1. — Nota. – O artigo seguinte é a introdução a um trabalho completo que o autor, Sr. Herrenschneider, se propõe fazer sobre a necessidade da aliança entre a Filosofia e o Espiritismo.
Desde que o Espiritismo se revelou na França, há cerca de dez ou doze anos, as comunicações incessantes dos Espíritos têm provocado em todas as classes da sociedade um movimento religioso benéfico, que importa encorajar e desenvolver. Com efeito, neste século o espírito religioso estava perdido, sobretudo entre as classes eruditas e inteligentes. O sarcasmo voltaireano aí tinha tirado o prestígio do Cristianismo; o progresso das ciências lhes havia feito reconhecer as contradições existentes entre os dogmas e as leis naturais, e as descobertas astronômicas tinham demonstrado a puerilidade da ideia que formavam de Deus os filhos de Abraão, de Moisés e do Cristo. O desenvolvimento das riquezas, as invenções maravilhosas das artes e da indústria, toda a civilização protestava, aos olhos da sociedade moderna, contra a renúncia ao mundo. Foi por causa desses numerosos motivos que a incredulidade e a indiferença se insinuaram nas almas, a negligência dos destinos eternos entorpeceu o nosso amor ao bem, paralisou o nosso aperfeiçoamento moral e a paixão do bem-estar, do prazer, do luxo e das vaidades terrestres acabou por cativar quase toda a nossa ambição; mas, de repente, os mortos vieram nos lembrar que a nossa vida presente tem o seu dia seguinte, que nossos atos têm suas consequências fatais, inevitáveis, quando não sempre nesta vida, infalivelmente na vida futura.
Essa aparição dos Espíritos foi uma trovoada que fez tremer muita gente, à semelhança de certos móveis, postos em movimento sob o impulso de uma força invisível; à audição desses pensamentos inteligentes, ditados por meio de um telégrafo grosseiro; à leitura dessas páginas sublimes, escritas por nossas mãos distraídas, sob o impulso de uma direção misteriosa. Quantos corações batiam, tomados de medo súbito; quantas consciências atormentadas despertaram em merecidas angústias; quantas inteligências feridas de estupor! A renovação dessas relações com as almas dos mortos é e continuará um acontecimento prodigioso, que terá como consequência a regeneração, tão necessária, da sociedade moderna.
É que, quando a sociedade humana só tem por objetivo de atividade a prosperidade material e o prazer dos sentidos, mergulha no materialismo egoísta, aprecia todas as ações conforme os bens que delas retira, renuncia a todos os esforços que não levem a uma vantagem palpável, só estima os que têm posses e não respeita senão o poder que se impõe. Quando os homens só se preocupam com os sucessos imediatos e lucrativos, perdem o senso da honestidade, renunciam à escolha dos meios, desprezam a felicidade íntima, as virtudes privadas e deixam de se guiar conforme os princípios de justiça e de equidade. Numa sociedade lançada nessa direção imoral, o rico leva uma vida de moleza ignóbil, embrutecedora, e o deserdado aí arrasta uma vida dolorosa e monótona, da qual o suicídio parece ser o último lenitivo.
Contra semelhante disposição moral, pública e privada, a filosofia é impotente. Não que lhe faltem argumentos para provar a necessidade social de princípios puros e generosos; não que ela não possa demonstrar a iminência da responsabilidade final e estabelecer a perpetuidade de nossa existência; mas, em geral, os homens não têm tempo, nem gosto, nem espírito bastante circunspeto, para prestar atenção à voz da consciência e às observações da razão. As vicissitudes da vida, aliás, muitas vezes são demasiado imperiosas para que se decidam pelo exercício da virtude pelo simples amor do bem. Mesmo quando a filosofia tivesse sido o que realmente deveria ser – uma doutrina completa e certa – jamais teria podido provocar, somente por seu ensino, a regeneração social de maneira eficaz, uma vez que até hoje ela não pôde dar à autoridade de sua doutrina outra sanção que não fosse o amor abstrato do ideal e da perfeição.
É que aos homens é preciso, para os convencer da necessidade de se consagrarem ao bem, fatos que falem aos sentidos. É-lhes necessário o quadro impressionante de suas dores futuras, para que consintam em subir a ladeira funesta por onde seus vícios os arrastaram; faz-se mister que toquem com o dedo as desgraças eternas que, pela sua invigilância moral, para si mesmos preparam, a fim de compreenderem que a vida atual não é o objetivo de sua existência, mas o meio que lhes deu o Criador de trabalharem pessoalmente para a realização de seus destinos finais. Assim, foi por estes motivos que todas as religiões apoiaram seus mandamentos no terror do inferno e nas seduções das alegrias celestes. Mas desde que, sob o império da incredulidade e da indiferença religiosa, as populações se certificaram das consequências últimas de seus pecados, acabou por prevalecer uma filosofia fácil e inconsequente, auxiliando o culto dos sentidos, dos interesses temporais e das doutrinas egoístas. Hoje, os homens esclarecidos, inteligentes e fortes afastam-se da Igreja e seguem suas próprias inspirações; falta-lhe a autoridade necessária para recuperar sua influência vinte vezes secular. Pode, pois, dizer-se que a Igreja é tão impotente quanto a filosofia e que nem uma nem outra exercerão influência salutar senão sofrendo, cada uma em seu gênero, uma reforma radical.
Enquanto isto a Humanidade se agita, os acontecimentos se sucedem e a chegada das manifestações espíritas neste século culto, prático, suficiente e céptico, é, incontestavelmente, o evento mais considerável. Eis, pois, que se abre o túmulo à nossa frente, não como o fim de nossas penas e de nossas misérias terrestres; não como um abismo escancarado, onde são devorados as nossas paixões, os nossos prazeres e as nossas ilusões, mas antes como o pórtico majestoso de um novo mundo, onde uns colherão, mau grado seu, os frutos amargos que suas fraquezas lhes terão feito semear, enquanto outros, ao contrário, garantirão, por seu mérito, a passagem a esferas mais puras e mais elevadas. É, pois, o Espiritismo que nos revela nossos destinos futuros; quanto mais ele for conhecido, tanto mais ganhará em impulso e em extensão a regeneração moral e religiosa.
