Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Capítulo LXXII

Outubro - O Espiritismo na Bélgica

Outubro

Cedendo às insistentes solicitações de nossos irmãos espíritas de Bruxelas e de Antuérpia, fomos fazer-lhes uma curta visita este ano, e temos o prazer de dizer que trouxemos a mais favorável impressão do desenvolvimento da doutrina naquele país. Ali encontramos maior número do que esperávamos de adeptos sinceros, devotados e esclarecidos. A simpática acolhida que nos foi feita naquelas duas cidades deixounos uma lembrança que não se apagará jamais, e contamos os momentos ali passados entre os mais satisfatórios para nós. Considerando que não podemos enviar nossos agradecimentos a cada um em particular, pedimos a bondade de recebê-los aqui coletivamente.

Voltando a Paris, encontramos uma mensagem dos membros da Sociedade Espírita de Bruxelas, cujos termos nos sensibilizaram profundamente. Conservamola preciosamente, como um testemunho de sua simpatia, mas eles compreenderão facilmente os motivos que nos impedem de publicá-la na Revista. Há, entretanto, uma passagem dessa mensagem que nos impomos o dever de levar ao conhecimento de nossos leitores, porque o fato que ela revela nos diz, mais que longas frases, sobre a maneira pela qual certas pessoas compreendem o Espiritismo. Ei-la:

“Em comemoração à vossa viagem à Bélgica, nosso grupo decidiu fundar um leito de criança na creche de Saint Josse Tennoode.”

Nada podia ser mais lisonjeiro para nós do que semelhante testemunho. É darnos a maior prova de estima considerar-nos mais honrado com a fundação de uma obra de beneficência em memória de nossa visita, do que com as mais brilhantes recepções, que podem lisonjear o amor-próprio de quem lhe é objeto, mas que não beneficiam a ninguém e não deixam qualquer traço útil.

Antuérpia se distingue por um maior número de adeptos e de grupos. Mas aí, como em Bruxelas, e aliás em toda parte, os que fazem parte das reuniões de certo modo oficiais e regularmente constituídas, estão em minoria. As relações sociais e as opiniões emitidas nas conversas provam que a simpatia pela doutrina se estende além dos grupos propriamente ditos. Se nem todos os habitantes são espíritas, a ideia ali não encontra oposição sistemática. Dela se fala como coisa muito natural e não riem. Em geral, pertencendo os adeptos ao alto comércio, nossa chegada foi a novidade da bolsa e desencadeou a conversação, sem mais importância do que se se tratasse da chegada de um cargueiro.

Vários grupos são compostos de número limitado de sócios e se designam por um título especial e característico; assim, um se intitula A Fraternidade, outro Amor e Caridade, etc. Acrescentemos que esses títulos não são para eles insígnias banais, mas divisas que se esforçam por justificar.

O grupo Amor e Caridade, por exemplo, tem por objetivo especial a caridade material, sem prejuízo das instruções dos Espíritos, que, de certo modo, constituem a parte acessória. Sua organização é muito simples e dá excelentes resultados. Um dos membros tem o título de esmoler, nome que corresponde perfeitamente à função de distribuir socorros a domicílio, e muitas vezes os Espíritos indicaram nomes e endereços de pessoas necessitadas. O nome esmoler voltou, assim, à sua significação primitiva, da qual se havia singularmente desviado.

Esse grupo possui um médium tiptólogo excepcional, e julgamo-nos no dever de fazê-lo objeto de um artigo especial.

Queremos apenas consignar aqui os ótimos elementos que nos permitem bons augúrios do Espiritismo nesse país, onde há pouco tempo ele lançou raízes, o que não quer dizer que certos grupos não tenham tido, ali como alhures, perplexidades e enganos inevitáveis quando se trata do estabelecimento de uma ideia nova. É impossível que no começo de uma doutrina, sobretudo tão importante quanto o Espiritismo, todos os que se declaram seus partidários lhe compreendam o alcance, a seriedade e as consequências. Há, pois, que esperar desvios da rota em pessoas que só lhe veem a superfície, ambições pessoais, aqueles para quem é antes um meio que uma convicção do coração, sem falar das pessoas que afivelam todas as máscaras para se insinuarem, visando servir os interesses dos adversários, porque, assim como o hábito não faz o monge, o nome de espírita não faz o verdadeiro espírita. Mais cedo ou mais tarde, esses espíritas frustrados, cujo orgulho permaneceu vivo, causam nos grupos atritos penosos e suscitam entraves, dos quais sempre se triunfa com perseverança e firmeza. São provações para a fé dos espíritas sinceros.

