Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1866

Capítulo IV

Janeiro - Correspondência

Janeiro

Correspondência

Carta do Sr. Jaubert

“Rogo-vos, meu caro Sr. Kardec, inserir a carta seguinte no mais próximo número da vossa Revista. Certamente sou pouca coisa, mas, enfim, tenho a minha apreciação e a imponho à vossa modéstia. Por outro lado, quando se trava a batalha, quero provar que estou sempre na ativa, com minhas dragonas de lã.”

JAUBERT.

Sem a obrigação que nos é imposta, em termos tão precisos, compreender-se-ão os motivos que nos teriam impedido de publicar esta carta. Nós nos teríamos contentado em conservá-la como um honroso e precioso documento e juntá-la às numerosas causas de satisfação moral que nos vêm sustentar e encorajar em nosso rude labor e compensar as tribulações inseparáveis de nossa tarefa. Mas, por outro lado, deixando de lado a questão pessoal, neste tempo de violências contra o Espiritismo, os exemplos de coragem de opinião são tanto mais influentes quanto de mais alto eles partem. E útil que a voz dos homens de coração, daqueles que, por seu caráter, suas luzes e sua posição impõem o respeito e a confiança, se faça ouvir; e se ela não puder dominar os clamores, tais protestos não ficarão perdidos nem no presente, nem no futuro.

Carcassone, 12 de dezembro de 1865.

Senhor e caro mestre,

Não quero deixar morrer o ano de 1865 sem lhe dar graça por todo o bem que ele fez ao Espiritismo. Nós lhe devemos a Pluralidade das Existências da Alma, por André Pezzani; a Pluralidade dos Mundos Habitados, por Camille Flammarion, dois gêmeos que apenas nascem e marcham em passos tão grandes no mundo filosófico.

Nós lhe devemos um livro, pequeno em páginas, grande nos pensamentos; a simplicidade nervosa de seu estilo disputa com a severidade de sua lógica. Ele contém em germe a teologia do futuro; tem a calma da força e a força da verdade. Eu queria que o volume com o título O Céu e Inferno fosse editado aos milhões de exemplares. Perdoai-me este elogio: eu vivi muito para ser entusiasta e aborreço a adulação.

O ano de 1865 nos dá Espírita, novela fantástica. A literatura se decide a fazer uma invasão em nosso domínio. O autor não tirou do Espiritismo todos os ensinamentos que ele encerra. Põe em destaque a ideia capital, essencial: a demonstração da alma imortal pelos fenômenos. Os quadros do pintor me pareceram deslumbrantes. Não posso resistir ao prazer de uma citação.

“Espírita, a amante ignorada, na Terra, de Guy de Malivert, acaba de morrer. Ela mesma descreve suas primeiras sensações.

“O instinto da Natureza ainda lutava contra a destruição, logo, porém, cessou essa luta inútil, e, num fraco suspiro, minha alma exalou-se de meus lábios.

“Palavras humanas não podem descrever a sensação de uma alma que, liberta de sua prisão corporal, passa desta vida à outra, do tempo à eternidade e do finito ao infinito. Meu corpo imóvel e já revestido dessa brancura sem brilho, entregue à morte, pairava sobre seu caixão fúnebre, cercado de religiosas em prece, e dele eu estava tão destacada quanto pode estar a borboleta da crisálida, casca vazia, despojo informe, para abrir suas jovens asas à luz desconhecida e subitamente revelada. A uma intermitência de sombra profunda havia sucedido um deslumbramento de esplendor, um alargamento de horizonte, um desaparecimento de todo limite e de todo obstáculo, que me embriagava de um júbilo indizível. Explosões de sentidos novos me faziam compreender os mistérios impenetráveis ao pensamento e aos órgãos terrenos. Desembaraçada dessa argila submetida às leis da gravidade, que me tornavam pesada pouco antes, eu me lançava com uma celeridade louca no éter insondável. As distâncias não existiam mais para mim e meu simples desejo me tornava presente onde eu queria estar. Eu traçava grandes círculos, num voo mais rápido que a luz, através do azul vago do espaço, como para tomar posse da imensidade, cruzando-me com enxames de almas e de Espíritos.”