A união do Espiritismo com as ciências filosóficas nos parece, realmente, de magna necessidade para a felicidade humana e para o progresso moral, intelectual e religioso da sociedade moderna, porquanto já não estamos no tempo em que se podia afastar a ciência humana em benefício da fé cega. A ciência moderna é muito sábia, muito segura de si mesma e muito avançada no conhecimento das leis impostas por Deus à inteligência e à Natureza, para que a transformação religiosa possa ocorrer sem o seu concurso. Conhece-se perfeitamente a exiguidade relativa de nosso globo para conferir à Humanidade um lugar privilegiado nos desígnios providenciais. Aos olhos de todos, não passamos de um grão de poeira na imensidade dos mundos, e sabe-se que as leis que regem essa multidão indefinida de existências são simples, imutáveis e universais. Enfim, as exigências da certeza de nossos conhecimentos foram fortemente aprofundadas, para que uma doutrina nova possa surgir e manter-se em outra base que não seja um misticismo tocante e inofensivo. Se o Espiritismo quiser estender seu império sobre todas as classes da sociedade, sobre os homens superiores e inteligentes, como sobre as almas delicadas e crentes, é preciso que se lance, sem reservas, na corrente do pensamento humano, e que, por sua superioridade filosófica, saiba impor à soberba razão o respeito de sua autoridade.
É esta ação independente dos adeptos do Espiritismo que compreendem perfeitamente os Espíritos elevados que se manifestam. Aquele que se designa sob o nome de Santo Agostinho dizia ultimamente: “Observai e estudai com cuidado as comunicações que vos são dadas; aceitai o que a razão não repele, rejeitai o que a choca; pedi esclarecimentos sobre as que vos deixam em dúvida. Tendes aí a marcha a seguir, para transmitir às gerações futuras, sem receio de as ver desnaturadas, as verdades que deslindais sem esforço do seu cortejo inevitável de erros.”
Eis, em poucas palavras, o verdadeiro espírito do Espiritismo, o que a Ciência pode admitir sem derrogar, aquele que nos servirá para conquistar a Humanidade. Aliás, o Espiritismo nada tem a temer de sua aliança com a filosofia, porque repousa sobre fatos incontestáveis, que têm sua razão de ser nas leis da Criação. Cabe à Ciência estudar-lhe o alcance e coordenar os princípios gerais, consoante essa nova ordem de fenômenos. Pois é evidente que, desde que ela não tinha pressentido a existência necessária, no espaço que nos cerca, das almas dos mortos ou das destinadas a renascer, a Ciência deve compreender que sua filosofia primeira estava incompleta e que princípios primordiais lhe haviam escapado.
A filosofia, ao contrário, tem tudo a ganhar ao considerar seriamente os fatos do Espiritismo. Primeiro; porque estes são a sanção solene de seu ensinamento moral; e depois porque tais fatos provarão, aos mais endurecidos, o alcance fatal de seu mau comportamento. Mas, por mais importante que seja esta justificação positiva de suas máximas, o estudo aprofundado das consequências, que se deduzem da constatação da existência sensível da alma no estado não encarnado, servir-lhe-á em seguida para determinar os elementos constitutivos da alma, sua origem, seus destinos, e para estabelecer a lei moral e a do progresso anímico sobre bases certas e inabaláveis. Além disso, o conhecimento da essência da alma conduzirá a filosofia ao conhecimento da essência das coisas e, mesmo, da de Deus, e lhe permitirá unir todas as doutrinas que a dividem num só e mesmo sistema geral, verdadeiramente completo. Enfim, esses diversos desenvolvimentos da filosofia, provocados por esta preciosa determinação da essência anímica, conduzi-la-ão infalivelmente sobre os traços dos princípios fundamentais da antiga cabala e da antiga ciência oculta dos hierofantes, de que a trindade cristã é o último raio luminoso que chegou até nós. É assim que, pela simples aparição das almas errantes, chegar-se-á, como temos todo direito de esperar, a constituir uma cadeia ininterrupta das tradições morais, religiosas e metafísicas da Humanidade antiga e moderna.
Este futuro considerável, que concebemos para a filosofia aliada ao Espiritismo, não parecerá impossível aos que tiverem alguma noção desta ciência, se considerarem a vacuidade dos princípios sobre os quais se fundam as diversas escolas e a impotência para elas disso resultante, de explicar a realidade concreta e viva da alma e de Deus. É assim que o materialismo imagina que os seres não passam de fenômenos materiais, semelhantes aos produzidos pelas combinações químicas, e que o princípio que os anima faz parte de um suposto princípio vital universal. De acordo com este sistema a alma individual não existiria e Deus seria um ser completamente inútil.
Por seu lado, os discípulos de Hegel imaginam que a ideia, esse fenômeno indisciplinado de nossa alma, seja um elemento em si, independente de nós; um princípio universal que se manifesta pela Humanidade e sua atividade intelectual, como também pela Natureza e suas maravilhosas transformações. Esta escola nega, por conseguinte, a individualidade eterna de nossa alma, e a confunde num só todo, com a Natureza. Ela supõe que exista uma identidade perfeita entre o universo visível e o mundo moral e intelectual; que um e outro sejam o resultado da evolução progressiva e fatal da ideia primitiva, universal, numa palavra, do absoluto. Deus também não tem, neste sistema, nenhuma individualidade, nenhuma liberdade, e não se conhece pessoalmente. Ele só se percebeu a si mesmo, pela primeira vez, em 1810, por intermédio de Hegel, quando este o reconheceu na ideia absoluta e universal. (Histórico).
