Escrevem-nos da Espanha, a 1.º de agosto de 1864:
“Caro mestre,
“Tomo a liberdade de vos enviar a nova ordenação que Monsenhor Pantaleão, Bispo de Barcelona, acaba de publicar no jornal El Diario de Barcelona, de 31 de julho. Como podeis notar, ele quis marchar sobre o rastro de seu predecessor. Para mim, espírita sincero, perdoo os palavrões que nos dirige, mas não me posso impedir de pensar que ele poderia empregar a ciência que possui de maneira mais aproveitável para o bem da fé e de seus semelhantes. Para citar apenas um exemplo. temos a cada instante o espetáculo dessas abomináveis touradas, nas quais os pobres animais, depois de ter passado a vida a serviço do homem, vêm morrer estripados nessas tristes arenas, para maior alegria de uma população ávida de sangue, e cujos maus instintos são desenvolvidos por esses jogos bárbaros.
“Eis o que deveríeis fulminar, Monsenhor, e não o Espiritismo, que diariamente vos trás ao aprisco ovelhas que havíeis perdido, pois eu, que cria sinceramente em Deus e que reconhecia a sua grandeza nos mínimos detalhes da Natureza, antes de ser espírita não me podia aproximar de uma igreja, tanta discordância os meus olhos viam entre os que se dizem os representantes de Deus na Terra e essa grande figura do Cristo, que o Evangelho nos mostra todo amor e abnegação. Sim, dizia de mim para mim, Jesus se sacrifica por nós; faz sua entrada triunfal em Jerusalém vestindo um burel e montado num jumento, e vós, que vos dizes seus representantes, vos cobris de seda, ouro e diamantes. É esse o desprezo das riquezas que o Divino Messias pregava aos seus apóstolos? Não. Entretanto, Monsenhor, eu vos confesso que a partir do momento em que me tornei espírita, pude voltar a frequentar as vossas igrejas; pude aí orar a Deus com fervor, a despeito da música mundana que aí se veste de ópera; pude orar, pensando que entre todas essas pessoas reunidas provavelmente havia algumas para as quais a pompa teatral era útil para elevar suas almas a Deus; pude então perdoar o vosso luxo e compreendê-lo num certo sentido. Assim, bem vedes, Monsenhor, que não é sobre os espíritas que deveríeis trovejar, e se, como não duvido, tendes em vista apenas o bem do vosso rebanho, reconsiderai vossa maneira de ver o Espiritismo, que só nos prega o amor ao próximo, o perdão das injúrias, a doçura, a caridade e o amor aos nossos inimigos.
“Caro mestre, perdoai-me estas linhas, que foram sugeridas por essa nova ordenação. O Espiritismo veio reavivar a minha fé, explicando-me todas as misérias da vida que até agora minha inteligência não tinha podido compreender. Sinceramente persuadido de que trabalhamos para o nosso adiantamento e para o da Humanidade, não cessarei de propagar esta doutrina no meu círculo de relações, para tanto empregando uma convicção profunda e os meios que Deus me deu.
“Dignai-vos receber, caro mestre, etc.”
Damos a seguir a tradução da ordenação do senhor bispo. Reproduzimo-la in extenso para não enfraquecer o seu alcance. O senhor bispo de Barcelona é considerado, com razão, como um homem de mérito; ele deve, pois, ter reunido os mais poderosos argumentos contra o Espiritismo. Os nossos leitores julgarão se ele é mais feliz que os seus confrades, e se o golpe de misericórdia nos será dado do outro lado dos Pireneus. Limitamo-nos a intercalar algumas observações.
“Nós, D. D. Pantaleón Monserra y Navarro, pela graça de Deus e da Santa Sé apostólica, bispo de Barcelona, cavaleiro da grã-cruz da Ordem Americana de Izabel a Católica, do Conselho de Sua Majestade, etc.
