Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1866

Capítulo LXIII

Setembro - Crônica de Bruxelas

Setembro

Crônica de Bruxelas

“É bem verdade que tudo acontece e que não se deve dizer: “Desta água não beberei.” Se me tivessem dito que eu jamais veria o armário dos irmãos Davenport nem esses ilustres feiticeiros, eu teria sido capaz de jurar que isto não teria importância, pois basta que me digam de alguém que ele é feiticeiro para me tirar toda curiosidade a seu respeito. O sobrenatural e a feitiçaria não têm inimigo mais teimoso do que eu. Eu não iria ver um milagre quando o mostrassem de graça: essas coisas me inspiram aversão, tanto quanto bezerros de duas cabeças, mulheres de barba e todos os monstros. Considero idiotas os Espíritos batedores e as mesas sábias, e não há superstição que me faça fugir para o fim do mundo. Julgai se com tais disposições eu teria podido ir engrossar a multidão junto aos irmãos Davenport, quando diziam que eles mantinham comércio regular com os Espíritos! Confesso que também não me teria vindo a ideia de desmascarar a trapaça, de quebrar o seu armário e provar que realmente não eram feiticeiros, pois me parece que assim eu teria dado a prova de que eu mesmo tinha acreditado em seus aparatos e em suas artes. Ter-me-ia parecido infinitamente mais simples afastar, de saída, essa suposta feitiçaria e supor que tendo enganado tanta gente, eles deveriam ser criaturas muito hábeis em seus exercícios. Quanto a compreender, eu não me teria dado a esse trabalho. Desde que os Espíritos aí não se metem, valeria a pena? E se tivesse havido muitos pobres Espíritos no outro mundo para neste vir fazer o papel de comparsas, ainda valeria a pena?

“Li oportunamente com muito atenção, embora tivesse em que empregar melhor o meu tempo, a maior parte dos livros em uso pelos espíritas e aí encontrei tudo quanto era necessário para satisfazer a necessidade de uma religião nova, mas não com que me converter a essa velha novidade. Consultados todos os Espíritos, cujas respostas são citadas, nada disseram que não tivesse sido dito antes deles e em melhores termos do que as repetiram. Ensinaram-nos que é preciso amar o bem e detestar o mal, que a verdade é o contrário da mentira, que a alma é imortal, que o homem deve tender incessantemente a tornar-se melhor e que a vida é uma provação, coisas todas sabidas há milhares de anos, para a revelação das quais era inútil evocar tantos mortos ilustres e até personagens que, por mais célebres que sejam, cometeram, entretanto, o erro de não terem existido. Não falo do Judeu-Errante, mas imaginai que eu vá evocar Dom Quixote e que ele volte, isto não seria divertido ao máximo?

“Eu não tinha mais que uma objeção a respeito dos irmãos Davenport, pois não passavam de hábeis prestidigitadores. Essa objeção se resumia em que, afastado de boa vontade e de comum acordo todo Espiritismo, seus exercícios bem podiam não passar de um divertimento medíocre. É provável que não me tivesse vindo a ideia de ir vê-los se, feita a oferta graciosa de lá ir, eu não tivesse considerado que a crônica obriga, que nem tudo são rosas na vida e que o cronista deve ir aonde vai o público e aborrecer-se um pouco, em compensação. Resolvido a fazer as coisas conscienciosamente, para começar fui de dia à sala do Círculo Artístico e Literário, onde se ocupavam na montagem do famoso armário. Vi-o ainda incompleto, à luz do dia, e despido de toda a sua ‘poesia’. Se às ruínas são necessárias a solidão e as sombras da noite, aos ‘truques’ dos prestidigitadores são necessárias a luz do gás, a multidão crédula e a distância. Mas os irmãos Davenport são bons artistas e põem as cartas na mesa. Podia-se ver, e entrava quem quisesse. Um criado americano montava o armário com tranquilidade; os violões, os pandeiros, as cordas, as campainhas lá estavam, de mistura com cofres, roupas, pedaços de tapetes, panos de embalagem; tudo ao abandono, ao alcance de qualquer um, como um desafio à curiosidade. Aquilo parecia dizer: Virai, revirai, examinai, procurai, mexei, sacudi! Nada sabereis.

