Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Capítulo III

Janeiro - Médiuns curadores

Janeiro

Um oficial de caçadores, espírita de longa data, e um dos numerosos exemplos de reformas morais que o Espiritismo pode operar, nos transmite estes detalhes:

“Caro mestre,

“Aproveitamos as longas horas de inverno para nos entregarmos com ardor ao desenvolvimento de nossas faculdades mediúnicas. A tríade do 4.º regimento de caçadores, sempre unida, sempre viva, inspira-se em seus deveres, e ensaia novos esforços. Sem dúvida desejais conhecer o objeto de nossos trabalhos, a fim de saber se o campo que cultivamos não é estéril. Podereis julgá-lo pelos detalhes seguintes:

“De alguns meses para cá, nossos trabalhos têm por objeto o estudo dos fluidos. Esse estudo desenvolveu em nós a mediunidade curadora, de forma que agora a aplicamos com sucesso. Há alguns dias, uma simples emissão fluídica de cinco minutos, com minha mão, bastou para tirar uma nevralgia violenta.

“Há vinte anos a Sra. P... estava afetada por uma hiperestesia aguda ou exagerada sensibilidade da pele, moléstia que há quinze anos a retinha em seu quarto. Ela mora numa pequena cidade vizinha, e tendo ouvido falar de nosso grupo espírita, veio buscar alívio junto de nós. Ao cabo de trinta e cinco dias ela voltou para casa completamente curada. Durante esse tempo ela recebeu diariamente um quarto de hora de emissão fluídica, com o concurso de nossos guias espirituais.

“Ao mesmo tempo estendíamos os nossos cuidados a um epiléptico, afetado por esse mal há vinte e sete anos. As crises se repetiam quase todas as noites, durante as quais sua mãe passava longas horas à sua cabeceira. Trinta e cinco dias bastaram para essa cura importante, e como ficou feliz aquela mãe, levando seu filho radicalmente curado! Nós nos revezávamos os três de oito em oito dias. Para a emissão do fluido, ora colocávamos a mão no vazio do estômago do doente, ora sobre a nuca, na raiz do pescoço. Cada dia o doente podia constatar alguma melhora. Nós mesmos, após a evocação e durante o recolhimento, sentíamos o fluido exterior nos invadir, passar em nós e escapar-se dos dedos estirados e do braço distendido para o corpo do paciente que tratávamos.

“Neste momento estamos prestando atendimento a um segundo epiléptico. Desta vez a moléstia talvez seja mais rebelde, por ser hereditária. O pai deixou nos quatro filhos o germe dessa afecção. Enfim, com a ajuda de Deus e dos bons Espíritos, esperamos reduzi-la nos quatro.

“Caro mestre, reclamamos o socorro de vossas preces e das preces dos irmãos de Paris. Esse auxílio será para nós um encorajamento e um estimulante para os nossos esforços. Depois, vossos bons Espíritos podem vir em nosso auxílio, tornar o tratamento mais salutar e abreviar a sua duração.

“Não aceitamos como recompensa, como podeis imaginar, e ela deve ser suficiente, senão a satisfação de ter feito o nosso dever e de ter obedecido ao impulso dos bons Espíritos. O verdadeiro amor ao próximo trás consigo uma alegria sem mescla e deixa em nós algo de luminoso, que encanta e eleva a alma. Assim procuramos, tanto quanto nos permitem nossas imperfeições, compenetrarmo-nos dos deveres do verdadeiro espírita, que não devem ser senão a aplicação dos preceitos evangélicos.

“O Sr. G... de L.... deve trazer-nos o seu cunhado, que um Espírito malévolo subjuga há dois anos. Nosso guia espiritual Lamennais nos encarrega do tratamento dessa rebelde obsessão. Deus nos daria também o poder de expulsar os demônios? Se assim fosse, teríamos que nos humilhar ante tão grande favor, em vez de nos orgulharmos. Quanto maior ainda não seria para nós a obrigação de nos melhorarmos, para testemunhar-lhe o nosso reconhecimento e para não perdermos dons tão preciosos?”

Lida esta carta tão interessante na Sociedade Espírita de Paris, na sessão de 18 de dezembro de 1863, um dos nossos bons médiuns obteve espontaneamente as duas comunicações seguintes:

“Existindo no homem a vontade em diferentes graus de desenvolvimento, em todas as épocas, ela tanto serviu para curar quanto para aliviar. É lamentável sermos forçados a constatar que ela também foi fonte de muitos males, mas isto é uma das consequências do abuso que muitas vezes as pessoas têm feito de seu livre-arbítrio.

“A vontade tanto desenvolve o fluido animal quanto o espiritual, porque, como todos sabeis agora, há vários gêneros de magnetismo, em cujo número estão o magnetismo animal e o magnetismo espiritual que, conforme a ocorrência, pode pedir apoio ao primeiro. Um outro gênero de magnetismo, muito mais poderoso ainda, é a prece que uma alma pura e desinteressada dirige a Deus.

“A vontade muitas vezes foi mal compreendida. Em geral o que magnetiza não pensa senão em desdobrar sua força fluídica, em derramar seu próprio fluido sobre o paciente submetido aos seus cuidados, sem se preocupar se há ou não uma Providência interessada no caso tanto ou mais que ele. Agindo sozinho, ele não pode obter senão o que a sua força sozinha pode produzir, ao passo que nossos médiuns curadores começam por elevar sua alma a Deus e por reconhecer que por si mesmos nada podem. Eles fazem, por isto mesmo, um ato de humildade, de abnegação, e então, confessando-se fracos por si mesmos, Deus, em sua solicitude, lhes envia poderosos socorros que o primeiro não pode obter, porque ele se julga suficiente para o empreendimento. Deus sempre recompensa a humildade sincera, elevando-a, ao passo que rebaixa o orgulho. Esse socorro que ele envia, são os bons Espíritos que vêm penetrar o médium com seu fluido benéfico, que este transmite ao doente. Também é por isto que o magnetismo empregado pelos médiuns curadores é tão potente e produz essas curas qualificadas de miraculosas, e que são devidas simplesmente à natureza do fluido derramado sobre o médium. Enquanto o magnetizador ordinário se esgota, por vezes em vão, a fazer passes, o médium curador infiltra um fluido regenerador pela simples imposição das mãos, graças ao concurso dos bons Espíritos. No entanto, esse concurso só é concedido à fé sincera e à pureza de intenção.”