“Aos nossos amados e fiéis diocesanos,
“Colocado na Terra como num lugar de trevas, que lhe impede de ver as coisas colocadas numa ordem superior, o homem não pode dar um passo para buscá-las se não for esclarecido pela chama da fé. Se ele se separa desse guia, apenas tropeçará, caindo hoje no extremo da incredulidade, que tudo nega, e amanhã na superstição, que em tudo crê. Nossa época, que pretende conduzir-se pela razão e pelo senso, não admitindo como verdadeiro senão o que lhe mostram essas testemunhas falaciosas, vê-se atravessada por uma imensa corrente de ideias, arrastando, em consequência, a negação do sobrenatural e uma excessiva credulidade. Uma e outra são o produto do orgulho da inteligência humana, que se recusa a prestar razoável atenção à palavra revelada de Deus. A geração atual se vê obrigada a assistir a esse triste espetáculo que hoje nos dão os povos mais adiantados em ciência e em civilização. Os Estados Unidos da América, essa nação chamada modelo, e algumas partes da França, aí compreendida a colônia de Argel, empenham-se, há algum tempo, no estudo ridículo e na aplicação do Espiritismo, que vem, sob esse nome, ressuscitar as antigas práticas da necromancia, pela evocação dos Espíritos invisíveis que repousam no lugar de seu destino, situado além da sepultura, e os consultam para descobrir segredos ocultos sob o véu por Deus estendido entre o tempo e a eternidade.”
OBSERVAÇÃO: Se somos repreensíveis por termos relações com os Espíritos, seria preciso que a Igreja os impedisse de vir sem serem chamados, pois é notório que há uma porção de manifestações espontâneas, mesmo em pessoas que jamais ouviram falar de Espiritismo. Como as irmãs Fox, nos Estados Unidos, as primeiras que revelaram sua presença naquele país, foram postas no caminho das evocações, senão pelos Espíritos que a elas vieram manifestar-se, quando nem sequer sonhavam com isso? Por que aqueles Espíritos deixaram o lugar que lhes era designado além da sepultura? Com ou sem a permissão de Deus?
O Espiritismo não saiu do cérebro de um homem como um sistema filosófico criado pela imaginação. Se os Espíritos não se tivessem manifestado por si mesmos, não teria havido Espiritismo. Se não se pode impedir que se manifestem, não se pode deter o Espiritismo, como não se pode impedir um rio de correr, a menos que se suprima a sua fonte. Pretender que os Espíritos não se manifestem é uma questão de fato, e não de opinião. Contra a evidência não há denegação possível.
“Esse desejo exagerado de tudo conhecer por meios ridículos e reprovados não é senão o fruto dessa necessidade, desse vazio que experimenta o homem, quando rejeitou tudo o que lhe é proposto como verdade pela sua soberana legítima e infalível: a Igreja.”
OBSERVAÇÃO: Se o que essa soberana infalível propõe como verdade fica demonstrado como erro pelas observações da Ciência, é culpa do homem se ele o repele? A Igreja era infalível, quando condenava às penas eternas os que acreditavam no movimento da Terra e nos antípodas? Quando ainda hoje condena os que creem que a Terra não foi formada em seis vezes vinte e quatro horas? Para que a Igreja fosse crida sob palavra, seria necessário que não ensinasse nada que pudesse ser desmentido pelos fatos.
“Num momento de ardor para tudo conhecer por si mesmo, ele repeliu esta verdade como superstição, porque seu entendimento não a compreendia ou não estava em concordância com as noções a respeito recebidas. Mais tarde, porém, ele julgou necessário o que havia desprezado; ele quis reabilitar-se na sua fé; ele a examinou novamente, e conforme tal exame tenha sido feito por pessoas de imaginação viva, ou por outras de temperamento nervoso e irritável, admitiram, no seu sistema de crença, tudo quanto aquelas julgaram ver e ouvir dos Espíritos evocados num momento de exaltação melancólica.”
OBSERVAÇÃO: Jamais havíamos pensado que a Fé, isto é, a adoção ou rejeição das verdades ensinadas pela Igreja, conforme o exame feito por aquele que sinceramente a elas queira voltar, fosse uma questão de temperamento. Se, para lhes dar preferência em relação a outras crenças, ele não deve ser nervoso ou irritável, nem ter uma imaginação viva, há muita gente que será fatalmente excluída por força de sua compleição. Nós acreditamos que, neste século de desenvolvimento intelectual, a Fé é uma questão de compreensão.
“Foi assim que se chegou a criar uma religião que, renovando os desvios e as aberrações do paganismo, ameaça conduzir a Sociedade ávida de maravilhoso à loucura, à extravagância e ao mais imundo cinismo (y al cinismo más inmundo).”