“Nada há de mais insolentemente simples que o armário. É um guarda-roupa, que absolutamente não tem aparência de ter sido feito para alojar Espíritos. Pareceu-me de nogueira. Tem na frente três portas em vez de duas, e parece cansado das viagens que fez e dos assaltos que sofreu. Lancei-lhe um olhar, não muito de perto, porque, escancarado como estava, imaginei que um móvel tão misterioso devia exalar cheiro de mofo, como a espineta mágica na qual encerravam Mozart em criança.

“Declaro formalmente que, a menos que aí pusesse roupas, não saberia o que fazer do armário dos irmãos Davenport. A cada um a sua função. Eu o revi à noite, isolado sobre o estrado, diante da rampa: já tinha um aspecto monumental. A sala estava cheia, como jamais esteve nos dias em que Mozart, Beethoven e seus intérpretes bancaram sozinhos os custos do espetáculo. O mais belo público possível: os mais amáveis, os mais espirituosos, as mais belas mulheres de Bruxelas, depois os conselheiros da Corte de Cassação, presidentes políticos, judiciários e literários; todas as academias, senadores, ministros, representantes, jornalistas, artistas, empreiteiros de construções, entalhadores ‘que eram como um buquê de flores! O honrado Sr. Rogier, ministro dos negócios estrangeiros, estava naquele serão, onde lhe fazia companhia um antigo presidente da Câmara. O Sr. Vervoort que, desiludido das grandezas humanas, só conservou a presidência do Círculo, aliás uma realeza encantadora. À vista disso, senti-me seguro. Um de nossos melhores pintores, o Sr. Robie, fez eco ao meu pensamento dizendo-me: ‘Vedes! A Áustria e a Prússia podem bater-se quanto queiram. Desde que a crise europeia não perturbe o nosso ministro dos negócios estrangeiros, a Bélgica pode dormir em paz.’ Isso me pareceu peremptório, vós mesmo o julgareis, e sabendo que o Sr. Rogier assistiu sorridente ao sarau dos irmãos Davenport, dormireis descansados. É o que tendes de melhor a fazer.

“Vi todos os exercícios dos irmãos Davenport e absolutamente não procurei compreender o seu mistério. Tudo quanto posso dizer, sem pensar o mínimo em lhes diminuir o sucesso, é que me é impossível sentir o menor prazer com essas coisas. Elas não me interessam. Em minha presença amarraram os irmãos Davenport; disseram que os amarraram muito bem; depois puseram farinha em suas mãos e os trancaram no armário, baixaram a luz e ouvi um grande ruído de violões, de campainhas e de pandeiros no armário. De repente o armário se abriu ─ bruscamente um pandeiro rolou violentamente até os meus pés, e os irmãos Davenport apareceram desamarrados, saudando o público, sacudindo a farinha posta em suas mãos. Aplaudiram muito; aí está! ─ Enfim, como explicais isto?

─ Há pessoas do Círculo que o explicam muito bem. Quanto a mim, por mais que dê tratos à bola, não sinto absolutamente nenhuma vontade de entender. Eles se desataram, eis tudo, e o golpe da farinha foi bem feito. Acho os preparativos demorados, o ruído aborrecido e tudo pouco divertido. E nada de espírito, nem no singular nem no plural.

─ Então, não acreditais?

─ Sim; acredito no aborrecimento que senti.

─ E o Espiritismo? Não acreditais nele?

─ Isto é pergunta de Sganarello a Don Juan. Logo ireis perguntar se acredito no Frade-Cabeçudo (Moine-Bourru). Responderei como Don Juan, que acredito que dois e dois são quatro e que quatro e quatro são oito. Ainda não sei se, vendo o que se passa na Alemanha e alhures, não seria forçado a fazer reservas.

─ Então sois ateu?

─ Não. Sem modéstia, sou o homem mais religioso da Terra.

─ Assim, acreditais em Deus, na imortalidade da alma, na ...

─ Creio. É a minha felicidade e a minha esperança.

─ E tudo isso se concilia com vosso quatro mais quatro são oito!

─ Precisamente. Tudo está aí. O turco é uma bela língua!

─ Então ides à missa?

─ Não, mas não vos impeço de ir. O pássaro no galho, o verme brilhando na grama, os globos no espaço e meu coração cheio de adoração me cantam a missa noite e dia. Amo a Deus apaixonadamente e sem medo. Que quereis que eu faça, com isso, das religiões e de outras variedades do davenportismo?

─ E o Espiritismo? E Allan Kardec?