MESMER

(Médium, Sr. Albert)



“Uma palavra sobre os médiuns curadores, dos quais acabais de falar. Eles estão todos nas mais louváveis disposições; eles têm a fé que transporta montanhas, o desinteresse que purifica os atos da vida e a humildade que os santifica.

“Que eles perseverem na obra de beneficência que empreenderam; que se lembrem bem que aquele que pratica as leis sagradas que o Espiritismo ensina, aproxima-se constantemente do Criador. Que, ao empregarem sua faculdade, a prece, que é a vontade mais forte, seja sempre o seu guia, seu ponto de apoio.

“Em toda a sua existência, o Cristo vos deu a mais irrefutável prova da mais firme vontade, mas era a vontade do bem e não a do orgulho. Quando, por vezes, ele dizia eu quero, essa palavra estava cheia de unção. Seus apóstolos, que o cercavam, sentiam abrir-se seus corações a esta palavra santa.

“A doçura constante do Cristo, sua submissão à vontade de seu Pai, sua perfeita abnegação, são os mais belos modelos de vontade que se pode propor como exemplo.”

PAULO, apóstolo.

(Médium: Sr. Albert)


Algumas explicações facilmente darão a compreender o que se passa nesta circunstância. Sabe-se que o fluido magnético ordinário pode dar a certas substâncias propriedades particulares ativas. Neste caso, ele age de certo modo como agente químico, modificando o estado molecular dos corpos. Não há, pois, nada de extraordinário no fato de ele ter a capacidade de modificar o estado de certos órgãos, mas compreende-se igualmente que sua ação, mais ou menos salutar, deve depender de sua qualidade, daí as expressões “bom ou mau fluido; fluido agradável ou penoso.”

Na ação magnética propriamente dita, é o fluido pessoal do magnetizador que é transmitido, e sabe-se que esse fluido, que não é senão o perispírito, participa sempre, mais ou menos, das qualidades materiais do corpo, ao mesmo tempo que sofre a influência moral do Espírito. É, pois, impossível que o fluido próprio de um encarnado seja de uma pureza absoluta, razão pela qual sua ação curativa é lenta, por vezes nula, outras vezes até nociva, porque ele pode transmitir ao doente princípios mórbidos.

Considerando-se que um fluido é suficientemente abundante e enérgico para produzir efeitos instantâneos de sono, de catalepsia, de atração ou de repulsão, absolutamente não se segue que ele tenha as necessárias qualidades para curar. É a força que derruba, mas não o bálsamo que suaviza e restaura. Dessa forma, há Espíritos desencarnados de ordem inferior cujo fluido pode até mesmo ser muito maléfico, o que os espíritas a cada passo têm ocasião de constatar.

Somente nos Espíritos superiores o fluido perispiritual está despojado de todas as impurezas da matéria; está, de certo modo, quintessenciado; sua ação, por conseguinte, deve ser mais salutar e mais pronta: é o fluido benfazejo por excelência. Como ele não pode ser encontrado entre os encarnados, nem entre os desencarnados vulgares, então é preciso pedi-lo aos Espíritos elevados, como se vai procurar em terras distantes os remédios que se não encontram na própria.

O médium curador emite pouco de seu próprio fluido. Ele sente a corrente do fluido estranho que o penetra e para a qual serve de condutor. É com esse fluido que ele magnetiza, e aí está o que caracteriza o magnetismo espiritual e o distingue do magnetismo animal: um vem do homem, o outro, dos Espíritos. Como se vê, aí nada existe de maravilhoso, mas um fenômeno resultante de uma lei da Natureza que não era conhecida.

Para curar pela terapêutica ordinária não bastam os primeiros medicamentos que surgem. São necessários medicamentos puros, não avariados ou adulterados, e convenientemente preparados. Pela mesma razão, para curar pela ação fluídica, os fluidos mais depurados são os mais saudáveis. Como esses fluidos benéficos são uma propriedade dos Espíritos superiores, então é o concurso deles que é preciso obter, por isso a prece e a invocação são necessárias. Mas para orar, e sobretudo para orar com fervor, é preciso ter fé. Para que a prece seja escutada, é preciso que seja feita com humildade e ditada por um real sentimento de benevolência e de caridade. Ora, não há verdadeira caridade sem devotamento, nem devotamento sem desinteresse. Sem estas condições, o magnetizador, privado da assistência dos bons Espíritos, fica reduzido às suas próprias forças, por vezes insuficientes, ao passo que com o concurso deles, elas podem ser centuplicadas em poder e em eficácia. Entretanto, não há licor, por mais puro que seja, que não se altere ao passar por um vaso impuro. Assim acontece com o fluido dos Espíritos superiores, ao passar pelos encarnados. Daí, para os médiuns nos quais se revela essa preciosa faculdade, e que querem vê-la crescer e não se perder, a necessidade de trabalhar por seu melhoramento moral.

Entre o magnetizador e o médium curador há, pois, uma diferença capital, porque o primeiro magnetiza com o seu próprio fluido, e o segundo com o fluido depurado dos Espíritos. Daí se segue que os Espíritos dão o seu concurso a quem querem e quando querem; que podem recusá-lo e, consequentemente, tirar a faculdade daquele que dela abusasse ou a desviasse de seu fim humanitário e caridoso para dela fazer comércio.

Quando Jesus disse aos apóstolos: “Ide! Expulsai os demônios, curai os doentes”, ele acrescentou: “Dai de graça o que de graça recebestes.”

Os médiuns curadores tendem a multiplicar-se, como anunciaram os Espíritos, e isto com o objetivo de propagar o Espiritismo, pela impressão que esta nova ordem de fenômenos não pode deixar de produzir nas massas, porque não há quem não ligue para a sua saúde, mesmo os mais incrédulos. Assim, pois, quando virem que é possível obter com a intervenção dos Espíritos o que a Ciência não pode dar, hão de convir que há uma força fora do nosso mundo. Dessa forma, a Ciência será conduzida a sair da via exclusivamente material em que permaneceu até hoje. Quando os magnetizadores antiespiritualistas ou antiespíritas virem que existe um magnetismo mais poderoso que o seu, eles serão forçados a remontar à verdadeira causa.