OBSERVAÇÃO: Eis mais uma vez um príncipe da Igreja que proclama, num ato oficial, que o Espiritismo é uma religião que se cria. É aqui o caso de repetir o que já dissemos a respeito: Se jamais o Espiritismo se tornar uma religião, a Igreja terá sido a primeira a dar tal ideia. Em todo caso, essa religião nova, caso venha a sê-lo, afastar-se-á do paganismo pelo fato capital de que ela não admite um inferno localizado, com penas materiais, ao passo que o inferno da Igreja, com suas chamas, seus tridentes, suas caldeiras, suas lâminas de navalhas, seus pregos pontiagudos que estraçalham os danados, e seus diabos que atiçam o fogo, é uma cópia amplificada do Tártaro.
“O grande propagador dessa seita de modernos iluminados, o próprio Allan Kardec, o confessa em seu Livro dos Espíritos, dizendo que ‘Por vezes estes se comprazem em responder ironicamente e de maneira equívoca, que desconcerta os infelizes que os consultam.’ E, posto ele advirta da necessidade que há de discernir os Espíritos sérios dos superficiais, ele não nos pode dar as regras necessárias a esse discernimento, confissão que revela toda a vaidade e a falsidade do Espiritismo, com suas deploráveis consequências.”
OBSERVAÇÃO: Remetemos o senhor bispo de Barcelona ao Livro dos médiuns, cap. XXIV).
“Se esse sistema, que estabelece um monstruoso comércio entre a luz e as trevas, entre a verdade e o erro, entre o bem e o mal, numa palavra, entre Deus e Belial, não tem prosélitos na Espanha, há, sem dúvida, ardorosos propagadores, e a metrópole de nossa diocese é o teatro escolhido para pôr em ação todos os meios que pode sugerir o Espírito de mentira e de perdição. A prova disto está na introdução fraudulenta que se opera, malgrado o zelo desenvolvido pelas autoridades locais, de milhares de exemplares do Livro dos Espíritos, escrito pelo primeiro pregador dessas mentiras, Allan Kardec, e traduzido para o espanhol.”
OBSERVAÇÃO: É muito difícil conciliar estas duas asserções, a saber: que o Espiritismo não tem prosélitos na Espanha, e que há, sem dúvida, ardorosos propagadores. Também não se compreende que num país onde não há espíritas haja um derramamento do Livro dos Espíritos aos milhares.
“Lendo essa produção original, dissemos de nós para nós: Cada século tem as suas preocupações, seus erros favoritos, e as do nosso são uma tendência para negar o que é invisível e a não procurar a certeza senão na matéria sensível. Não seria, pois, coisa incrível se não a tivéssemos visto, que o século dezenove, tão rico em descobertas sobre as leis da Natureza, tão rico em observações e experiências, tenha vindo a adotar os sonhos da magia e aparições de Espíritos pela simples evocação de um simples mortal? Contudo, é isto! E essa nova heresia, importada, ao que parece, dos países idólatras para os povos do novo mundo, tenha invadido o antigo, e nesse encontrado adeptos e partidários, malgrado o facho do Cristianismo que o ilumina há dezoito séculos, e condena semelhantes ridicularias, a despeito do brilho que ele espalhou em toda a sua superfície e particularmente sobre a Europa.”
OBSERVAÇÃO: Já que o senhor bispo de Barcelona se admira que o século dezenove aceite o Espiritismo tão facilmente, malgrado suas tendências positivas e a riqueza de suas descobertas tocantes à leis da Natureza, dir-lhe-emos que é precisamente a aptidão para essas descobertas que produz tal resultado. As relações do mundo visível com o invisível são uma das grandes leis naturais, que ao século dezenove estava reservado revelar ao mundo, bem como tantas outras leis. Fruto da experiência e da observação, baseado em fatos positivos até agora incompreendidos, mal estudados e ainda pior explicados, o Espiritismo é a expressão dessa lei, e por isto mesmo vem destruir o fantástico, o maravilhoso e o sobrenatural falsamente atribuído a esses fatos, fazendo-os entrar na categoria dos fenômenos naturais. Como ele vem explicar o que era inexplicável; como ele demonstra o que afirma e lhe dá a razão; como não quer ser acreditado sob palavra; como provoca o exame e só quer ser aceito com conhecimento de causa; por estes motivos ele corresponde às ideias e às tendências positivas do século. Sua fácil aceitação, longe de ser uma anomalia, é uma consequência de sua natureza, que lhe dá posição entre as ciências de observação. Se se tivesse cercado de mistérios e se tivesse exigido a fé cega, têlo-iam repelido como um anacronismo.
