nós dissemos: …quanto entre a alma do homem e Deus, o que é muito diferente. A alma de Deus implica uma espécie de assimilação entre Deus e as criaturas corpóreas. Compreende-se a omissão de uma palavra por inadvertência ou erro tipográfico; mas não se acrescenta uma palavra sem intenção. Por que essa adição, que desnatura o sentido do pensamento, senão para dar um tom materialista aos olhos dos que se contentarem em ler a citação sem a verificar no original? Um livro que apareceu pouco antes de O Livro dos Espíritos, e que contém toda uma teoria cosmogônica, faz de Deus um ser muito diversamente material, porque composto de todos os globos do Universo, moléculas do ser universal, que tem um estômago, come e digere, e do qual os homens são o mau produto de sua digestão; contudo, nem uma palavra foi dita para o combater: todas as cóleras se concentraram sobre O Livro dos Espíritos. Será, talvez, porque em seis anos chegou à décima edição e espalhou-se em todos os países do mundo?

Não se contentam em criticar: truncam e desnaturam as máximas para aumentar o horror que deve inspirar essa abominável doutrina e nos pôr em contradição conosco mesmo. É assim que diz o Pe. Nampon, citando uma frase da introdução de O Livro dos Espíritos, página 30III: “Certas pessoas, dizei vós mesmos, entregando-se a esses estudos perderam a razão.” Damos assim a impressão de reconhecer que o Espiritismo conduz à loucura, ao passo que, lendo todo o parágrafo XV, a acusação cai precisamente sobre aqueles que a lançam. É assim que, tomando um trecho da frase de um autor, poderíamos levá-lo à forca. Os mais sagrados autores não escapariam a essa dissecção. É com tal sistema que certos críticos esperam mudar as tendências do Espiritismo e fazer crer que ele preconiza o aborto, o adultério, o suicídio, quando demonstra peremptoriamente a sua criminalidade e as funestas consequências para o futuro.


11. – O Pe. Nampon chega mesmo a apropriar-se de citações feitas com o objetivo de refutar certas ideias. “O autor – diz ele – às vezes chama Jesus-Cristo Homem-Deus; mas alhures (O Livro dos Médiuns, página 368), num diálogo com um médium que, tomando o nome de Jesus lhe dizia: “Eu não sou Deus, mas sou seu filho”, logo replica: “Então sois Jesus? Sim – acrescenta o Pe. Nampon – Jesus é chamado Filho de Deus, mas na acepção ariana, não sendo, portanto, consubstancial com o Pai.”

Antes de mais, não era o médium que se fazia passar por Jesus, mas um Espírito, o que é muito diferente. A citação é feita precisamente para mostrar a velhacaria de certos Espíritos e prevenir os médiuns contra seus subterfúgios. Pretendeis que o Espiritismo negue a divindade do Cristo ou vistes tal proposição formulada em princípio? É, dizeis vós, a consequência de toda a doutrina. Ah! se entrarmos no terreno das interpretações, poderemos ir mais longe do que quereis. Se disséssemos, por exemplo, que o Cristo não tinha chegado à perfeição, que teve necessidade das provas da vida corpórea para progredir; que a sua paixão lhe tinha sido necessária para subir em glória, teríeis razão, porque dele não faríamos sequer um Espírito puro, enviado à Terra com missão divina, mas um simples mortal, a quem o sofrimento era necessário, a fim de progredir. Onde encontrais que tenhamos dito isto? Pois bem! aquilo que nunca dissemos, que jamais diremos, sois vós que dizeis.

Ultimamente temos visto, no parlatório de uma casa religiosa de Paris, a seguinte inscrição, impressa em letras grandes e afixada para a instrução de todos: “Foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória, e não foi senão depois de ter bebido a longos sorvos na torrente da tribulação e do sofrimento que foi elevado ao mais alto dos céus.” (Salmo 110, v. 7.) É o comentário deste versículo, cujo texto é: “Ele beberá no caminho a água da torrente e é por ali que erguerá a cabeça (De torrente in via bibet: propterea exultabit caput [Psalmorum])”. Se, pois, “foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória; se não pôde ser elevado ao mais alto dos céus senão pelas tribulações e pelo sofrimento”, é que antes nem estava na glória nem no mais alto dos céus; por conseguinte não era Deus. Seus sofrimentos, pois, não aproveitavam somente à Humanidade, desde que necessários ao seu próprio adiantamento. Dizer que o Cristo tinha necessidade de sofrer para elevar-se é dizer que não era perfeito antes de sua vinda. Não conhecemos protesto mais enérgico contra a sua divindade. Se tal é o sentido do versículo do salmo que se canta nas vésperas todos os domingos cantam a não divindade do Cristo.

Com o sistema de interpretação vai-se muito longe, dizíamos nós. Se quiséssemos citar a de alguns concílios sobre este outro versículo: “O Senhor está a vossa direita; ele destruirá os reis no dia de sua cólera”, seria fácil provar que daí foi tirada a justificação do regicídio.


12. – Diz ainda o Pe. Nampon: “A vida muda inteiramente de aspecto (com o Espiritismo). A imortalidade da alma reduz-se a uma permanência material, sem identidade moral, sem consciência do passado.”