Contudo, importa premunir-se contra o charlatanismo, que não deixará de tentar explorar em proveito próprio esta nova faculdade. Há para isto um meio simples, o de lembrar-se que não há charlatanismo desinteressado, e que o desinteresse absoluto, material e moral, é a melhor garantia de sinceridade. Se há uma faculdade dada por Deus com esse objetivo santo, sem a menor dúvida é esta, porque ela exige imperiosamente o concurso dos Espíritos superiores, e esse concurso não pode ser adquirido pelo charlatanismo. É para que se fique bem conscientizado quanto à natureza toda especial desta faculdade que a descrevemos com alguns detalhes.

Conquanto tenhamos podido constatar-lhe a existência por fatos autênticos, muitos dos quais passados aos nossos olhos, pode-se dizer que ela ainda é rara, e que só existe parcialmente nos médiuns que a possuem, quer por não terem todas as qualidades requeridas para a sua posse em toda a plenitude, quer por estar ela ainda em seu começo. É por isto que até hoje os fatos não tiveram muita repercussão, no entanto, não tardarão a tomar desenvolvimentos de natureza a chamar a atenção geral. Daqui a poucos anos ela se revelará nalgumas pessoas predestinadas para isto, com uma força que triunfará de muitas obstinações, mas estes não são os únicos fatos que o futuro nos reserva, e pelos quais Deus confundirá os orgulhosos e os convencerá de sua impotência. Os médiuns curadores são um dos mil meios providenciais para atingir este objetivo e apressar o triunfo do Espiritismo.

Compreende-se facilmente que esta qualificação não pode ser dada aos médiuns escreventes que recebem receitas médicas de certos Espíritos.

Não encaramos a mediunidade curadora senão do ponto de vista fenomênico e como meio de propagação, mas não como recurso habitual. Num próximo artigo trataremos de sua possível aliança com a medicina e com o magnetismo ordinários.


Novembro Conversas familiares de além-túmulo

Novembro

Pierre Legay. (1ª conversa.) — (2ª conversa.) — (3ª conversa.) — Sobre os Espíritos que ainda se julgam vivos, por Santo Agostinho. — Pierre Legay, dito Grand-Pierrot. (Continuação.)


(Paris, 16 de agosto de 1864. – Médium: Sra. Delanne.)

1. — Pierre Legay era um rico cultivador um pouco interesseiro, falecido há dois anos e parente da Sra. Delanne. Era conhecido na região pela alcunha de Grand-Pierrot.

A conversa seguinte mostra um dos ângulos mais interessantes do mundo invisível, o dos Espíritos que ainda se julgam vivos. Foi obtida pela Sra. Delanne, que a comunicou à Sociedade de Paris. O Espírito se exprime exatamente como o fazia em vida; a própria trivialidade da linguagem é uma prova de identidade. Tivemos de suprimir algumas expressões que lhe eram familiares, por causa de sua crueza.


2. — [1ª conversa.]


Diz a Sra. Delanne: “Desde algum tempo ouvíamos batidas à nossa volta; presumindo que pudesse ser um Espírito, pedimos-lhe se desse a conhecer. Ele logo escreveu: Pierre Legay, cognominado Grand-Pierrot.


1. P. – Eis-vos, então, em Paris, Grand-Pierrot, vós que tínheis tanta vontade de vir aqui?

Resposta. – Estou aqui, meu caro amigo; vim só, já que ela veio sem mim. E, contudo, eu lhe dissera tanto que me prevenisse… mas, enfim, aqui estou. Estava aborrecido, porque não me deram atenção.


Observação. – O Espírito alude à mãe da Sra. Delanne, que desde algum tempo tinha vindo morar em Paris, na casa de sua filha. Ele a designa por um epíteto que lhe era habitual e que substituímos por ela.


2. P. – Sois vós que bateis à noite?

Resposta. – Onde quereis que eu vá? Não posso deitar-me em frente à porta.


3. P. – Então vos deitais em nossa casa?

Resposta. – Mas, evidentemente. Ontem fui passear convosco (ver as iluminações). Vi tudo. Ah! como aquilo é bonito! Ainda bem! Pode dizer-se que fizeram belas coisas. Asseguro-vos que estou muito contente; não lamento o meu dinheiro.


4. P. – Por que caminho viestes a Paris? Então pudestes abandonar as vossas paragens?

Resposta. – Mas, com os diabos! eu não posso cavar e estar aqui. Estou muito contente por ter vindo. Perguntais como vim; mas vim pela estrada de ferro.


5. P. – Com quem estáveis?

Resposta. – Bem, palavra de honra! eu não os conhecia.


6. P. – Quem vos deu o meu endereço? Dizei, também, de onde vinha a simpatia que tínheis por mim.

Resposta. – Mas quando fui à casa dela (a mãe da Sra. Delanne) e não a encontrei, perguntei ao guarda onde ela estava. Ele me disse que estava aqui: então eu vim. E, depois, vede, meu amigo, gosto de vós porque sois um bom rapaz; agradastes-me, sois franco e eu gosto de todas essas crianças. Vede, quando se gosta dos parentes também se gosta das crianças.


7. P. – Dizei-me o nome da pessoa que guarda a casa de minha sogra, já que ela tem as chaves no bolso.

Resposta. – Quem lá encontrei? Mas foi o pai Colbert, que me disse que ela lhe havia dito que prestasse atenção.


8. P. – Vedes aqui o meu sogro, papai Didelot?

Resposta. – Como quereis que o veja, se não está aqui? Sabeis perfeitamente que ele morreu.


3. — (2ª conversa, 18 de agosto de 1864.)


Tendo ido passar o dia em Châtillon, o Sr. e a Sra. Delanne ali fizeram a evocação de Pierre Legay.


9. P. – Então, viestes a Châtillon?

Resposta. – Mas eu vou sigo por toda parte.


10. P. – Como viestes aqui?

Resposta. – Sois engraçados! Vim na vossa viatura.


11. P. – Não vos vi pagar a passagem!

Resposta. – Subi com Marianne e depois vossa mulher. Pensei que a tínheis pago. Estava na parte superior; nada me pediram. Não pagastes? Por que o condutor não reclamou?


12. P. – Quanto custou a passagem de trem de Ligny a Paris?

Resposta. – Na estrada de ferro não é a mesma coisa. Fui a pé de Tréveray a Ligny; depois tomei o comboio e paguei ao condutor.