Jovem ainda, encontra oposição, como todas as ideias de certa importância. Ele tem contra si:
1.º ─ Os que creem apenas na matéria tangível e negam todo poder intelectual fora do homem;
2.º ─ Certos sábios que pensam que a Natureza não tem mais segredos para eles, ou que só a eles cabe descobrir o que ainda está oculto;
3.º ─ Aqueles que, em todos os tempos, se esforçaram por deter a marcha ascendente do espírito humano, porque temem que o desenvolvimento das ideias, fazendo ver com muita clareza, não lhes prejudique o seu poder e os seus interesses;
4.º ─ Enfim, aqueles que, sem ideia preconcebida e não o conhecendo, julgamno pelas deturpações com que o apresentam seus adversários, visando desacreditálo.
Esta categoria constitui a grande maioria dos opositores, mas ela diminui dia a dia, porque dia a dia aumenta o número dos que estudam; as prevenções caem ante um exame sério, e se ligam tanto mais à coisa sobre a qual reconhecem haverem sido enganados. A julgar pelo caminho feito pelo Espiritismo em tão curto prazo, fácil é prever que em pouco tempo só terá contra si os antagonistas de ideias preconcebidas, e como estes formam uma pequena minoria, sua influência será nula. Eles próprios sofrerão a influência da massa, e serão forçados a seguir a corrente.
A manifestação dos Espíritos não é apenas uma crença: é um fato. Ora, diante de um fato, a negação não tem valor, a não ser que se prove que ele não existe, coisa que ninguém ainda demonstrou. Como em todos os pontos do globo a realidade do fato é diariamente constatada, crê-se no que se vê. É o que explica a impotência dos negadores para deter o movimento da ideia. Uma crença só é ridícula quando é falsa; não o é mais, desde que repouse sobre uma coisa positiva. O ridículo é apanágio daquele que se obstina em negar a evidência.
“Isto vos deve convencer, meus caros filhos e irmãos, da necessidade que tem o homem de crer e que quando ele despreza as verdadeiras crenças, abraça sem entusiasmo até mesmo as falsas. Eis por que diz o profundo Pascal, num de seus pensamentos: ‘Os incrédulos são os homens mais levados a crer em tudo.’ O Espírito das trevas toma os homens como joguete e instrumento de seus maus propósitos, servindo-se de sua vaidade, de sua credulidade, de sua presunção, para deles próprios fazer os propagadores e os apóstolos daquilo de que se riam na véspera, do que qualificavam de invenção quimérica e de espantalho para as almas fracas.
“Não, meus irmãos, a verdadeira fé, a doutrina do Cristianismo, o ensino constante da Igreja, sempre reprovaram a prática dessas evocações que levam a crer tenha o homem sobre os Espíritos um poder que só a Deus pertence. ‘Não está no poder de um mortal que as almas separadas dos corpos após a morte lhe revelem os segredos cobertos pelo véu do futuro.’ (Mat. XVI, 4).
OBSERVAÇÃO: O Espiritismo também diz que aos Espíritos não é dado revelar o futuro, e condena formalmente o emprego de comunicações do alémtúmulo como meio de adivinhação. Ele diz que os Espíritos vêm para nos instruir e nos melhorar, e não para nos ler a buena-dicha. Além disto, ele diz que ninguém pode obrigar os Espíritos a virem falar quando eles não querem. É desnaturar maldosamente o seu objetivo, pretender que ele faça a necromancia. (Livro dos médiuns, Cap. XXVI).
“Se a sabedoria divina tivesse julgado útil à felicidade e ao repouso do gênero humano instruí-lo sobre as relações entre o mundo dos Espíritos e o dos seres corpóreos, ela no-lo teria revelado de tal maneira que nenhum mortal pudesse ser enganado em suas comunicações; ela nos teria ensinado um meio para reconhecer quando nos tivessem dito a verdade, ou insinuado o erro, e ela não nos teria abandonado para tal discernimento à luz da razão, que é uma luz muito fraca para descobrir essas regiões que se estendem para além da morte.”