A homogeneidade, a comunhão dos pensamentos e dos sentimentos são, para os grupos espíritas, como para quaisquer outras reuniões, a condição sine qua non de estabilidade e de vitalidade. É para tal objetivo que devem tender todos os esforços, e compreende-se que é tanto mais fácil atingi-lo quanto menos numerosas as reuniões. Nas grandes reuniões é quase impossível evitar a ingerência dos elementos heterogêneos que mais cedo ou mais tarde aí semeiam a cizânia; nas pequenas reuniões, onde todos se conhecem e se apreciam, se está como em família, o recolhimento é maior e a intrusão dos mal-intencionados mais difícil. A diversidade de elementos de que se compõem as grandes reuniões as torna, por isso mesmo, mais vulneráveis à ação surda dos adversários.

Melhor será, numa cidade, haver cem grupos de dez a vinte adeptos, dos quais nenhum pretende a supremacia sobre os outros, do que uma sociedade única, que reúna todos. Esse fracionamento em nada prejudicará a unidade dos princípios, levando-se em consideração que a bandeira é única e todos marcham para um mesmo objetivo. Isto parece ter sido perfeitamente compreendido por nossos irmãos de Antuérpia e de Bruxelas.

Em resumo, nossa viagem à Bélgica foi fértil em ensinamentos no interesse do Espiritismo, pelos documentos que recolhemos, e que oportunamente serão postos em proveito de todos.

Não esqueçamos uma das mais honrosas menções ao grupo espírita de Douai, que visitamos de passagem, e um particular testemunho de gratidão pelo acolhimento que ali nos dispensaram. É um grupo familiar, onde a Doutrina Espírita evangélica é praticada em toda a sua pureza. Ali reinam a mais perfeita harmonia, a benevolência recíproca, a caridade em pensamento, palavras e ações; ali se respira uma atmosfera de fraternidade patriarcal, isenta de eflúvios daninhos, onde os bons Espíritos devem comprazer-se tanto quanto os homens. Também as comunicações ali ressentem a influência do meio simpático. Ele deve à sua homogeneidade e aos escrupulosos cuidados nas admissões, o fato de jamais haver sido perturbado por dissensões e dificuldades que outros tiveram que sofrer. É que todos os que dele fazem parte são espíritas de coração e nenhum procura fazer prevalecer sua personalidade. Os médiuns aí são relativamente muito numerosos; todos se consideram simples instrumentos da Providência; não têm orgulho nem pretensões pessoais e se submetem humildemente e sem se sentirem magoados, ao julgamento das comunicações que recebem, prontos a destruí-las se forem consideradas más.

Um encantador poema foi recebido em nossa intenção, após a nossa partida. Agradecemos ao Espírito que o ditou e ao seu intérprete. Conservamo-lo como preciosa lembrança, mas são desses documentos que não podemos publicar, e que só aceitamos a título de encorajamento.

Temos a satisfação de dizer que esse grupo não é o único nessas condições favoráveis e de ter podido constatar que as reuniões realmente sérias onde cada um procura melhorar-se, de onde a curiosidade foi banida, as únicas que merecem a qualificação de espíritas, multiplicam-se diariamente. Elas oferecem, em escala menor, uma pálida imagem do que poderá ser a Sociedade quando o Espiritismo, bem compreendido e universalizado, formar a base das relações mútuas. Então os homens nada mais terão a temer uns dos outros. A caridade fará entre eles reinar a paz e a justiça. Tal será o resultado da transformação que se opera e cujos efeitos a geração futura começará a sentir.