─ Creio que o Sr. Allan Kardec, que faria muito melhor em usar o seu nome verdadeiro, é tão bom cidadão quanto vós e eu. Sua moral não difere da moral comum, que me basta. Quanto às suas revelações, gosto tanto quanto do armário dos Davenport, com ou sem violões. Li as revelações dos Espíritos; seu estilo não vale o de Bossuet, e, salvo as citações feitas das obras dos homens ilustres, é pesado e por vezes comum. Eu não gostaria de escrever como o mais forte do grupo. Meu editor me diria que o macarrão é bom, mas que dele não se deve abusar. O Espiritismo tem sobrenatural e dogmas e eu desconfio desse bloco enfarinhado. Eu disse isto há cinco anos, falando da doutrina, pois é uma doutrina: Ela tem tudo o que é preciso para instituir uma religião nova. Seria melhor ser simplesmente religioso e não ir além das revelações do Universo.

“Vejo essa religião despontar. Já é uma seita, e considerável, porque não podeis avaliar o número e a seriedade das cartas que já recebi, por haver tratado de Espiritismo ultimamente. Ele tem os seus fanáticos, terá os seus intolerantes, os seus sacerdotes, porque o dogma se presta à ação intermediária, pois os Espíritos têm classes e preferências. Assim que houver dez por cento a ganhar com esse novo dogma, ver-se-lhe-á um clero. Eu o creio destinado a herdar do Catolicismo, em razão de seus aspectos sedutores. Esperai apenas que os espertos aí se misturem, e os profetas e os evocadores privilegiados surgirão através do mistério da coisa, que é suave e poética, como as ervas parasitas num campo de trigo.

“Eis duas cartas que me foram dirigidas. Vêm de pessoas leais, simples e convictas. Por isto as publico.

“Ao Sr. Bertram.

“Há quatro anos eu era o que se pode chamar um franco retardatário: católico sincero, acreditava nos milagres, no diabo, na infalibilidade papal. Assim, teria acertado sem discutir a Encíclica de Pio IX, com todas as suas consequências na ordem política.

“Mas, perguntareis, com qual finalidade tal confissão de um desconhecido? Palavra, Sr. Bertram, vou informar-vos, com o risco de excitar a vossa veia trocista ou de vos fazer fugir até o fim do mundo.

“Um dia, em Antuérpia, vi uma mesinha (vulgarmente chamada mesa falante) que me respondeu a uma pergunta mental em meu idioma natal, desconhecido dos assistentes; entre eles havia espíritos fortes, maçons que não acreditavam nem em Deus nem na alma. A coisa lhes deu motivos para refletir; eles leram com avidez as obras espíritas de Allan Kardec; eu fiz como eles, sobretudo quando vários sacerdotes me haviam assegurado que tais fenômenos eram obra exclusiva do... demônio, e eu vos asseguro que não lamentei o tempo que isso me custou, muito pelo contrário. Nesses livros não só achei uma solução racional e muito natural do fenômeno acima, mas uma saída para muitas questões, para muitos problemas que antes me haviam surgido. Aí encontrastes matéria para uma religião nova; mas credes, Sr. Bertram, que haveria um grande mal nisso, se ocorresse? O Catolicismo está de tal modo vinculado às necessidades de nossa Sociedade que não possa ser renovado nem substituído vantajosamente? Ou acreditais que a Humanidade possa prescindir de toda crença religiosa? O liberalismo proclama belos princípios, mas é, em grande parte, céptico e materialista. Nessas condições, jamais ligaria as massas a si, tanto quanto o Catolicismo ultramontano. Se o Espiritismo um dia for chamado a tornar-se uma religião, será a religião natural, bem desenvolvida e bem compreendida, e certamente não é nova. É, como dizeis, uma velha novidade. Mas é também um terreno neutro, onde todas as opiniões, tanto políticas quanto religiosas, um dia poderão dar-se as mãos.

“Seja como for, desde que me tornei espírita, algumas más línguas me acusam de me haver tornado livre pensador. É verdade que a partir de então, assim como os Espíritos fortes dos quais eu falava acima, não mais creio no sobrenatural nem no diabo; mas, em compensação, todos cremos um pouco mais em Deus, na imortalidade da alma, na pluralidade das existências; filhos do século dezenove, percebemos uma estrada segura e queremos por ela empurrar o carro do progresso, em vez de retardá-lo. Vedes, pois, que o Espiritismo tem ainda coisas boas, porquanto pode operar tais mudanças.