Enfim, nossa escola espiritualista, vulgarmente chamada eclética, considera a alma como sendo apenas uma força sem extensão e sem solidez, uma inteligência imperceptível no corpo humano e que, uma vez desembaraçada de seu envoltório, conservando sua individualidade e sua imortalidade, não existiria mais, nem no tempo, nem no espaço. Nossa alma, pois, seria um não sei quê, sem ligação com o que existe, e não ocuparia nenhum lugar determinado. Segundo este mesmo sistema, Deus não é mais perceptível. É o pensamento perfeito e não tem, igualmente, nem solidez, nem estabilidade, nem forma, nem realidade sensível; é um ser vazio. Sem a razão nós não poderíamos ter nenhuma intuição. Entretanto, quem são os que inventaram o ateísmo, o cepticismo, o panteísmo, o idealismo, etc.? São os homens de raciocínio, os inteligentes, os sábios! Os povos ignorantes, cujas sensações são os principais guias, jamais duvidaram de Deus, da alma e de sua imortalidade. Parece que só a razão é má conselheira!
Em consequência, fácil é nos convencermos de que falta a essas doutrinas um princípio real, estável, vivo, da noção do ser real. Elas se movem num mundo inteligível, que não toca na realidade concreta. O vazio de seus princípios relaciona-se com o conjunto de seus sistemas e os torna tão sutis quanto vagos e estranhos à realidade das coisas. O próprio senso comum é ultrajado, não obstante o talento e a prodigiosa erudição de seus aderentes. Mas o Espiritismo é ainda mais brutal em relação a eles, porque derruba todos os sistemas abstratos, opondo-lhes um fato único: a realidade substancial, viva e atual da alma não encarnada. Ele lha mostra como um ser pessoal, existindo no tempo e no espaço, embora invisível para nós; como um ser tendo o seu elemento sólido, substancial e sua força ativa e pensante. Ele nos mostra mesmo as almas errantes, comunicando-se conosco por sua própria iniciativa. É evidente que semelhante acontecimento deve derrubar todos os castelos de cartas e, de uma assentada, eliminar essas soberbas estruturas fantasiosas.
Mas, para aumentar a confusão, pode provar-se aos partidários dessas doutrinas complicadas que todo homem traz na própria consciência os elementos suficientes para demonstrar a existência da alma, tal como o Espiritismo o estabeleceu pelos fatos, de modo que seus sistemas não só são errados no seu ponto de chegada, mas, também, em seu ponto de partida. Assim, o mais sábio partido que resta a tomar por esses honrados sábios, é refazer completamente sua filosofia e consagrar seu profundo saber à fundação de uma ciência original, mais precisa e mais conforme à realidade.
É que, efetivamente, carregamos conosco quatro i noções irredutíveis, que nos autorizam a afirmar a existência de nossa alma, tal qual o Espiritismo no-la apresenta. Primeiramente, temos em nós o sentimento de nossa existência. Tal pensamento não pode revelar-se senão por uma impressão que recebemos de nós mesmos. Ora, nenhuma impressão se faz sobre um objeto privado de solidez e de extensão, de sorte que por um só fato de nossas sensações devemos inferir que temos em nós um elemento sensível, sutil, extenso e resistente, isto é, uma substância. Em segundo lugar, temos em nós a consciência de um elemento ativo, causal, que se manifesta em nossa vontade, em nosso pensamento e em nossos atos. Em consequência, é ainda evidente que possuímos em nós um segundo elemento: uma força. Portanto, pelo simples fato de que sentimos e sabemos, devemos concluir que encerramos dois elementos constitutivos, força e substância, isto é, uma dualidade essencial, anímica.
Mas essas duas noções primitivas não são as únicas que levamos conosco. Ainda nos concebemos, em terceiro lugar, uma unidade pessoal, original, sempre idêntica a si mesma; e, em quarto lugar, um destino igualmente pessoal, porque todos nós procuramos a felicidade e as nossas próprias conveniências em todas as circunstâncias da vida. De maneira que, juntando essas duas novas noções, que constituem nosso duplo aspecto, às duas precedentes, reconhecemos que nosso ser encerra quatro princípios bem distintos: sua dualidade de essência e sua dualidade de aspecto.
Ora, como esses quatro elementos do conhecimento do nosso eu, que nos levam a nos afirmar pessoalmente, são noções independentes do corpo e não têm qualquer relação com o nosso envoltório material, é evidente e peremptório para todo espírito justo e não prevenido, que nosso ser depende de um princípio invisível, chamado Alma; e que esta alma existe como tal, desde que tem uma substância e uma força, uma unidade e um destino próprios e pessoais.
Tais são os quatro elementos primordiais de nossa individualidade anímica, dos quais cada um de nós traz em seu seio a noção e que nenhum homem poderia recusar. Em consequência, como dissemos, em todos os tempos a filosofia possuiu os elementos suficientes para o conhecimento da alma, tal como o Espiritismo no-la dá a conhecer. Se, pois, até o presente, a razão humana não conseguiu construir uma metafísica verdadeira e útil, que lhe tenha feito compreender que a alma deve ser considerada como um ser real, independente do corpo e capaz de existir por si mesma, substancial e virtualmente, no corpo e no espaço, é que ela desdenhou a observação direta dos fatos de consciência e que, em seu orgulho e em sua presunção, a razão foi posta em lugar e no lugar da realidade.