13. P. – Foi mesmo ao condutor que pagastes?

Resposta. – A quem queríeis que eu tivesse pago? Mas, meu primo, então acreditais que eu não tenha dinheiro? Há muito tempo havia reservado dinheiro para vir. Não é por eu não ter pago a passagem que devem pensar que não tenho dinheiro. Sem isto eu não teria vindo.


14. P. – Mas não me respondestes quanto gastastes no percurso em estrada de ferro de Nançois-le-Petit até Paris.

Resposta. – Mas, b… paguei como os outros. Dei 20 francos e me devolveram 3 francos e sessenta centavos. Vede quanto é.


Observação. – A soma de 16 fr. e 40 c. é, de fato, a marcada no guia de preços da estrada de ferro, o que ignorava o casal Delanne.


15. P. – Quanto tempo levastes na estrada de ferro de Nançois a Paris?

Resposta. – Tanto quanto os outros. Não fizeram a locomotiva funcionar mais depressa para mim do que para os demais. Aliás, eu não podia achar o tempo longo; jamais tinha viajado de trem e pensava que Paris era muito mais longe. O que me espanta mais é essa velhaca (a sogra do Sr. D…), que aí vem tantas vezes. Por Deus! estou contente de poder correr convosco. Apenas muitas vezes não respondeis. Compreendo: vossos negócios vos sobrecarregam muito. Ontem não ousei regressar convosco pela manhã (a casa comercial onde o Sr. D… está empregado) e fui visitar o cemitério de Montmartre, creio; não é assim que o chamais? Precisais dizer-me os nomes para que possa contá-los quando lá voltar. (Com efeito, o Sr. e a Sra. Delanne tinham ido pela manhã ao cemitério de Montmartre).


16. P. – Visto que nada vos prende à região, pensais em partir logo?

Resposta. – Só depois de ter visto tudo, já que estou aqui. E, depois, palavra de honra, eles bem podem mexer um pouco os outros (seus filhos); farão como quiserem. Quando eu não estiver mais aqui, terão de passar sem mim. Que dizeis, primo?


17. P. – O que achais do vinho de Paris? e da comida?

Resposta. – Não é melhor do que aquele que vos fiz beber (O Espírito faz alusão a uma circunstância em que fez o Sr. D… beber vinho engarrafado há vinte e cinco anos); contudo não é mau. Quanto à comida, tanto faz; muitas vezes como pão ao vosso lado. Não gosto de sujar um prato; não vale a pena, quando não estamos habituados. Por que fazer cerimônias?


18. P. – Então onde dormis? não notei vosso leito.

Resposta. – Chegando, Marianne foi a um quarto escuro; pensei que fosse para mim; deitei-me lá. Falei várias vezes a todos.


19. P. – Em vossa idade, não temeis ser atropelado nas ruas de Paris?

Resposta. – Ah! meu primo, o que mais me aborrece são esses tais de carros; por isso, não deixo as calçadas.


20. P. – Há quanto tempo estais em Paris?

Resposta. – Sabeis perfeitamente que cheguei quinta-feira última; creio que há oito dias.


21. P. – Como não vi vossa mala, se precisardes de roupa branca não vos constrangeis.

Resposta. – Tomei duas camisas; é o bastante; quando estiverem sujas, eu voltarei para casa; gostaria de não vos incomodar.


22. P. – Quereis dizer o que vos disse o pai Colbert antes de vossa partida para Paris?

Resposta. – Ele está na casa de Marianne há um bom tempo. Vendendo-a, quis ainda ficar por lá. Diz que não perturba, pois a guarda.


23. P. – Dissestes ontem que não víeis meu sogro Didelot, porque ele morreu. Como, então, vedes tão bem o pai Colbert, que também está morto há pelo menos trinta anos?

Resposta. – Ah! perguntais o que ignoro; não havia refletido nisto. O que é certo é que ele lá está bem tranquilo; mais não vos posso dizer.


Observação. – O pai Colbert era o antigo proprietário da casa da mãe da Sra. Delanne. Parece que desde sua morte ficou na casa, da qual se constituiu guarda, e que, também ele, se julga ainda vivo. Assim, esses dois Espíritos, Colbert e Pierre Legay, se veem e conversam como se ainda pertencessem a este mundo, não se dando conta de sua situação.


4. — (3ª conversa, 19 de agosto de 1864.)


24. P. – (Ao guia espiritual do médium.) Gostaríamos que désseis algumas instruções a respeito do Espírito Legay, e dizer-nos se já é tempo de fazer que compreenda sua verdadeira situação.

Resposta. – Sim, meus filhos, desde ontem ele está perturbado, por causa de vossas perguntas; tudo para ele é confuso quando quer saber, pois ainda não reclama a proteção de seu anjo-da-guarda.


25. P. – (A Legay.) Estais aqui?

Resposta. – Sim, meu primo, mas tudo isto é muito estranho. Não sei o que isto quer dizer. Não te vás sem mim, Marianne.


26. P. – Refletistes no que pedimos que ontem dissésseis a respeito do pai Colbert, que vistes vivo, quando, na verdade, ele está morto?

Resposta. – Não posso saber como isto acontece. Apenas já ouvi dizer que havia aparições. Por Deus! creio que ele é um dos tais. Digam, contudo, o que quiserem: eu o vi perfeitamente. Mas estou cansado; preciso de um pouco de tranquilidade.


27. P. – Credes em Deus e fazeis vossas preces diárias?

Resposta. – Juro que sim; se isto não faz bem, não me pode fazer mal.


28. P. – Credes na imortalidade da alma?

Resposta. – Oh! isto é diferente. Não posso pronunciar-me sobre isto; duvido.


29. P. – Se eu vos desse uma prova da imortalidade da alma, acreditaríeis?

Resposta. – Oh! então os parisienses conhecem tudo? Só peço isto. Como fareis?


30. P. – (Ao guia do médium.) Podemos fazer a evocação do pai Colbert, para lhe provar que está morto?

Resposta. – Não precisa ir tão depressa; trazei-o de volta suavemente. Depois este outro Espírito vos fatigará muito esta noite.


31. P. – (A Legay.) Onde estais colocado, que não vos vejo?

Resposta. – Não me vedes?! Ah! isto é demais! Então estais cego?


32. P. – Dai-vos conta da maneira por que nos falais, já que fazeis minha mulher escrever?

Resposta. – Eu? juro que não.


