1. — Foi comunicada uma carta endereçada de Tonnay-Charente † (Charente-Inférieure) ao Sr. Allan Kardec, contendo respostas ditadas a um médium daquela cidade, sobre perguntas das mais delicadas dos dogmas da Igreja. Tais perguntas, dirigidas ao Espírito de Jesus, filho de Deus, evocado para tal fim, são estas:
1º O inferno é eterno?
2º Poderíeis pôr ao alcance de minha inteligência a explicação que vos pedi sobre a ceia que precedeu a vossa paixão?
3º Por que se realizou a vossa paixão?
4º Que devo pensar da comunhão? Estais na hóstia, meu Jesus?
5º Que tem de comum o poder temporal com o poder espiritual para não se poderem separar?
6º Que tem o amor de tão precioso para estar no coração de todos os homens?
7º O que é a História Sagrada e quem a fez?
8º O que significam estas palavras: história sagrada?
Pede o autor da carta que a Sociedade se pronuncie em sessão solene sobre o valor das respostas que ele obteve e sobre a autenticidade do nome do Espírito que as deu.
Depois de haver examinado o assunto, o comitê propõe a resolução seguinte, cuja leitura é feita à Sociedade, que a aprova calorosamente, por unanimidade, e pede sua inserção na Revista Espírita para instrução de todos, e a fim de que se compreenda a inutilidade, no futuro, de se dirigir perguntas sobre temas semelhantes.
Se o autor se tivesse limitado à primeira pergunta, bastaria enviá-la a O Livro dos Espíritos, onde ela é tratada. Aliás, a questão é mal formulada; não se sabe se ele entende a eternidade como um lugar de expiação, ou das penas infligidas a cada indivíduo.
A Sociedade Espírita de Paris, † depois de tomar conhecimento da carta do Sr.…, e das perguntas sobre as quais deseja que ela se pronuncie em sessão solene, sente-se no dever de lembrar ao autor da carta que o fim essencial do Espiritismo é a destruição das ideias materialistas e o melhoramento moral do homem; que ele não se ocupa de modo algum de discutir os dogmas particulares de cada culto, deixando sua apreciação à consciência de cada um; que desconhecer tal fim seria dele fazer instrumento de controvérsia religiosa, cujo efeito seria perpetuar um antagonismo que ele tende a fazer desaparecer, chamando todos os homens para a bandeira da caridade, levando-os a não verem em seus semelhantes senão irmãos, sejam quais forem suas crenças. Se, em certas religiões, há dogmas questionáveis, é preciso deixar ao tempo e ao progresso das luzes o cuidado de sua depuração; o perigo dos erros que poderiam encerrar desaparecerá à medida que os homens fizerem do princípio da caridade a base de sua conduta. O dever dos verdadeiros espíritas, dos que compreendem o fim providencial da doutrina, é, pois, antes de tudo, dedicar-se a combater a incredulidade e o egoísmo, que são as verdadeiras chagas da Humanidade, e a fazer prevalecer, tanto pelo exemplo quanto pela teoria, o sentimento de caridade, que deve ser a base de toda religião racional, e servir de guia nas reformas sociais. As questões de fundo devem passar à frente das questões de forma. Ora, as questões de fundo são as que têm por objetivo tornar melhores os homens, considerando-se que todo progresso social ou outro não pode ser senão consequência do melhoramento das massas; é para isto que tende o Espiritismo e por aí prepara os caminhos a todos os gêneros de progressos morais. Querer agir de outra forma é começar o edifício pela cumeeira, antes de lhe assentar os alicerces; é semear em terreno que não foi arroteado.
Como aplicação dos princípios acima, a Sociedade Espírita de Paris se declara impedida, por seus regulamentos, de interferir em todas as questões de controvérsia religiosa, de política e de economia [organização] social, e não cederá a nenhuma provocação que tenda a desviá-la desta linha de conduta.
Em razão disto não emitirá, nem oficial nem oficiosamente, opinião quanto ao valor das respostas ditadas ao médium…, respostas essencialmente dogmáticas e, mesmo, políticas, e, ainda menos, fazê-las objeto de uma discussão solene, como pede o autor da carta.
Quanto ao livro que deve tratar dessas questões, e cuja publicação é prescrita pelo Espírito que a ditou, a Sociedade não vacila em declarar que considera tal publicação inoportuna e perigosa, naquilo que poderia fornecer armas aos inimigos do Espiritismo. Por conseguinte, crê do seu dever desaprová-la, como desaprova toda publicação própria a falsear a opinião sobre o fim e as tendências da doutrina.
No que respeita à natureza do Espírito que ditou aquelas comunicações, a Sociedade julga dever lembrar que o nome que toma um Espírito jamais é garantia de sua identidade; que não se poderia ver uma prova de superioridade nalgumas ideias justas que emita, se com estas encontramos outras falsas. Os Espíritos verdadeiramente superiores são lógicos e consequentes em tudo o que dizem. Ora, não é este o caso de que se trata. Sua pretensão de crer que esse livro deve ter como consequência levar o governo a modificar certas partes de sua política, bastaria para fazer duvidar de sua elevação e, melhor ainda, do nome que toma, porque isto não é racional. Sua insuficiência ressalta ainda de dois outros fatos não menos característicos.
O primeiro é que é completamente falso que o Sr. Allan Kardec tenha recebido missão, como pretende o Espírito, de examinar e fazer publicar o livro de que se trata. Se tem a missão de o examinar, não pode ser senão para fazer sentir os inconvenientes e combater a sua publicação.
O segundo fato está na maneira pela qual o Espírito exalta a missão do médium, o que jamais fazem os bons Espíritos, e o que fazem, ao contrário, os que querem impor-se, captando-lhes a confiança por meio de belas palavras, com ajuda das quais esperam fazer passar o resto.
Em resumo, torna-se evidente para a Sociedade que o nome com que se adorna o Espírito, que diz ser o Cristo, é apócrifo. Ela se julga no dever de exortar o autor da carta, bem como o seu médium, a não se deixarem iludir por tais comunicações e a se restringirem ao objetivo essencial do Espiritismo.