Conforme estas observações, pode compreender-se quanto importa à filosofia unir-se ao Espiritismo, pois deste tirará a vantagem de criar-se uma ciência original, séria e completa, fundada sobre o conhecimento da essência da alma e das quatro condições de sua realidade. Mas não é menos necessário ao Espiritismo aliar-se com a filosofia, porque só por ela poderá estabelecer a certeza científica dos fatos espíritas, que formam a base fundamental de sua crença, e daí tirar as importantes consequências que eles contêm. Sem dúvida, basta que o bom senso veja um fenômeno para crer em sua realidade, e muitos se contentam com isto; mas a Ciência muitas vezes teve motivos para duvidar do protesto do senso comum, para não se confiar nas impressões dos nossos sentidos e nas ilusões de nossa imaginação. O bom-senso não basta, pois, para estabelecer cientificamente a realidade da presença dos Espíritos à nossa volta. Para estar certo disto de maneira irrefutável, é preciso estabelecer racionalmente, de acordo com as leis gerais da criação, que sua existência é necessária por si mesma, e que sua presença invisível não é senão a confirmação dos dados racionais e científicos, tais como acabamos de indicar alguns, de maneira sumária. Assim, somente pelo método filosófico é possível chegar a esse resultado. Eis um trabalho necessário à autoridade do Espiritismo, e só a filosofia pode prestar-lhe esse serviço.
Em geral, seja em que empresa for, para triunfar é necessário aliar o conhecimento dos princípios à observação dos fatos. Nas circunstâncias particulares do Espiritismo, é ainda muito mais necessário proceder desta maneira rigorosa para chegar à verdade, porque nossa nova doutrina toca os nossos interesses mais caros e mais elevados, os que constituem a nossa felicidade presente e eterna. Por conseguinte, a união do Espiritismo e da Filosofia é da mais alta importância para o sucesso de nossos esforços e para o porvir da Humanidade.
F .Herrenschneider.
No artigo anterior procuramos provar que se, em geral, os senhores livres-pensadores quisessem dar-se ao trabalho de examinar os motivos que lhes permitem afirmar-se, de dizer “eu”, chegariam ao conhecimento de sua dupla essência; convencer-se-iam de que sua alma é constituída de maneira a existir separadamente do corpo, tão bem quanto em seu envoltório, e compreenderiam a sua erraticidade quando, após a morte, ela tivesse deixado a sua matéria terrestre. De sorte que sua ciência, se fosse baseada sobre o verdadeiro princípio da constituição da alma, confirmaria os fatos espíritas, em vez de os contradizer com tanta persistência. Com efeito, nossa noção do eu compõe-se principalmente do sentimento e do conhecimento que temos de nós mesmos, e esses dois fenômenos íntimos, evidentes para todo o mundo, implicam peremptoriamente dois elementos distintos na alma: um passivo, sensível, extenso e sólido, que recebe as impressões; outro ativo, sem extensão e pensante, que os percebe. Em consequência, se possuímos, ao lado de um elemento virtual, um elemento resistente e permanente, diferente do nosso corpo, não podemos dissolver-nos pela morte; nossa imortalidade está provada e nossa preexistência é uma consequência natural. Nossos destinos, portanto, são independentes de nossa morada terrestre, e esta não passa de um episódio mais ou menos interessante para nós, conforme os acontecimentos que a enchem.
A dualidade da essência de nossa alma, de acordo com tais observações, é um princípio importante, pois nos instrui sobre a nossa existência real e imortal. Mas é um princípio tanto mais importante quanto é a fonte única em que haurimos a consciência certa de nossa individualidade, sendo assim a origem de nossa ciência, da qual não podemos duvidar, e sobre a qual repousa todo o resto dos nossos conhecimentos. Efetivamente, começamos todos por nos conhecer, antes de perceber o que nos rodeia; e medimos por nossa medida tudo o que examinamos e julgamos. Assim, é indispensável observar, para o estudo da verdade, que nosso saber parte de nós, para voltar a nós; que há um círculo formado por nós mesmos, que nos envolve e nos enlaça fraternalmente, mau grado nosso. Os filósofos atuais o ignoram e o sofrem sem se aperceberem. É ele que os ofusca, que os cega e os impede de olhar além e acima deles. Assim, teremos muitas oportunidades de constatar sua cegueira. Ao contrário, os antigos conheciam esse círculo e sua influência misteriosa, pois simbolizavam a Ciência sob a figura de uma serpente mordendo a própria cauda, depois de ter-se dobrado sobre si mesma. Aos seus olhos isto significava que nosso saber parte de um ponto dado, faz a volta de nosso horizonte intelectual e retorna ao ponto de partida. Ora, se esse ponto de partida for elevado e o olhar for penetrante, o horizonte será largo e a ciência vasta; se, ao contrário, o solo for raso e a visão turva, o horizonte será restrito e limitada a inteligência das coisas. Desse modo, tais quais formos pessoalmente, tal será o conjunto e o alcance dos nossos conhecimentos. Por este motivo torna-se evidente que a primeira condição da ciência individual é a de examinar-se a si mesmo, não só para distinguir suas qualidades, seus defeitos e seus vícios, mas, antes de tudo, para conhecer a constituição íntima do nosso ser e, depois, para elevar o nosso espírito e formar o nosso caráter.
Por conseguinte, a verdadeira ciência não é feita para cada um. Aquele que a aspira não só deve ter inteligência e instrução, mas, sobretudo, ser sério, sóbrio, prudente, e não se deixar levar pelo capricho da imaginação, por sua vaidade, seus interesses, sua suficiência. O que deve guiar o verdadeiro amante da verdade é um amor desinteressado por esse objetivo venerado; é a vontade enérgica e constante de jamais parar e de separar rigorosamente o joio do trigo. Quanto mais o homem possui, tanto mais é calmo e nobre e melhor saberá discernir as veredas que o conduzirão à verdade; quanto mais leviano, presunçoso ou apaixonado, tanto mais corromperá com seu hálito impuro os frutos que colherá na árvore da vida.