OBSERVAÇÃO: Se Deus permite que hoje existam tais relações ─ pois há que admitir-se que nada ocorre sem a permissão de Deus ─ é que ele julga útil à felicidade dos homens, a fim de lhes dar a prova da vida futura, na qual muitos não acreditam mais, e porque o número sempre crescente dos incrédulos prova que a Igreja sozinha é impotente para mantê-los no aprisco. Deus lhe envia auxiliares, nos Espíritos que se manifestam. Repeli-los não é dar prova de submissão à sua vontade; renegá-los é desconhecer o seu poder; injuriá-los e maltratar seus intérpretes é agir como os judeus em relações aos profetas, o que fez com que Jesus derramasse lágrimas pela sorte de Jerusalém.
“Assim, pois, quando um miserável mortal, desviado por sua imaginação, pretende nos dar notícias sobre a sorte das almas no outro mundo; quando homens de curta visão têm a audácia de querer revelar à Humanidade e ao indivíduo o seu destino indefectível no futuro, eles usurpam um poder que pertence a Deus, e do qual não renuncia, a não ser para o bem da própria Humanidade e dos povos, advertindo-os ou os admoestando por intermédio de enviados que, como os profetas, levam consigo a prova de sua missão, nos milagres que operam, e na realização constante do que eles anunciaram.”
OBSERVAÇÃO: Então renegais as predições de Jesus, porquanto não reconheceis no que acontece a realização do que ele anunciou. O que significam estas palavras? “Eu espalharei o Espírito sobre toda a carne; vossas mulheres e vossas filhas profetizarão, vossos filhos terão visões e os velhos terão sonhos”
“Podemos considerar como visionários aqueles que, abandonando a verdade e dando ouvidos a fábulas, querem que sejam escutados como revelações os caprichos, os sonhos fantásticos de sua imaginação delirante. Escrevendo a Timóteo, São Paulo o põe em guarda contra tudo isto, a ele e às gerações futuras (I Tim., IV: 7). O apóstolo já pressentia, há dezoito séculos, aquilo que em nossa época a incredulidade deveria oferecer para encher com alguma coisa o vazio que deixa na alma a falta de fé.”
OBSERVAÇÃO: Com efeito, a incredulidade é a chaga de nossa época. Ela deixa na alma um imenso vazio. Por que, então, a Igreja não a combate? Por que não pode ela manter os fiéis na fé? Os meios materiais e espirituais, contudo, não lhe faltam. Não tem ela imensas riquezas, um inumerável exército de pregadores, a instrução religiosa da juventude? Se seus argumentos não triunfam sobre a incredulidade, é que não são suficientemente peremptórios. O Espiritismo não lhe segue os passos. Ele faz o que ela não faz. Ele se dirige àqueles aos quais ela não consegue reconduzir, e consegue dar-lhes a fé em Deus, na sua alma e na vida futura. Que dizer de um médico que, não podendo curar um doente, se opusesse a que este aceitasse os cuidados de outro médico que pudesse salvá-lo?
É verdade que o Espiritismo não preconiza um culto às custas do outro; que não lança anátema a nenhum, e que sem isto ele seria considerado bem-vindo por aquele cuja causa exclusiva tivesse abraçado, mas é precisamente porque é portador de uma palavra de soerguimento: “Fora da caridade não há salvação” à qual todos podem responder, que ele vem fazer cessar os antagonismos religiosos que fizeram derramar mais sangue que as guerras de conquista.
“Depois de haver ensaiado a adivinhação, o sonambulismo pelo magnetismo animal, sem ter podido obter qualquer coisa além da reprovação de todo homem sensato; depois de haver visto caírem em descrédito as mesas girantes, eles desenterraram o cadáver infecto desse Espiritismo com os absurdos da transmigração das almas, desprezando os artigos do nosso símbolo, como a Igreja os ensina, quiseram substituí-los por outros que os anulam, admitindo uma imortalidade da alma, um purgatório e um inferno muito diferentes daqueles que nos ensina nossa fé católica.”