E a tela se desenrola sempre mais esplêndida. Ignoro se, no fundo da alma, o Sr. Théophile Gautier é espírita; mas, com certeza, ele serve aos materialistas, aos descrentes, a bebida salutar em taças de ouro magnificamente cinzeladas.

Eu bendigo ainda o ano de 1865 pelas grossas cóleras que ele encerrava em seus flancos. Ninguém se engane com isto: Os 1rmãos Davenport são menos causa do que pretexto para a cruzada. Soldados todos uniformes contra nós apontaram os seus canhões raiados. Então o que provaram? A força e a resistência da cidade sitiada. Conheço um jornal do Sul, muito difundido, muito estimado, e a justo título, que há muito tempo enterra pobremente o Espiritismo uma vez por mês. Consequentemente, o Espiritismo ressuscita pelo menos doze vezes por ano. Vereis que eles o tornarão imortal à força de matálo.

Agora não tenho mais senão os meus augúrios de ano novo. Meus primeiros votos são para vós, senhor e caro mestre, pela vossa felicidade, pela vossa obra tão valentemente empreendida e tão dignamente continuada.

Faço votos pela união íntima de todos os espíritas. Vi, com pesar, algumas nuvens leves caindo em nosso horizonte. Quem nos amará se não nos sabemos amar? Como dizeis muito bem no último número de vossa Revista: “Quem quer que creia na existência e na sobrevivência das almas, ou na possibilidade de relações entre os homens e o mundo espiritual, é espírita.” Que esta definição fique, e sobre este terreno sólido estaremos sempre de acordo. E agora, se detalhes da doutrina, mesmo importantes, por vezes nos dividem, discutamo-los, não como fratricidas, mas como homens que só têm um objetivo: o triunfo da razão e, pela razão, a busca do verdadeiro e do belo, o progresso da ciência, a felicidade da Humanidade.

Ficam os meus mais ardentes votos, os mais sinceros. Eu os dirijo a todos aqueles que se dizem nossos inimigos: Que Deus os ilumine!

Adeus, senhor. Recebei, para vós e para todos os nossos irmãos de Paris, a renovada certeza de meus sentimentos afetuosos e de minha distinta consideração.

T. JAUBERT, Vice-Presidente do Tribunal.



Qualquer comentário sobre esta carta seria supérfluo. Acrescentaremos apenas uma palavra, é que homens como o Sr. Jaubert honram a bandeira que carregam. Sua apreciação tão judiciosa sobre a obra do Sr. Théophile Gautier nos dispensa do relato que nos propúnhamos dela fazer este mês. Voltaremos a falar sobre ela no próximo número.


Maio Conversas de além-túmulo

Maio

Charles-Emmanuel Jean era um artesão bom e de caráter suave, mas dado à embriaguez desde a juventude. Tinha sido tomado de viva paixão por uma jovem de suas relações, e que inutilmente pedira em casamento. Ela o tinha sempre repelido, dizendo que jamais esposaria um bêbado. Casou-se com outra, da qual teve vários filhos; mas, absorvido pela bebida, não se preocupou com a educação deles, nem com o seu futuro. Morreu pelos idos de 1823, sem que soubessem em que se havia tornado. Um dos filhos seguiu os passos do pai; partiu para a África e dele não se ouviu mais falar. O outro era de natureza completamente diversa; sua conduta foi sempre regular. Entrando cedo no aprendizado, fez-se amado e estimado pelos patrões como operário qualificado, laborioso, ativo e inteligente. Por seu trabalho e suas economias, conquistou uma posição honrada na indústria e educou de maneira muito conveniente uma numerosa família. É hoje um espírita fervoroso e devotado.

Certo dia, numa conversa íntima, exprimia o pesar por não ter podido assegurar aos filhos uma fortuna independente; procuramos tranquilizar a sua consciência, felicitando-o, ao contrário, sobre a maneira pela qual havia cumprido seus deveres de pai. Como é bom médium, rogamos que pedisse uma comunicação, sem fazer apelo a um Espírito determinado. Escreveu:

“Sou eu, Charles-Emmanuel.”