A primeira condição para chegar ao conhecimento das coisas é, pois, o caráter individual; é por esta razão que, na antiguidade, provas solenes precediam a toda iniciação. Hoje o saber é espalhado sem discernimento e cada um julga poder penetrá-lo; mas, também, mais que nunca a verdade é bem acolhida, enquanto as doutrinas mais estranhas encontram numerosos aderentes. Deveriam, pois, convencer-se de que os espíritos indiferentes, limitados pelas ciências exatas e naturais, levados pela imaginação, ou cheios de impertinência, são impróprios à pesquisa da verdade, e que seria mais prudente reservar esse nobre labor para alguns escolhidos. Entretanto, disposições mais sensatas hoje se manifestam pelo advento do Espiritismo; e, com efeito, os espíritas são homens bem-dispostos para a busca da verdade porque, separando-se do turbilhão geral que arrasta a sociedade, renunciaram por si mesmos às vaidades mundanas, aos princípios superficiais dos livres-pensadores e à superstição oficial dos cultos reconhecidos. Dão prova de sadia independência, de um amor sincero da verdade e de uma tocante solicitude por seus interesses eternos. São estas as melhores disposições morais para abordar os graves problemas da alma, do mundo e da Divindade. Para nosso bem eterno, experimentemos entender-nos e seguir juntos as pegadas que nos conduzirão à via sagrada. Porque temos necessidade de nos ajudarmos reciprocamente para alcançar o objetivo que todos buscamos: o de nos esclarecer apenas sobre o que é real e durável.
Depois das disposições morais que acabamos de indicar, a coisa mais indispensável para bem se engajar na obra delicada da iniciação é o conhecimento do princípio da dualidade da essência da alma, porquanto é ele que constitui uma parte do misterioso segredo da Esfinge É uma das chaves da Ciência e, sem a possuir, tornam-se inúteis todos os esforços para o atingir. Por si só, esse princípio da essência da alma encerra, como consequências, as noções consideráveis que desejamos adquirir, enquanto todos os princípios secundários até hoje descobertos não se elevam bastante para dominar o vasto horizonte dos conhecimentos humanos e para lhes abraçar todos os detalhes. Os princípios inferiores afastam os que deles se servem no dédalo de numerosos fatos que não esclarecem; e é pela insuficiência de seus princípios primordiais que os filósofos se transviaram e se perderam nas sutilezas arbitrárias de suas doutrinas incompletas. Fatalmente levaram a confusão onde acreditavam tocar a verdade. Nessas matérias, mais delicadas que difíceis, só o princípio verdadeiro espalha a luz, resolve facilmente todos os problemas e abre as portas secretas que conduzem ao mais distante santuário. Ora, já sabemos que levamos conosco esse princípio e que, para o descobrir, basta que nos estudemos, com calma e imparcialidade.
Sabemos que esse princípio é a dualidade de nossa essência anímica, de sorte que não nos resta senão desenrolar o fio cuidadosamente, do qual temos o nó mais importante. Não obstante, à medida que avançarmos em nosso estudo psicológico, consultaremos os trabalhos de nossos mais ilustres filósofos, a fim de reconhecer onde falharam e em que ponto suas doutrinas confirmam as nossas próprias pesquisas.
Assim, como observamos acima, parece evidente que tudo quanto em nós se prende à ordem sensível depende da substância de nossa alma, porque é o seu elemento extenso e sólido que recebe todas as impressões exteriores e que se ressente de nossa atividade interior. Com efeito, nossa alma não poderia ser tocada de uma maneira qualquer, sem que, primeiro, apresentasse um obstáculo às oscilações do meio ambiente e, em seguida, às vibrações das emoções que nos afetam intimamente. Portanto, é essa maneira de ser muito natural que explica as nossas relações com tudo o que existe, com o que não somos, com o nosso não-eu moral, intelectual e físico, visível ou invisível. A solidez e extensão de nossa substância não devem, em princípio, ser rejeitadas. Entretanto, não é essa opinião que reina na Universidade e no Instituto. O espiritualismo a nega como absurda, sob o pretexto especioso de que a divisibilidade, que seria a sua consequência, implicaria a corruptibilidade da substância. Mas isto não passa de um mal-entendido, pois o que importa à corruptibilidade da natureza anímica é a simplicidade química de sua fluidez corporal e não a sua indivisibilidade mecânica, em falta da qual há mil maneiras de remediar, ao passo que, para ficar na verdade científica, é preciso evitar a admissão de um efeito sem causa, uma impressão possível sem resistência. Assim, a sensibilidade de nossa alma nada ensina à nossa escola espiritualista; liga gratuitamente os sentimentos à razão, atribui as sensações ao organismo material e não dá explicações sobre a conexão dessas diversas faculdades. Eis uma das causas de sua impotência filosófica.
Quanto a nós, a sensibilidade de nossa alma é a prova irrecusável da solidez e da extensão de sua substância, e é a noção dessas propriedades que nos abre um vasto campo de observação. Assim, de início, a extensão e a solidez substancial permitem à nossa alma tomar diferentes formas e encerrar o tipo de todos os órgãos que constituem nosso organismo corporal. Serve, assim, de origem e sustentáculo aos nossos nervos, aos nossos sentidos, ao nosso cérebro, às nossas vísceras, aos nossos músculos e ossos, permitindo que nos encarnemos por meio desta lei da mutabilidade das moléculas corporais, tão conhecida de nossos modernos fisiologistas. Nossos cientistas supõem apenas, e erradamente, em nossa opinião, que essa lei seja efeito de uma força misteriosa da matéria, que se renova, se absorve, se escoa e se forma por si mesma, pois a matéria é inerte e nada forma por sua própria iniciativa. Evidentemente esta mutabilidade é efeito da atividade instintiva de nossa dupla essência anímica, que se acha sob o nosso envoltório. A existência desta lei prova que a nossa encarnação está na ordem da Natureza, visto ser contínua e, ao cabo de uma série de anos, nosso corpo se renova regularmente. A formação do nosso revestimento material, e a nossa encarnação sucessiva explicam-se, muito naturalmente, desta maneira. Mas, além disso, essa substancialidade extensa de nossa alma nos faz compreender igualmente o laço existente entre ela e o nosso corpo, porquanto, não passando o nosso organismo visível de cobertura do nosso organismo substancial, tudo quanto é sentido por um deve repercutir necessariamente no outro. As emoções da substância da alma devem abalar o corpo e o estado deste deve afetar, inevitavelmente, suas próprias disposições morais e intelectuais. Eis o primeiro ensinamento resultante da natureza concreta de nossa substância.