OBSERVAÇÃO: Isto é muito justo. O Espiritismo não admite um inferno onde há chamas, tridentes, caldeiras e lâminas de navalhas; ele também não admite que seja uma felicidade para os eleitos levantar as tampas das caldeiras para aí ver fervendo os danados, talvez um pai, uma mãe ou um filho; ele não admite que Deus se compraza em escutar, por toda a eternidade, os gritos de desespero de suas criaturas, sem ser tocado pelas lágrimas dos que se arrependem, nisto mais cruel que aquele tirano que mandou construir um respiradouro pondo em comunicação os calabouços de seu palácio com seu quarto de dormir, para ter o prazer de ouvir os gemidos de suas vítimas; ele não admite, enfim, que a suprema felicidade consista numa contemplação perpétua, que seria uma perpétua inutilidade, nem que Deus tenha criado as almas para lhes dar apenas alguns anos, ou alguns dias de existência ativa e, em seguida, as mergulhar, pela eternidade, nas torturas ou na inútil beatitude. Se esta é a pedra angular do edifício, tem razão a Igreja de temer as ideias novas. Não é com tais crenças que ela entupirá o enorme abismo da incredulidade.
“Com isto, como disse muito a propósito o sábio bispo de Argel, tudo quanto os incrédulos puderam fazer foi mudar de lado, para arrastar essa porção de crentes cuja fé simples e pouco esclarecida facilmente se presta a tudo o que é extraordinário, e, ao mesmo tempo, conseguir opor um novo obstáculo à conversão dessas almas sepultadas na indiferença religiosa que, vendo que querem reduzir o Cristianismo a um tecido de superstições, acabaram blasfemando contra ele e o seu autor.”
OBSERVAÇÃO: Eis uma coisa muito singular! É o Espiritismo que impede a Igreja de converter as almas sepultadas na indiferença religiosa. Mas, então, por que não as converteu antes do aparecimento do Espiritismo? Então é ele mais poderoso que a Igreja? Se os indiferentes se ligam a ele de preferência, é que, aparentemente, o que ele dá lhes convém mais.
“Para que os homens de pouca fé não se escandalizem lendo as doutrinas do Livro dos Espíritos, e não creiam, um só instante, que elas estejam em harmonia com todos os cultos e crenças, inclusive a fé católica, como pretende Allan Kardec, nós lhes lembraremos que as Escrituras Santas as condenam como loucura, dizendo pela boca do Eclesiastes: “As adivinhações, os augures e os sonhos são coisas vãs, e o coração sofre essas quimeras; todas as vezes que não forem enviados pelo Altíssimo, desconfiai deles, porque os sonhos entristecem os homens e os que neles se apoiam são abatidos.” (Ecles, XXXVI: 5,7).
“Jesus Cristo censura os seus discípulos por terem acreditado na visão de um fantasma, ao vê-lo andar sobre as águas, e não quer que disto se assegurem senão pelos sinais que lhes dá da realidade de sua pessoa. (Luc. XXIV: 39).
“A Igreja e os santos Pais, como intérpretes da palavra divina, têm repelido constantemente esses meios enganadores pelos quais se crê que os Espíritos se comuniquem com os homens, e a razão esclarecida também os repele, pois compreende que por si só e sem o auxílio da fé, ela não pode abarcar as coisas nem as verdades que se referem ao passado na ordem sobrenatural. Como pode ela pretender atingir, por si mesma, num estado de transporte, ou arrastada por uma imaginação ardente, aquilo que só se pode verificar de uma maneira, num lugar e em circunstâncias imprevistas?
“Se, pois, em outras ocasiões, elevamos a voz contra esse materialismo ímpio, e essa incredulidade sistemática que nega a imortalidade da alma separada do corpo nos diferentes estados aos quais a destina a divina justiça para a eternidade, hoje nos vemos obrigados a protestar contra essa comunicação ativa atribuída à evocação dos mortos, e que pretende revelar o que só é perceptível à infinita penetração de Deus.
“Meus irmãos, meus amados filhos, não vos deixeis arrastar por essas fábulas vãs que contêm os erros e as preocupações dos povos bárbaros e ignorantes, e todas as invenções absurdas das criaturas cujo espírito, enfraquecido pela ausência da verdadeira fé e pela superstição, abjura a religião revelada pelo filho de Deus, degrada a razão humana e expulsa a pureza da alma. Longe de nossos bem-amados diocesanos, e sobretudo desses leitores com razão tidos como esclarecidos e civilizados, de acreditar nesses contos de sonhadores, tais como Allan Kardec, homens de imaginação exaltada e em delírio! Longe de vós, pois, essa crença anticristã que faz saírem dos túmulos os fantasmas, os Espíritos errantes; longe de vós essa superstição importada em nossa religião pelos pagãos convertidos ao Cristianismo, e que os escritos de seus sábios apologistas logo expulsaram.”