5. — (Várias perguntas novas foram dirigidas ao Espírito e ficaram sem resposta. Evocaram seu anjo-da-guarda, e um dos guias do médium respondeu o que se segue).

“Meus amigos, sou eu que venho responder, pois o anjo-da-guarda deste pobre Espírito não está com ele; só virá quando ele próprio o chamar e rogar ao Senhor que lhe conceda a luz. Posto ainda estivesse sob o império da matéria e não quisesse escutar a voz de seu anjo-da-guarda, este se afastou dele, já que teimava em ficar estacionário. Com efeito, não era ele que te fazia escrever; falava como de hábito, persuadido de que o escutáveis; mas era seu Espírito familiar que te conduzia a mão. Para ele, conversava com teu marido; tu escrevias e tudo isto lhe parecia muito natural. Mas as vossas últimas perguntas e vossos pensamentos o levaram a Tréveray; está perturbado; orai por ele e mais tarde o chamareis; ele voltará depressa. Orai por ele; nós oraremos convosco.”


6. — Já vimos alguns exemplos de Espíritos que se julgavam ainda vivos. Pierre Legay nos mostra essa fase da vida dos Espíritos da mais característica maneira. Os que se acham neste caso parecem ser mais numerosos do que se pensa; em vez de constituírem exceção, de oferecerem uma variedade no castigo, seria quase uma regra, um estado normal para os Espíritos de certa categoria. Assim, teríamos à nossa volta não só os Espíritos que têm consciência da vida espiritual, mas uma multidão de outros que, a bem dizer, vivem uma vida semimaterial, se julgam ainda neste mundo, continuam a vagar ou pensam consagrar-se às suas ocupações terrenas. Entretanto, seria um equívoco assimilá-los em tudo aos encarnados, porque se nota em suas atitudes e em suas ideias algo de vago e de incerto, que não é peculiar à vida corporal; é um estado intermediário, que nos dá a explicação de certos efeitos nas manifestações espontâneas e de certas crenças antigas e modernas.

Um fenômeno que pode parecer mais bizarro e não deixa de fazer sorrir os incrédulos é o dos objetos materiais que o Espírito julga possuir. Compreende-se que Pierre Legay se imagine subindo no trem, porque a estrada de ferro é uma coisa real, existe; mas compreende-se menos que ele creia ter dinheiro e pago a sua passagem.

Esse fenômeno encontra sua solução nas propriedades do fluido perispiritual e na teoria das criações fluídicas [v. Mobiliário de além-túmulo], princípio importante que dá a chave de muitos mistérios do mundo invisível.

Seja pela vontade, seja pelo pensamento, o Espírito opera no fluido perispiritual, que não passa de uma concentração do fluido cósmico ou elemento universal, uma transformação parcial que produz o objeto que deseja. Tal objeto é para nós uma aparência, mas para o Espírito é uma realidade. É assim que um Espírito, desencarnado recentemente, um dia apresentou-se numa reunião espírita a um médium vidente, com um cachimbo na boca, fumando. À observação que lhe fizeram, de que aquilo não era conveniente, respondeu: “Que quereis! tenho de tal modo o hábito de fumar que não posso dispensar meu cachimbo.” O que era mais singular é que o cachimbo soltava fumaça; não, naturalmente, para os assistentes, mas para o vidente.

Tudo deve estar em harmonia no mundo espiritual, como no mundo material; aos homens corporais, são precisos objetos materiais; aos Espíritos, cujo corpo é fluídico, são necessários objetos fluídicos; os objetos materiais não lhes serviriam, assim como os objetos fluídicos não serviriam aos homens corporais. Querendo fumar, o Espírito fumador criaria um cachimbo que, para ele, tinha a realidade de um cachimbo de barro. Legay queria dinheiro para pagar a passagem: seu pensamento criou a soma necessária. Para ele há realmente dinheiro, mas os homens não poderiam contentar-se com a moeda dos Espíritos. Assim se explicam as vestimentas com que se cobrem à vontade, as insígnias que usam, as diferentes aparências que podem assumir, etc.

As propriedades curativas dadas ao fluído pela vontade também se explicam por esta transformação. O fluido modificado age sobre o perispírito que lhe é similar e esse perispírito, intermediário entre o princípio material e o princípio espiritual, reage sobre a economia [o organismo], na qual representa importante papel, embora ainda desconhecido pela Ciência.

Há, pois, o mundo corporal visível com os objetos materiais, e o mundo fluídico, invisível para nós, com os objetos fluídicos. É de notar que os Espíritos de ordem inferior e pouco esclarecidos operam essas criações sem se darem conta da maneira por que neles se produz tais efeitos; eles não o podem explicar, como um ignorante da Terra é incapaz de explicar o mecanismo da visão, nem um camponês dizer como cresce o trigo.

As formações fluídicas ligam-se a um princípio geral, que será ulteriormente objeto de um desenvolvimento completo, quando tiver sido suficientemente elaborado.

O estado dos Espíritos na situação de Pierre Legay levanta várias questões. A que categoria pertencem precisamente os Espíritos que ainda se julgam vivos? A que se deve esta particularidade? A uma falta de desenvolvimento intelectual e moral? Muitos que são inferiores dão-se conta perfeitamente de seu estado e a maior parte dos que temos visto nesta situação não é dos mais atrasados. É uma punição? Talvez o seja para alguns, como para Simon Louvet, do Havre, o suicida da torre de Francisco I que, durante cinco anos, estava na apreensão da queda (Revista Espírita do mês de março de 1863); mas muitos outros não são infelizes e não sofrem, como testemunha Pierre Legay (Vide como resposta a dissertação que se segue).


Dissertações espíritas.


7. — Sobre os Espíritos que ainda se julgam vivos.


(Sociedade de Paris, 21 de julho de 1864. – Médium: Sr. Vézy.)

Já vos falamos muitas vezes das diversas provas e expiações; mas diariamente não descobris novas? Elas são infinitas, como o são os vícios da Humanidade. Como vos estabelecer a sua nomenclatura? E, contudo, vindes reclamar por um fato e eu vou tentar instruir-vos.