O segundo ensinamento que daí retiramos é que a parte da substância de nossa alma, que não serve de tipo ao nosso organismo material, deve ser a base do nosso senso íntimo, daquele que recebe todas as nossas impressões morais e intelectuais, e que nos põe em contato com a própria substância divina, de sorte que nossa substância recebe as impressões da irradiação de todas as existências e de todas as atividades possíveis e se acha entre a origem primeira de todas as nossas noções. É da mesma maneira que recebemos o conhecimento de nós mesmos. Porque se perguntarmos a um céptico como pode afirmar-se, sem a menor reserva responderá: “É que eu me sinto”, pois o próprio céptico não pode duvidar de suas sensações. Entretanto, sentir-se não é todo o nosso conhecimento: o céptico também não pode negar que sabe que se sente. Ora, a percepção do nosso sentimento é consequência de nossa atividade intelectual, o que prova que nossa alma não só é passiva, mas, também, ativa, tem vontade, percebe, pensa e é livre por sua própria iniciativa. Nossos próprios órgãos funcionam sem que tenhamos consciência, de sorte que se é forçado a atribuir à nossa alma um segundo elemento, um elemento ativo, virtual, isto é, uma força essencial, que está atenta quando nossa sensibilidade está desperta e que, por efeito de seu próprio movimento, percebe, pensa e reflete por meio do nosso órgão cerebral, age auxiliada por nossos membros e anima nosso organismo com um movimento involuntário. É pela presença em nossa alma dessa dupla ordem essencial: da ordem substancial passiva e sensível, e da ordem virtual ativa e pensante, que nós sentimos, sabemos e temos consciência de nossa própria personalidade, sem nenhum auxílio do mundo exterior.
Nossa força anímica é o nosso elemento espiritual por excelência, porque não tem, por si mesma, nem extensão nem solidez; só nos é conhecida por sua atividade. Desde que não quer, nem pensa, nem age, é como se não existisse; e se nossa alma não fosse substancialmente concreta, pela virtude de um outro elemento, nosso corpo não teria consistência e não passaria de um amontoado de pó; nem mesmo poderia existir na erraticidade, pois se perderia no nada, a menos que se admitisse, com o espiritualismo, um mistério impenetrável, que lhe permitisse existir sem ter extensão nem solidez, suposição que o Espiritismo e as leis naturais tornam completamente inadmissível. Entretanto, é nossa força essencial que Leibniz considera como sendo nossa substância, sem levar em conta a sua natureza fugidia; e a escola espiritualista francesa o repete, a seu exemplo, sem se deter nessa confusão ilógica. Todavia, não basta chamar força a uma substância para que esta realmente o seja, e considerar essa substância imaginária como sendo o fundo de nosso ser, para que se saia do vazio das abstrações. Uma substância não é tal senão por seu estado concreto, sua extensão e sua solidez, por mais sutil que a queiramos conceber e é o que nossa escola espiritualista se compraz em passar em silêncio. Eis aí uma outra causa de sua impotência moral e filosófica.
Nossa força essencial é o princípio de nossa atividade; ela nos anima, mas não nos constitui. É o princípio de nossa vida, mas não o de nossa existência. Está por toda parte em nossa substância, espalha-se com ela em todo o nosso ser e dele recebe diretamente as impressões, sem o nosso concurso voluntário. É por esta íntima união de nossos dois elementos essenciais que nosso organismo funciona espontaneamente; que nossas sensações despertam a seguir nossa atenção e nos levam, sem outro intermediário, a perceber a causa de nossas impressões; que nossa consciência é um conjunto de sentimentos e de reflexões e que toda noção, seja qual for o seu objeto, exige que o sintamos e o saibamos. Desde então somente nós estamos certos de sua existência. É por este mesmo processo que temos conhecimento do Ser Supremo. Temos a sensação de sua presença por nosso senso íntimo, e nos explicamos esta sensação sublime por nossa razão, porque o ideal do verdadeiro, do bem e do belo está, inicialmente, em nosso coração, antes de nos entrar na cabeça. Os povos selvagens nisto não se enganam; não duvidam de Deus; apenas o imaginam conforme o nível de sua grosseira inteligência, ao passo que vemos nossos cientistas a querelar sobre a sua personalidade, porque nada pretendem admitir, a não ser pela força de seu raciocínio, e porque se debatem em abstrações, sem ponto de apoio na ordem sensível.
Tal a constituição de nossa alma. Ela se compõe de dois elementos bem distintos entre si e, não obstante, indissoluvelmente unidos; porque jamais e em parte alguma esses elementos se encontraram separadamente: toda substância tem sua força e toda força tem sua substância. Assim, esta dualidade se acha reunida na essência de tudo o que existe; está na matéria, na alma, em Deus. Nós o repetimos: esta distinção na unidade é necessariamente admissível, porque cada um desses elementos está bem caracterizado; porque têm suas propriedades respectivas e sua modalidade categórica; e porque é uma lei universal que um mesmo princípio não pode ter efeitos contrários, que qualidades que se excluem revelam outros tantos princípios particulares. Mas sua unidade não é menos peremptória, porque nenhuma função, nenhuma faculdade, nenhum fenômeno se produz em nós e alhures sem o concurso simultâneo desses dois elementos irredutíveis.