“E agora, para voltar aos irmãos Davenport, seria erro evitar as experiências ou concluir com ideia preconcebida contra elas, pelo simples fato de serem novas. Quanto mais extraordinários os fatos que nos apresentem, mais merecem ser observados conscienciosamente e sem ideias preconcebidas, porque, quem poderia gabar-se de conhecer todos os segredos da Natureza? Jamais vi os irmãos Davenport, mas li o que a imprensa francesa escreveu sobre eles e fiquei admirado da má-fé posta no caso. Os amadores poderão ler com proveito Des forces naturelles inconnues (As forças naturais desconhecidas), de Hermès (Paris, Didier, 1865). É uma refutação, do ponto de vista da Ciência, das críticas contra eles dirigidas. Se é verdade que aqueles senhores não se apresentam como espíritas e não conhecem a doutrina, o Espiritismo não tem que lhes tomar a defesa. Tudo o que se pode dizer é que fatos semelhantes aos que eles apresentam são possíveis, em virtude de uma lei natural hoje conhecida e pela intervenção de Espíritos inferiores. Apenas, até aqui, esses fatos não se haviam produzido em condições tão pouco favoráveis, em horas fixas e com tanta regularidade.

“Espero, senhor, que acolhais estas observações desinteressadas e lhes deis hospitalidade em vosso jornal. Possam elas contribuir para elucidar uma questão mais interessante para os vossos leitores do que poderíeis supor.

“Vosso assinante,

“H. VANDERYST.”

“Ei-la publicada! Não me poderão acusar de ‘pôr a luz sob o velador’.

“Para começar, não tenho velador; depois, sem a sombra da troça, não vejo aqui muita luz. Jamais fiz objeção à moral espírita; ela é pura. Os espíritas são honestos e benfeitores. Seus donativos para as creches mo provaram. Se eles se apegam aos seus Espíritos superiores e inferiores, não vejo nisso inconveniente. É uma questão entre o seu instinto e a sua razão.

“Há um postscriptum na carta que diz: ‘Permiti chame a vossa atenção para a obra que acaba de ter as honras do Index: A Pluralidade das Existências da Alma, de Pezzani, advogado, onde essa questão é tratada fora da revelação espírita.’

“Passemos à outra carta:

(Segue-se uma segunda carta no mesmo sentido da precedente, e que assim termina):

“Tenho a convicção que, no dia em que a imprensa empenhar-se em desenvolver tudo o que o Espiritismo encerra de belo, o mundo fará progressos imensos, moralmente. Tornar perceptível ao homem que cada um traz em si a verdadeira religião, a consciência; deixá-lo em presença de si mesmo para responder por seus atos ante o Ser Supremo, que coisa importante! Não seria matar o materialismo, que faz tanto mal no mundo? Não seria uma barreira contra o orgulho, a ambição, a inveja, coisas que tornam o homem infeliz? Ensinar ao homem que deve fazer o bem para merecer sua recompensa: certamente há homens que estão convencidos de tudo isto, mas quantos em relação à totalidade? E tudo isto pode-se ensinar ao homem. De minha parte, evoquei meu pai e, graças às respostas obtidas, a dúvida não é mais possível.

“Se eu tivesse a felicidade de manejar a pena como vós, trataria o Espiritismo como chamado a nos inculcar uma moral suave e agradável. Meu primeiro artigo teria por título O Espiritismo, ou a destruição de todo fanatismo. A queda dos Jesuítas e de todos os que vivem da credulidade humana. Bebem-se todas essas ideias no excelente livro de Allan Kardec. Como eu gostaria que tivésseis a minha maneira de encarar o Espiritismo! Como faríeis bem à moral! Mas, meu caro Bertram, como pudestes encontrar sobrenatural e feitiçaria no Espiritismo? Não acho mais extraordinário em nos comunicarmos com nossos pais e amigos que passaram para o outro mundo, por meio do fluido que nos põe em contato com eles, do que nos comunicarmos com os nossos irmãos deste globo, a distâncias fabulosas, por meio do fio elétrico!”

* * *

“Tudo publicado sem observação nem comentários, para provar apenas que o Espiritismo na Bélgica tem partidários ardentes em sua fé. Positivamente, a seita faz progressos, e em breve o Catolicismo terá que contar com ela.

“A imprensa parisiense não foi de má-fé com os irmãos Davenport. O que ela deixa bem claro é que eles não mais exibem pretensões ao sobrenatural. Eles não mais fazem exibições a cinquenta francos por cabeça, ao menos que eu saiba. Contudo, creio que as pessoas que quisessem pagar esse preço por um lugar, não seriam mal recebidas. Para concluir, afirmo que seus exercícios não me parecem feitos para exercer grande influência sobre o futuro das sociedades humanas.