OBSERVAÇÃO: Os espíritas jamais fizeram os fantasmas saírem dos túmulos, pela razão muito simples que nos túmulos só estão os despojos mortais, que se destroem e não ressuscitam. Os Espíritos estão por toda parte no espaço, felizes por estarem livres e desembaraçados do corpo que os fazia sofrer. É por isto que não se prendem aos seus restos, e mais deles se afastam do que os buscam. O Espiritismo sempre repeliu a ideia de que as evocações seriam mais fáceis junto aos túmulos, de onde não se pode fazer sair o que lá não está. Só no teatro se veem essas coisas.
“Tende cuidado para que vossos filhos, levados pela curiosidade da juventude, não leiam semelhantes produções e não se impressionem com as suas figuras, que têm feito perder o bom-senso grande número de pessoas que hoje gemem nos hospícios de alienados, vítimas do Espiritismo.
“Fazei todo esforço, meus filhos e meus irmãos, para conservar pura a doutrina que nos ensina o divino Mestre. Detende-vos e apoiai-vos unicamente na sua santa palavra relativamente ao vosso futuro. E, sabendo que é à Providência Divina, sempre sábia, que cabe conduzir o homem através das vicissitudes desta vida, para experimentar a sua fé e avivar a sua esperança, sem querer sondar vossa sorte futura, buscai assegurá-la por meio das boas obras, por elas tornando certa a vossa vocação de filhos de Deus, chamados à herança do Pai Celeste.”
OBSERVAÇÃO: Antes de cercear a curiosidade dos filhos, não era preciso aguilhoar a dos pais, o que essa ordenação não pode deixar de produzir. Quanto à loucura, é sempre a mesma história, que começa a ficar singularmente gasta, e cujo resultado não tem sido mais feliz que o dos pretensos fantasmas. As experiências sendo feitas por todos os lados, ainda mais na intimidade das famílias do que em público, e encontrando-se os médiuns por toda parte, em todas as camadas da Sociedade e em todas as idades, cada um sabe situar-se em relação ao verdadeiro estado de coisas. É por isso que os esforços feitos para fantasiar o Espiritismo não dão resultado. O número daqueles que falsas alegações chegam a enganar é muito pequeno, e muitos desses, querendo ver por si mesmos, reconhecem a verdade. Como persuadir uma multidão de que é noite, quando todos podem ver que é dia claro? Essa faculdade de controle prático dada a todos é um dos caracteres especiais do Espiritismo, e é o que constitui a sua força. Já é diferente com as doutrinas puramente teóricas, que podem ser combatidas pelo raciocínio. Mas o Espiritismo é baseado em fatos e observações que incessantemente cada um tem à mão.
Toda a argumentação do senhor bispo de Barcelona assim se resume: As manifestações dos Espíritos são fábulas imaginadas pelos incrédulos para destruir a religião. Só se deve crer no que dizemos, porque somente nós estamos de posse da verdade. Não examineis nada além, receando serdes seduzidos.”
“Para prevenir os perigos aos quais poderíeis sucumbir, e tendo em vista a autoridade divina que nos foi dada para vo-los assinalar e deles vos afastar, conforme a faculdade que nos é reconhecida pelo Artigo 3ª da última concordata, e de acordo com o que foi previsto pelos sagrados cânones e as leis do reino relativas aos erros que temos assinalado e combatido, condenamos o Livro dos Espíritos, traduzido para o espanhol com o título de Libro de los Espíritus, por Allan Kardec, como compreendido nos artigos 8º e 9º do catálogo promulgado em virtude da prescrição para esse efeito, pelo concílio de Trento. Nós proibimos a sua leitura a todos os nossos diocesanos, sem exceção, e lhes ordenamos que entreguem a seus curas os respectivos exemplares que poderão cair em suas mãos, para que nos sejam enviados com toda segurança possível.
“Dado em nossa santa visita de Mataro, a 27 de julho de 1864.”
PANTALEÓN, Bispo de Barcelona
Por ordem de S. E. S. Monsenhor Bispo Don Lazaro Bauluz, secretário.