É esta unidade na dualidade constante de nossa alma que nos explica ainda esse fenômeno psicológico importante, a saber: a espontaneidade instintiva de todas as nossas faculdades e de todas as nossas funções, assim como a formação do nosso caráter e da nossa natureza moral íntima. Efetivamente, nossas impressões se nos conservam e se reproduzem involuntariamente, de sorte que, como a substância é o elemento passivo e permanente de nossa alma, é preciso que se lhe atribua a propriedade de conservar as nossas sensações, de concretizá-las em si e de transmiti-las à atenção de nossa força essencial. Sendo essas impressões de toda espécie, forma-se em nós, por esta propriedade conservadora, uma ordem moral, intelectual e prática permanente, que se manifesta por nossa atividade instintiva e espontânea, que nos inspira os sentimentos e as ideias e guia os nossos atos sem o nosso concurso voluntário e, muitas vezes, à nossa revelia. Além disso, esses sentimentos e essas ideias adquiridas se agrupam em nossa alma e nos produzem novas ideias e novas imagens, que estávamos longe de esperar. As funções psicológicas de nossa substância, unida à nossa força essencial, são, assim, multiplicadas e nos formam uma natureza moral, intelectual e prática espontânea, que é o fundo do nosso caráter, a origem de nossas disposições naturais. Desse modo, a nossa substância encerra, em estado latente, ou em potencial, como se exprime a escola, todas as nossas qualidades, todos os nossos conhecimentos, todos os nossos hábitos passados em estado permanente. Em consequência, a ela e à sua atividade instintiva é que se deve atribuir a memória, a imaginação, o espírito e os sentidos naturais, bem como a origem de nossas ideias e sentimentos.
Esta ordem substancial instintiva existe incontestavelmente em nossa alma. Cada um se reconhece uma natureza moral permanente, disposições intelectuais e hábitos próprios, que lhe facilitam a carreira e a conduta, se forem bons; ou que impede o sucesso e o arrasta em desvios deploráveis, se forem maus. Só os nossos filósofos não percebem, porque, não admitindo, como já fizemos notar, uma ordem psicológica substancial, condenam-se a atribuir tudo o que é resistente em nossa alma à influência da matéria, e a confundir tudo o que é sensível e vivo com a nossa inteligência. É verdade que Aristóteles reconhecia no homem uma ordem potencial, onde todas as nossas qualidades estão em potencial; mas o define mal e também a confunde com a matéria. Desde então, ninguém mais se ocupou dessa ordem especial, a não ser o Sr. Cousin. Mas este filósofo contemporâneo, não reconhecendo na alma senão a inteligência, só considerou a atividade espontânea, sem lhe buscar a origem no elemento permanente da nossa natureza anímica. Ele a designa como sendo a razão espontânea e instintiva, em oposição à razão refletida, sem se dar conta da contradição existente entre o instinto e a reflexão, qualidades que se excluem e que, evidentemente, não podem pertencer ao mesmo princípio! É por isso que o Sr. Cousin tira apenas consequências limitadas desta descoberta, razão pela qual a sua psicologia, como a sua escola, tornou-se uma ciência árida, ilógica e sem grande alcance.
Detenhamos agora o pensamento sobre o conjunto de observações que precedem, pois elas nos fizeram conhecer fenômenos psicológicos até hoje desconhecidos. Elas nos fizeram constatar em nossa alma a existência de duas ordens morais, intelectuais e práticas bem distintas e fortemente caracterizadas: uma se reportando perfeitamente às propriedades particulares de nossa substância, que são a permanência, a extensão e a solidez; a outra, as de nossa força essencial, que são a sua causalidade, sua inextensão e sua intermitência. A primeira é passiva, sensível, conservadora; a segunda é ativa, voluntária e refletida. A união íntima dos nossos dois elementos essenciais produz em nós, além disso, nossa tríplice atividade instintiva, que é o reflexo direto do estado verdadeiro de nossas qualidades e de nossos defeitos naturais.
Com efeito, de um lado, quanto mais sensível, delicada e conservadora for a nossa natureza substancial, e mais viva e enérgica a nossa atividade instintiva, tanto mais puros e elevados serão nossas ideias e sentimentos, justo o nosso bom-senso e fáceis e seguras a nossa memória e a nossa imaginação. Ao contrário, quanto menos aperfeiçoado for o nosso estado substancial, mais lentas e limitadas serão a nossa memória e a nossa imaginação, mais grosseiras as nossas ideias, mais vis os nossos sentimentos e mais obtuso o nosso senso comum. Mas, por outro lado, quanto mais enérgica, constante e flexível a nossa força causadora, mais fortes serão a nossa atenção, a nossa vontade, a nossa virtude e o nosso domínio sobre nós mesmos, mais alcance terão a nossa percepção, o nosso pensamento, o nosso juízo e a nossa razão e, enfim, maior a nossa habilidade e mais honrosa a nossa conduta, porque todas essas qualidades e faculdades derivam de nosso elemento virtual. Ao contrário, quanto mais mole, entorpecida ou rígida a nossa força essencial, tanto mais a nossa brutalidade e a nossa covardia moral e intelectual se manifestarão em plena luz. Desse modo, o nosso valor tanto depende do estado das qualidades e das propriedades de um, quanto do outro elemento de nossa alma.