Nem tudo é provação na existência. A vida do Espírito continua, como já vos foi dito, desde o nascimento até o infinito; para alguns a morte não passa de simples acidente, que em nada influi sobre o destino daquele que morre. Uma telha caída, um ataque de apoplexia, uma morte violenta, muitas vezes apenas separam o Espírito de seu envoltório material; mas o invólucro perispiritual conserva, pelo menos em parte, as propriedades do corpo que acaba de sucumbir. Se eu pudesse, num dia de batalha, abrir-vos os olhos que possuís, mas dos quais não podeis fazer uso, veríeis muitas lutas continuando, muitos soldados se atirando ainda ao assalto, defendendo e atacando os redutos; ouvi-los-íeis até soltando hurras e gritos de guerra, em meio ao silêncio, e sob o véu lúgubre que se segue a um dia de carnificina. Terminado o combate, voltam a seus lares, para abraçar os velhos pais, as velhas mães, que os esperam. Para alguns, esse estado às vezes dura muito; é uma continuidade da vida terrestre, um estado misto entre a vida corporal e a vida espiritual. Por que, se foram simples e honestos, sentiriam o frio da tumba? Por que passariam bruscamente da vida à morte, da claridade do dia à noite? Deus não é injusto e deixa aos pobres de espírito esse prazer, esperando que vejam seu estado pelo desenvolvimento das próprias faculdades, e que possam passar calmamente da vida material à vida real do Espírito.

Consolai-vos, pois, vós que tendes pais, mães, irmãos ou filhos que se extinguiram sem luta. Talvez lhes seja permitido ainda que seus lábios se aproximem de vossas frontes. Enxugai as lágrimas: o pranto vos é doloroso e eles se admiram vendo que chorais; cercam com os braços o vosso pescoço e vos pedem que lhes sorriam. Sorri, pois, a esses invisíveis e orai para que troquem o papel de companheiros pelo de guias; para que abram as suas asas espirituais, que lhes permitirão adejar no infinito e vos trazer as suas suaves emanações.

Notai bem que não vos digo que todas as mortes repentinas fazem o Espírito cair nesse estado. Não; mas não há um só cuja matéria não tenha de lutar com o Espírito que volta a si. Houve o duelo, a carne rasgou-se, o Espírito se obscureceu no momento da separação e, na erraticidade, reconheceu a verdadeira vida.

Agora vou dizer-vos algumas palavras sobre aqueles para os quais este estado é uma provação. Oh! como ele é penoso! eles se julgam vivos e bem vivos, possuindo um corpo capaz de sentir e deleitar-se com os prazeres da Terra; porém, quando suas mãos os querem tocar, eles se desvanecem; quando querem aproximar os lábios de uma taça ou de uma fruta, os lábios se aniquilam; veem, querem tocar, mas não podem sentir nem tocar. Que bela imagem oferece o paganismo desse suplício, ao apresentar Tântalo com sede e com fome e jamais podendo tocar os lábios na fonte de água, que sussurra ao seu ouvido, ou no fruto, que parece maduro para ele! Há maldições e anátemas nos gritos desses infelizes! Que fizeram para suportar tais sofrimentos? Perguntai a Deus: é a lei, que foi escrita por ele. Quem mata a espada morrerá pela espada; quem profanou o próximo, por sua vez será profanado. A grande lei de talião estava escrita no livro de Moisés e ainda está no grande livro da expiação.

Orai, pois, incessantemente pelos que chegam à hora final; seus olhos se fecharão; dormirão no espaço como dormiram na Terra e, ao despertar, encontrarão não mais um juiz severo, mas um pai compassivo, a assinalar-lhes novas obras e novos destinos.


Santo Agostinho.


[Revista de abril de 1865.]

8 — Pierre Legay, dito Grand-Pierrot.

(Continuação. – Vide a Revista de novembro de 1864.)

Pierre Legay, parente da Sra. Delanne ofereceu-nos o singular espetáculo de um Espírito que, dois anos depois de morto, julgava-se ainda vivo, dedicava-se aos seus negócios, viajava de carro, pagava sua passagem em estradas de ferro, visitava Paris pela primeira vez, etc. Publicamos hoje a conclusão desse estado, que seria difícil de compreender se não nos reportássemos aos detalhes dados na Revista de novembro de 1864 [artigos acima].

Inutilmente o Sr. e a Sra. Delanne haviam tentado demover seu parente do erro; seu guia espiritual lhes tinha dito que esperassem, pois o momento ainda não era chegado.

Nos primeiros dias de março último, fizeram a seguinte pergunta a seu guia:

Depois da última visita de Pierre Legay, mencionada na Revista Espírita, não pudemos obter nenhuma resposta dele. Dissestes, a respeito, que quando chegasse o momento, ele próprio nos daria suas impressões. Pensais que o possa agora?

Resposta. – Sim, meus filhos; a hora é chegada. Ele vos poderá responder e vos fornecerá vários assuntos de estudos e de ensinamentos. Deus tem suas razões.


1. P. – (A Pierre Legay) Caro amigo, estás aqui?

Resposta. – Sim, meu amigo.


2. P. – Vedes o meu objetivo vos evocando hoje?

Resposta. – Sim, pois tenho, junto a mim, amigos que me instruíram sobre tudo quanto se passa de admirável neste momento na Terra. Meu Deus, como é estranho tudo isto!


3. P. – Dizeis que tendes amigos, que vos cercam e vos instruem. Podeis dizer quem são?

Resposta. – Sim, são amigos; mas não os conheci senão depois que despertei. Sabeis que dormi? Chamo dormir o que chamais morrer.


4. P. – Podeis dizer o nome de alguns desses amigos?

Resposta. – Tenho constantemente ao meu lado um homem, que antes deveria chamar um anjo, pois é tão afável, tão bom, tão belo que julgo que todos os anjos devam ser como ele. E, depois, tem Didelot (o pai da Sra. Delanne), que também está aqui. Em seguida vossos pais, meu amigo. Oh! como são bons! Ah! – como tudo isso é engraçado – encontro também nossa irmã superiora. Ela é sempre a mesma; não mudou. Mas como tudo isto é curioso!


Nota. – A irmã que o Espírito designa residia na comuna de Treveray, e havia dado as primeiras instruções à Sra. Delanne. Ela só se manifestou uma vez, três anos antes.