É meu pai, disse ele. Pobre pai! não é feliz.

O Espírito continua: Sim, o mestre tem razão; fizeste mais por teus filhos do que eu por ti, por isso tenho uma tarefa rude a cumprir. Bendiz a Deus, que te deu o amor da família.


Pergunta (Pelo Sr. Allan Kardec) – Donde vinha vossa inclinação pela bebida?

Resposta – Um hábito de meu pai, que eu herdei. É uma provação que eu devia ter combatido.


Observação. – Realmente, seu pai tinha o mesmo defeito, mas não é exato dizer que era um hábito que ele havia herdado; ele simplesmente cedeu à influência do mau exemplo. Não se herdam vícios de caráter, como se herdam malformações congênitas. O livre-arbítrio tudo pode sobre os primeiros e nada sobre os segundos.


P. – Qual a vossa posição atual no mundo dos Espíritos?

Resposta. – Estou incessantemente à procura de meus filhos e daquela que tanto me fez sofrer; daquela que sempre me rejeitou.


P. – Deveis ter um consolo no vosso filho Jean, que é um homem honrado e estimado, e que ora por vós, embora pouco vos tivésseis ocupado dele.

Resposta. – Sim, eu sei; ele tem feito e o faz ainda; eis por que me é permitido falar convosco. Estou sempre perto dele, tentando aliviar suas fadigas; é a minha missão; ela só terminará com a vinda de meu filho para junto de nós.


P. – Em que situação vos encontrastes como Espírito, depois que morrestes?

Resposta. – A princípio não me julgava morto; bebia sem cessar; via Antoinette, que eu queria alcançar e que me fugia. Depois procurava meus filhos, que amava a despeito de tudo, e que minha mulher não queria dar. Então me revoltava, reconhecendo a minha insignificância e a minha impotência, e Deus me condenou a velar por meu filho Jean, que jamais morrerá por acidente, porque em toda parte e sempre eu o salvo de uma morte violenta.


Observação. – Com efeito, o Sr. Jean escapou muitas vezes, como por milagre, de perigos iminentes; por pouco não se afogou, não se queimou, não foi esmagado nas engrenagens de um motor e não explodiu com uma máquina a vapor; na juventude foi enforcado por acaso e sempre um socorro inesperado o salvava no momento mais crítico, o que se deve, conforme tudo indica, à vigilância exercida pelo pai.


P. – Dissestes que Deus vos condenou a velar pela segurança de vosso filho. Não vejo nisto uma punição; já que o amais isto deve ser, ao contrário, uma satisfação para vós. Muitos Espíritos são encarregados da guarda dos encarnados, dos quais são protetores, e esta é uma tarefa de que se sentem felizes em realizar.

Resposta. – Sim, mestre. Eu não devia ter abandonado meus filhos, como fiz. Então a lei de justiça me condena a reparar. Não o faço a contragosto; sinto-me feliz de o fazer por amor de meu filho; mas a dor que ele experimentaria nos acidentes de que o salvo, sou eu quem suporta; se ele devesse ser perfurado por dez balas eu sentiria o mal que ele suportaria se a coisa se realizasse. Eis a justa punição que eu atraí, não cumprindo junto dele meus deveres de pai quando vivo.


P. (Pelo Sr. Jean) – Vedes meu irmão Numa, e podeis dizer onde está? (O que se entregara à bebida e cuja sorte era ignorada).

Resposta. – Não, não o vejo; procuro-o. Tua filha Jeanne o viu nas costas da África, cair no mar. Eu não estava lá para o socorrer; não o podia.


Observação. – A filha do Sr. Jean, num momento de êxtase, de fato o tinha visto cair no mar, na época de seu desaparecimento.

A punição deste Espírito oferece esta particularidade: ele sente as dores que deve poupar ao filho. Compreende-se, então, que a missão seja penosa. Mas como não se queixa, a considera justa reparação e isto não diminui a sua afeição por ele, a expiação lhe é proveitosa.