Tal o quadro sumário que apresenta a constituição íntima de nossa essência anímica, e que nos revela a nossa dupla faculdade de nos sentir e de nos saber. Esse quadro no-la mostra, para começar, em sua unidade viva, pois descobrimos o duplo princípio de sua atividade e de sua passividade, de sua permanência e de sua causalidade, de sua existência no tempo e no espaço, e de sua independência própria e distinta de Deus, do mundo e de seu envoltório material. Ele no-la mostra depois na sua diversidade maravilhosa, pois reconhecemos a origem de suas qualidades e de suas faculdades, de suas funções e de seu organismo, nas propriedades respectivas de nossos elementos essenciais e em seu concurso recíproco. Entretanto, este quadro não passa de um primeiro esboço e, contudo, fácil é nele notar o método de observação rigorosa que seguimos e que é o mesmo que Bacon descobriu, que Descartes introduziu na psicologia, que a escola escocesa aplicou e que a escola espiritualista e eclética observou em toda a sua doutrina. Encontramo-nos, pois, no mesmo terreno que o de toda filosofia séria e, se muitas vezes estamos em desacordo com as nossas celebridades acadêmicas, é que não podemos deixar de crer que a maioria dos fatos de consciência foi por elas mal observados e mal explicados.
Com efeito, o ecletismo espiritualista nos reconhece três faculdades principais: a vontade, a sensação e a razão. Estas faculdades se distinguem do nosso corpo, que é sólido e extenso, de modo que possuímos, necessariamente, uma alma inextensa e espiritual. Feita esta consideração, o ecletismo não pergunta como a nossa alma deve ser constituída para ser sensível, nem se a vontade e a razão, que são ambas ativas, não são duas manifestações de um mesmo princípio virtual. São perguntas que não o inquietam. Ele apenas sustenta que, dessas três faculdades, só a vontade de fato nos pertence, pois só ela é o resultado de uma força substancial inextensa, que é o princípio primordial do nosso eu. Aos seus olhos, a sensibilidade não passa de efeito do choque resultante da ação que a força do mundo exterior exerce sobre a nossa, por meio do nosso organismo. Mas, também, o ecletismo não pesquisa como a nossa força inextensa se liga ao nosso organismo, nem como, nesse isolamento inextenso, ela pode receber o choque, assim como não explica como podemos ser sensíveis. São pequenos mistérios que não poderiam detê-lo.
A razão, conforme o Sr. Cousin, é a faculdade soberana do conhecimento, mas é impessoal, isto é, não nos pertence, embora dela nos sirvamos. Dizer minha razão, segundo ele, é uma insensatez, pela mesma razão por que não se diz minha verdade. Tal motivo não nos parece muito concludente, mas, provavelmente, a falta é nossa. Com efeito, em seu sistema, a razão é o conjunto das verdades necessárias e universais, tais como os princípios da causalidade, da substância, da unidade, do verdadeiro, etc. A coleção destes princípios forma, pois, segundo ele, a razão divina, da qual participamos pela vontade inefável do Todo-Poderoso. Mas é aí que se deve crer sob palavra, pois não vimos precisamente como uma coleção de verdades, por mais universais que sejam, poderia constituir a razão divina e humana. Vulgarmente as verdades são leis e a razão é uma faculdade. Ora, eu vejo o Sol, mas jamais a faculdade de ver foi tomada pelo Sol, nem pelo menor de seus raios. Eis, pois, aí um novo mistério, a juntar aos precedentes; de sorte que, nessa doutrina, nada se explica por si, nada se liga e nossa alma aí só é representada como um conjunto heterogêneo de faculdades, de qualidades, de funções distintas, ligadas ao acaso, como folhas esparsas que tivessem sido reunidas num volume, sob o título pomposo de Doutrina filosófica do século XIX. O segundo prefácio da terceira edição dos Fragmentos filosóficos lhe trazem um resumo, interessante sob vários aspectos.
De acordo com estas considerações, podem julgar-se as causas que fazem da filosofia espiritualista oficial, apesar de suas boas intenções, uma doutrina bizarra e indigesta. Estaríamos mesmo autorizados a tratá-la mais duramente, se se perdessem de vista os eminentes serviços que ela prestou ao espírito francês, desviando-o de um sensualismo imoral e de um cepticismo desesperador. Aí estavam, evidentemente, as principais preocupações do ilustre filósofo no começo de sua brilhante carreira; e, estudando suas obras notáveis, vê-se que Condillac e Kant foram seus principais adversários. Assim, esta luta é a parte mais importante de seus trabalhos. Ao contrário, seu próprio sistema nos parece muito defeituoso e sua moral, sua teodiceia † e sua ontologia † contêm numerosos pontos muito controvertidos. A verdade é uma flor tão delicada! o menor sopro do erro a emurchece em nossas mãos e a reduz a um pó pernicioso e ofuscante. É, sobretudo, no calor do combate ou na emoção da ambição que se torna difícil conservar a calma de espírito e a delicadeza do sentimento de evidência, de modo que o homem preocupado é facilmente arrastado a ultrapassar os limites da verdadeira sabedoria. Felizmente o Criador nos reservou fatos, circunstâncias, acontecimentos providenciais, bastante chocantes para nos reconduzir ao bom caminho. E, certamente, as doutrinas e os fatos sobre os quais se funda o Espiritismo estão neste número. Que os nossos grandes e sábios filósofos não o repilam sob o fútil pretexto de superstição. Que os estudem sem prevenção! Neles reconhecerão a natureza extensa e sólida de nossa alma, sua preexistência e sua perpetuidade. Nele encontrarão uma moral suave e salutar, apropriada a reconduzir todo o mundo ao bem. Se, então, seu espírito pedir para dele se dar conta, que se atirem francamente à obra, que examinem cientificamente os seus princípios e consequências. E, então, talvez o princípio da dualidade da essência da alma lhes apareça em todo o seu esplendor e em toda a sua força, porque, parece-nos, ele lança uma viva luz sobre os segredos íntimos do nosso ser. É o que continuaremos a examinar dentro de pouco tempo.
F. Herrenschneider.