Olha! Também vós, jardineiro! (nome familiar dado a um tio da Sra. Delanne, que jamais se havia manifestado). Mas como eu sou tolo! Estamos em casa de vossa sobrinha. Pois bem! estou contente de vos ver. Isto me deixa à vontade, porque, palavra de honra! sou transportado não sei como desde algum tempo; vou mais rápido que por estrada de ferro e percorro o espaço sem poder me dar conta como. Sois como eu, Didelot? Ele parece achar tudo isto natural, como se já estivesse habituado. Aliás, ele o faz há mais tempo que eu (morreu há seis anos) e compreendo que esteja menos surpreso. Ah! como tudo isto é engraçado! muito engraçado! Dizei-me, vós sabeis, meu primo, convosco estou à vontade. Pois bem! Dizei-me, então, com franqueza, o que é que se chama morrer?


5. Sr. Delanne – Meu amigo, chama-se morrer deixar na Terra o corpo grosseiro, a fim de dar à alma a libertação que ela precisa para entrar na vida real, a grande vida do Espírito. Sim, estais nela, caro amigo, nesse mundo ainda desconhecido por muitos homens da Terra. Eis-vos saído da letargia ou entorpecimento que se segue à separação entre o corpo e a alma. Vedes vosso anjo-da-guarda, amigos que vos cercam; foram eles que vos trouxeram entre nós, para vos provar a imortalidade e a individualidade de vossa alma. Orgulhai-vos e sede feliz, porque, como agora vedes, a morte é a vida. Eis, também, porque atravessais o espaço com a rapidez do relâmpago e podeis conversar conosco em Paris, como se tivésseis um corpo material como o nosso. Não tendes mais esse corpo; agora só tendes um envoltório fluídico e leve, que não mais vós retém à Terra.

Pierre Legay – Singular expressão: morrer! Mas, então, dai um outro nome ao momento em que a alma deixa seu corpo na Terra, porque tal instante não é o da morte… Eu me lembro… Mal me havia desembaraçado dos laços que me retinham ao corpo e meus sofrimentos, ao invés de diminuírem, só fizeram aumentar. Via meus filhos, disputando cada um para ter a parte que lhes cabia. Via-os sem cuidarem das terras que eu lhes deixara e, então, me punha a trabalhar ainda com mais força do que nunca. Estava lá, lamentando ver que não me compreendessem; portanto, eu não estava morto. Asseguro-vos que experimentava os mesmos temores e as mesmas fadigas que quando tinha o meu corpo e, contudo, não mais o tinha. Explicai-me isto. Se é assim que se morre, é uma maneira engraçada de morrer. Dizei-me vossa ideia sobre isto e depois vos direi a minha, porque agora estes bons amigos têm a bondade de mo dizer. Vamos, meu primo, dizei a vossa ideia.


6. Sr. Delanne – Meu amigo: Como vos disse, quando os Espíritos deixam o corpo, são envolvidos num segundo corpo; este é fluídico; jamais o abandonam. Pois bem! É com esse corpo que julgáveis trabalhar, como em vida do outro. Podeis depurar esse corpo semimaterial pelo vosso desenvolvimento moral; e se a palavra morte não vos convém para precisar esse momento, chamai-o transformação, se quiserdes. Se tivestes de sofrer coisas que vos foram penosas, é que vós mesmos, em vida, talvez vos tenhais apegado demais às coisas materiais, negligenciando as espirituais, que interessam vosso futuro. (Ele estava muito interessado). É um pequeno castigo que Deus vos impôs para resgatar vossas faltas, facultando-vos os meios de vos instruirdes e abrirdes os olhos à luz.

Pierre Legay – Pois bem! meu caro, não é a este momento que se deve dar o nome de transformação, porque o Espírito não se transforma tão depressa se não for imediatamente auxiliado a se reconhecer pela prece, nem esclarecido quanto à sua verdadeira posição, quer, como acabo de dizer, orando por ele, quer evocando-o. É por isso que há tantos Espíritos, como o meu, que ficam estacionários. Para o Espírito da categoria do meu, há transição, mas não transformação; ele não se apercebe do que lhe acontece. Eu arrastei, ou antes, julguei arrastar meu corpo com a mesma dificuldade e os mesmos males que sobre a Terra. Quando me desprendi de meu corpo, sabeis o que experimentei? Pois bem! aquilo que se experimenta depois de uma queda que atordoa por um momento, ou, melhor dizendo, depois de um desfalecimento, do qual nos fazem recobrar os sentidos com vinagre. Despertei sem reparar que o corpo me havia deixado. Vim a Paris, onde estou, pensando mesmo aqui estar em carne e osso e não me poderíeis ter convencido do contrário se de fato eu não estivesse morto.

Sim, morre-se, mas não no momento em que se deixa o corpo; é no momento em que o Espírito, percebendo sua verdadeira posição, é tomado de uma vertigem, não compreende mais o que lhe dizem, não vê mais as coisas que lhe explicam da mesma maneira; então se perturba. Vendo que não mais o compreendem, procura, e, como o cego que é ferido subitamente, pede um guia que, naturalmente, não vem de chofre. É necessário que permaneça algum tempo nas trevas, onde tudo é confuso para ele; está perturbado; é preciso que o desejo o impila com ardor a pedir a luz, que só lhe será concedida depois de terminada a agonia e chegada a hora da libertação. Pois bem, meu primo, é quando o Espírito se acha nesse momento que é o momento da morte, porque não sabe mais se reconhecer. É preciso, repito, que se seja ajudado pela prece para sair desse estado e é também quando é chegada a hora da libertação que se pode empregar a palavra transformação para os Espíritos de minha ordem.

Oh! obrigado por vossas boas preces, obrigado, meu amigo. Sabeis quanto vos amava e vos amarei ainda muito mais agora. Continuai com vossas boas preces pelo meu adiantamento. Obrigado ao homem que soube divulgar essas grandes verdades santas, das quais tantos outros antes dele não se dignaram de ocupar-se. Sim, obrigado por terdes associado meu nome a tantos outros. Oraram por mim lendo algumas linhas que eu vos tinha vindo dar. Obrigado, também, a todos quantos oraram por mim; hoje, graças à prece, cheguei a compreender o seu alcance. Por minha vez, tentarei ser útil a todos.

Eis o que tinha a vos dizer e ficai tranquilos. Hoje não tenho mais dinheiro a lamentar, mas, ao contrário, tenho todo o meu tempo a vos dar.

Não vos deve surpreender muito esta mudança? Pois bem! doravante será assim, pois agora vejo muito claro, lá e de longe.