É um erro. O Espiritismo jamais disse que a alma ficasse sem consciência do passado. Ela perde momentaneamente a sua lembrança durante a vida corpórea, mas “quando o Espírito volta à vida anterior (a vida espírita), diante dos olhos se lhe estende toda a sua vida pretérita. Vê as faltas que cometeu e que deram causa ao seu sofrer, assim como de que modo as teria evitado. Reconhece justa a situação em que se acha e busca então uma existência capaz de reparar a que acaba de transcorrer.” (O Livro dos Espíritos, nº 393.) Uma vez que há lembrança do passado, consciência do ser, há então, identidade moral; desde que a vida espiritual é a vida normal do Espírito, que as existências corpóreas não passam de pontos na vida espírita, a imortalidade não se reduz a uma permanência material. Como se vê, o Espiritismo diz exatamente o contrário. Desnaturando-o assim, o Pe. Nampon não tem a desculpa da ignorância, porque suas citações provam que leu, mas se equivoca ao truncar citações e ao fazê-lo dizer o contrário do que diz.


13. – O Espiritismo é acusado por alguns de estribar-se no mais grosseiro materialismo, porque admite o perispírito, que tem propriedades materiais. É ainda uma falsa consequência, tirada de um princípio referido incompletamente. O Espiritismo jamais confundiu a alma com o perispírito, que não passa de um envoltório, como o corpo é um outro. Tivesse ela dez envoltórios e isto nada tiraria à sua essência imaterial. Já o mesmo não se dá com a doutrina adotada pelo concílio de Viena, no Dauphiné, na sua segunda sessão, em 3 de abril de 1312. Segundo essa doutrina, “a autoridade da Igreja ordena crer que a alma não passa da forma substancial do corpo; que não há ideias inatas e declara heréticos os que negarem a materialidade da alma.” Raul Fornier, professor de Direito ensina positivamente a mesma coisa em seus discursos acadêmicos, impressos em Paris em 1619, com aprovação e elogios de vários doutores em teologia.

É provável que o concílio, baseando-se nos fatos de numerosas manifestações espíritas visíveis e tangíveis, referidas nas Escrituras, manifestações que não deixam de ser materiais, pois ferem os sentidos, tenha confundido a alma com o envoltório fluídico ou perispírito, cuja distinção o Espiritismo demonstra. Sua doutrina é, pois, menos materialista que a do concílio.


14. – “Mas abordemos sem hesitar o homem da França, que é o mais adiantado nesses estudos. Para constatar a identidade do Espírito que fala, é preciso, diz o Sr. Allan Kardec, estudar sua linguagem. Pois bem! Que seja! Conhecemos por seus escritos autênticos o pensamento certo e, conseguintemente, a linguagem de São João, São Paulo, Santo Agostinho, Fénelon, etc. Como, pois, em vossos livros, ousais atribuir a esses grandes gênios pensamentos e sentimentos inteiramente contrários aos que ficaram para sempre consignados em suas obras?”

Assim, admitis que essas personagens em nada se enganaram; que tudo quanto escreveram é a expressão da verdade; que se hoje voltassem corporalmente deveriam ensinar tudo o que ensinaram outrora; que, vindo como Espírito, não devem renegar nenhuma de suas palavras. Entretanto, Santo Agostinho olhava como heresia a crença na redondeza da Terra e nos antípodas. Sustentava a existência dos íncubos e súcubos e acreditava na procriação pelo comércio dos homens com os Espíritos. Credes que a tal respeito e como Espírito não possa pensar de modo diverso do que pensava como homem e que hoje professasse essas doutrinas? Se suas ideias houveram de modificar-se em certos pontos, podem perfeitamente ter sido mudadas em outros. Se se enganou, logo ele, gênio incontestavelmente superior, por que vós mesmos não vos enganaríeis? Para respeitar a ortodoxia será preciso negar a Agostinho o direito, melhor dizendo, o mérito de retratar-se de seus erros?


15. – “Atribuís a São Luís esta sentença ridícula, sobretudo em sua boca, contra a eternidade das penas: Supor Espíritos incuráveis é negar a lei do progresso.” (O Livro dos Espíritos, nº 1007.)

Não é assim que ela é formulada. À pergunta: Haverá Espíritos que nunca se arrependam? respondeu São Luís: “Há os de arrependimento muito tardio; porém, pretender-se que nunca se melhorarão fora negar a lei do progresso e dizer que a criança não pode tornar-se homem.” A primeira forma poderia parecer ridícula. Por que, então, sempre truncar e desnaturar as frases? A quem pensam enganar? aos que apenas lerem esses comentários inexatos? Mas seu número é muito pequeno, perto dos que querem conhecer o fundo das coisas sobre as quais vós mesmos chamais a atenção. Ora, a comparação não pode senão favorecer o Espiritismo.


Nota. – Para a edificação de todos, recomendamos a leitura da brochura intitulada: Do Espiritismo, pelo Rev. Pe. Nampon [Adrien Nampon], da Companhia de Jesus, Livraria Girard et Josserand, Lyon, place Bellecour, nº 30; Paris, rue Cassette, nº 5. Rogamos também ler em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns os textos completos, citados resumidamente ou deturpados na brochura acima referida. [Vide ainda do Pe. Nampon Catholic doctrine as defined by the Council of Trent - Google Books.]