A proibição feita pelo bispo de Barcelona a todos os seus diocesanos, sem exceção, de se ocuparem do Espiritismo, é calcada na do bispo de Argel. Duvidamos muito que ela tenha mais sucesso, posto seja na Espanha, porque nesse país as ideias fermentam como alhures, mesmo sob o abafador, e talvez por causa do abafador, que as mantém como em estufa quente. O auto-de-fé de Barcelona apressou o seu desabrochar. O efeito visado por essa solenidade aparentemente não correspondeu à expectativa, pois não o repetiram, entretanto, a execução que não mais ousam fazer de público, querem fazê-la em particular. Convidando os seus administrados a lhe remeter todos os livros espíritas que lhes caírem às mãos, Monsenhor Pantaleón certamente não tem em vista colecioná-los. Ele lhes proíbe de evocar os Espíritos, o que é um direito seu, mas em sua ordenação esqueceu uma coisa essencial: proibir que os Espíritos entrem na Espanha.
Ele se admira que o Espiritismo crie raízes tão facilmente no século dezenove. Devem admirar-se ainda mais de ver neste século a ressurreição de usos e costumes da Idade Média. E, o que é mais surpreendente ainda, é que se encontrem pessoas, aliás instruídas, que compreendam tão pouco a natureza e a força da ideia, para crer que se lhe possa barrar o caminho, como se barra um volume de mercadorias na fronteira.
Vós vos lamentais, monsenhor, de que os incrédulos e os indiferentes fiquem surdos à voz dos pastores da Igreja, ao passo que escutam a do Espiritismo. É que eles são mais tocados pelas palavras de caridade, de encorajamento e de consolação do que pelos anátemas. Creem reconduzi-los por imprecações, como as pronunciadas ultimamente pelo cura de Villemayor-de-Ladre contra um pobre mestre-escola que tinha cometido o erro de desagradá-lo? Eis esta fórmula canônica publicada pela Correspondência de Madrid, de junho de 1864, junto à qual a famosa imprecação de Camille é quase doçura. O poeta pôde pô-la na boca de uma pagã; não ousou pô-la na de uma cristã.
“Maldito seja Auguste Vincent; malditas sejam as roupas que o cobrem, a terra em que ele pisa, a cama onde ele dorme e a mesa em que ele come; malditos sejam o pão e todos os outros alimentos de que ele se nutre, a fonte onde ele bebe e todos os líquidos que ele toma.
“Que a terra se abra e ele seja enterrado nesse momento; que Lúcifer esteja à sua direita. Ninguém possa falar com ele, sob pena de serem todos excomungados, só por lhe dizerem adeus; malditos sejam também seus campos, sobre os quais não cairá mais água, para que nada lhe produzam; maldita seja a égua que ele monta, a casa em que ele mora e as propriedades que ele possui.
“Malditos sejam também seus pais, filhos que ele tem ou que terá, que serão em pequeno número e malvados; estes irão mendigar e ninguém lhes dará esmola, e se lhes derem, que não a possam comer. Ainda mais, que sua mulher neste instante fique viúva, e seus filhos órfãos e sem pai.”
É realmente num templo cristão que ressoaram essas horríveis palavras? É de fato um ministro do Evangelho, um representante de Jesus Cristo que as pronunciou? Quem, por uma injúria pessoal, vota um homem à execração de seus semelhantes, à danação eterna e a todas as misérias da vida, ele, seu pai, sua mãe, seus filhos presentes e futuros, e tudo o que lhe pertence? Jesus jamais usou de semelhante linguagem, ele que orava por seus carrascos e que disse: “Perdoai aos vossos inimigos”; que diariamente nos faz repetir, na oração dominical: “Senhor, perdoai nossas ofensas, como nós perdoamos aos que nos ofenderam.” Quando ele pronuncia a maldição contra os escribas e fariseus, chama sobre eles a cólera de Deus? Não. Ele lhes prediz as desgraças que os atingem.
E vós vos admirais, monsenhor, dos progressos da incredulidade! Admirai-vos de preferência que no século dezenove a religião do Cristo seja tão mal compreendida pelos que são encarregados de ensiná-la. Não fiqueis, pois, surpreendido se Deus envia seus bons Espíritos para lembrar o sentido verdadeiro de sua lei. Eles não vêm para destruir o Cristianismo, mas para libertá-lo das falsas interpretações e dos abusos que nele introduziram os homens.