Pierre Legay.


Observação. – O novo estado em que se encontra Pierre Legay, cessando de se julgar neste mundo, pode ser considerado como um segundo despertar do Espírito. Esta situação se prende à grande questão da morte espiritual [perda do perispírito], que está em estudo neste momento. Agradecemos aos espíritas que, tendo em vista o nosso relato, oraram por esse Espírito. Podem ver que ele se apercebeu disto e achou-se bem.






Março VARIEDADES

Março

Conhecemos pessoalmente uma senhora, médium dotada de notável faculdade tiptológica: obtém facilmente e, o que é bastante raro, quase constantemente, coisas de precisão, como nome de lugares e de pessoas em diversas línguas, datas e fatos particulares, em presença dos quais a incredulidade foi confundida mais de uma vez. Essa senhora, inteiramente devotada à causa do Espiritismo, consagra todo o tempo disponível ao exercício de sua faculdade, com o objetivo de propaganda, e isto com um desinteresse tanto mais louvável quanto a sua posição de fortuna chega muito perto da mediocridade. Como o Espiritismo, para ela, é uma coisa séria, começa sempre por uma prece, dita com o maior recolhimento, para atrair o concurso dos bons Espíritos, rogando a Deus que afaste os maus, e terminando assim: “Se eu for tentada a abusar, seja no que for, da faculdade que Deus houve por bem me conceder, peço-lhe que ma retire, antes que seja desviada de seu objetivo providencial.”

Certo dia, um rico estrangeiro — foi ele mesmo que nos narrou o fato — procurou essa senhora para lhe pedir que desse uma comunicação. Ele não tinha a menor noção do Espiritismo e ainda menos a crença. Pondo a carteira sobre a mesa, disse-lhe: “Senhora, eis aqui dez mil francos que vos dou, se disserdes o nome da pessoa em quem estou pensando.” Basta isto para mostrar onde chegava o seu conhecimento da doutrina. A respeito, fez-lhe a médium observações que todo espírita verdadeiro faria em semelhante caso. Mesmo assim, tentou, mas nada obteve. Ora, logo depois da partida desse senhor ela recebeu, para outras pessoas, comunicações muito mais difíceis e complicadas do que a que ele lhe havia pedido.

Para esse senhor o fato deveria ser, conforme lhe dissemos, uma prova da sinceridade e da boa-fé da médium, porque os charlatães sempre têm recursos à sua disposição, quando se trata de ganhar dinheiro. Mas do fato resultam vários ensinamentos de outra gravidade. Os Espíritos quiseram provar-lhe que não é com dinheiro que os fazem falar, quando não querem; além disso, provaram que se não tinham respondido à pergunta, não fora por impossibilidade da parte deles, já que disseram, depois, coisas mais difíceis a pessoas que nada ofereciam. A lição era maior ainda para o médium; era demonstrar-lhe sua absoluta impotência sem o concurso deles e lhe ensinar a humildade, porque, se os Espíritos tivessem estado às suas ordens, se bastasse a sua vontade para os fazer falar, era o caso de exercer o poder agora ou jamais.

Eis aí uma prova manifesta em apoio do que dissemos na Revista de fevereiro último, a propósito do Sr. Home, sobre a impossibilidade em que se acham os médiuns de contar com uma faculdade que poderia faltar-lhes no momento em que lhes fosse necessária. Aquele que possui um talento e que o explora está sempre certo de o ter à sua disposição, porque é inerente à sua pessoa; mas a mediunidade não é um talento; só existe pelo concurso de terceiros; se esses terceiros se recusam, não há mais mediunidade. A aptidão pode subsistir, mas o seu exercício está anulado. Um médium sem a assistência dos Espíritos é como um violinista sem violino. [melhor dizendo: um violino sem violinista]

O senhor em questão admirou-se que, tendo vindo para se convencer, os Espíritos não se tivessem prestado para tanto; A isto lhe respondemos que, se pode ser convencido, sê-lo-á por outros meios, que nada lhe custarão. Os Espíritos não quiseram que ele pudesse dizer que fora convencido a peso de ouro, porque se o ouro fosse necessário para convencer, o que fariam os que não podem pagar? É para que a crença possa penetrar nos mais humildes redutos que a mediunidade não é um privilégio; acha-se em toda parte, a fim de que todos, pobres e ricos, possam ter a consolação de se comunicar com os parentes e amigos do além-túmulo. Os Espíritos não quiseram que ele fosse convencido dessa maneira, porque o barulho que isto tivesse provocado teria falseado sua própria opinião e a de seus amigos quanto ao caráter essencialmente moral e religioso do Espiritismo. Eles não o quiseram no interesse do médium e dos médiuns em geral, cuja cupidez esse resultado teria superexcitado, porquanto diriam que se tiveram êxito naquela circunstância, podiam tê-lo igualmente em outras. Não é a primeira vez que foram feitas ofertas semelhantes, que prêmios são oferecidos, mas sempre sem sucesso, levando-se em conta que os Espíritos não dão o seu concurso nem se entregam a quem paga melhor.

Se essa senhora tivesse tido êxito, teria aceitado ou recusado? Ignoramos, porque dez mil francos são bastante sedutores, sobretudo em certas posições. Em todo o caso, a tentação foi grande. E quem sabe se a recusa não teria sido seguida de um pesar, que lhe tivesse atenuado o mérito? Notemos que, em sua prece, ela pede a Deus que lhe retire sua faculdade antes que seja tentada a desviá-la de seu objetivo providencial. Pois bem! Sua prece foi atendida; a mediunidade lhe foi retirada para esse caso especial, a fim de lhe poupar o perigo da tentação e todas as consequências lamentáveis que se lhe teriam seguido, primeiro para ela própria, e depois pelo efeito deletério que isto teria produzido.

Mas não é só contra a cupidez que os médiuns devem resguardar-se. Como os há em todas as camadas da sociedade, a maioria está acima desta tentação; mas há um perigo muito maior, pois a ele todos estão expostos: o orgulho, que põe a perder tão grande número. É contra esse escolho que as mais belas faculdades muitas vezes vêm aniquilar-se. O desinteresse material não tem proveito se não for acompanhado pelo mais completo desinteresse moral. Humildade, devotamento, desinteresse e abnegação são as qualidades do médium amado pelos bons Espíritos.