“BERTRAM.”

Depois das duas cartas que acabamos de ler, pouco temos a dizer sobre o artigo. Sua moderação contrasta com a acrimônia da maioria dos que outrora eram escritos sobre o mesmo assunto. Ao menos o autor não contesta aos espíritas o direito de ter uma opinião, que ele respeita, embora não a compartilhe. Em consonância com certos apóstolos do progresso, ele reconhece que a liberdade de consciência é um direito de todos. Já é alguma coisa. Ele concorda mesmo que os espíritas têm coisas boas e são de boa-fé. Constata, enfim, os progressos da doutrina, e confessa que ela tem um lado sedutor. Assim, faremos apenas ligeiras observações.

O Sr. Bertram nos considera mesmo tão bom cidadão quanto ele, e nós agradecemos, mas acrescenta que faríamos muito bem em usar o nosso nome verdadeiro. Por nosso lado, permitimo-nos perguntar-lhe por que assina seus artigos Bertram, em vez de Eugène Landois, o que nada tira de suas qualidades pessoais, pois sabemos que ele é o principal organizador da creche de Saint-Josse-Tennoode, da qual se ocupa com a mais louvável solicitude.

Se o Sr. Bertram tivesse lido os livros espíritas com tanta atenção quanto diz, saberia se os espíritas são tão simplórios para evocar o Judeu-Errante e Dom Quixote; saberia o que o Espiritismo aceita e o que rejeita; não tentaria apresentá-lo como uma religião, porque, da mesma forma, todas as filosofias seriam religiões, porquanto faz parte de sua essência discutir as bases de todas as religiões: Deus e a natureza da alma. Ele compreenderia, enfim, que se jamais o Espiritismo se tornasse uma religião, não poderia tornarse intolerante sem renegar seu princípio, que é a fraternidade universal, sem distinção de seita e de crença; sem abjurar sua divisa: fora da Caridade não há salvação, o mais explícito símbolo do amor ao próximo, da tolerância e da liberdade de consciência. Ele jamais diz: “Fora do Espiritismo não há salvação.” Se uma religião se apoiasse no Espiritismo com exclusão de seus princípios, não seria mais Espiritismo.

O Espiritismo é uma doutrina filosófica que toca em todas as questões humanitárias. Pelas modificações profundas que traz às ideias, faz encarar as coisas de outro ponto de vista, daí, para o futuro, inevitáveis modificações nas relações sociais. É uma mina fecunda onde as religiões, como as ciências, como as instituições civis, colherão elementos de progresso. Mas, porque toca em certas crenças religiosas, não constitui um culto novo, assim como não é um sistema particular de política, de legislação ou de economia social. Seus templos, suas cerimônias e seus sacerdotes estão na imaginação de seus detratores e daqueles que temem vê-lo tornar-se religião.

O Sr. Bertram critica o estilo dos Espíritos e coloca o seu muito acima: é direito seu e não o contestaremos. Também não contestamos sua opinião de que em questão de moral os Espíritos nada de novo nos ensinam. Isto prova uma coisa, é que os homens são disso os maiores culpados por praticá-la tão pouco. É, pois, de admirar que Deus, em sua solicitude, lha repita sob todas as formas? Se, sob esse ponto de vista, o ensino dos Espíritos é inútil, o do Cristo o era igualmente, porquanto ele apenas desenvolveu os mandamentos do Sinai. Os escritos de todos os moralistas também são inúteis, pois não fazem senão repetir a mesma coisa em outros termos. Com um tal sistema, quanta gente cujos trabalhos seriam inúteis, sem aí incluir os cronistas que, por sua condição, nada devem inventar.

É forçoso convir, portanto, que a moral dos Espíritos é tão velha quanto o mundo, o que nada tem de surpreendente se levarmos em consideração que não sendo a moral senão a lei de Deus, essa lei deve existir de toda a eternidade e que a criatura nada pode acrescentar à obra do Criador. Mas não há nada de novo no modo de ensinar? Até agora o código de moral não tinha sido promulgado senão por algumas individualidades; foi reproduzido em livros que nem todo mundo lê e nem todos compreendem. Pois bem! Hoje esse mesmo código é ensinado, não mais por alguns homens, mas por milhões de Espíritos, que foram homens, em todos os países, em cada família e, por assim dizer, em cada indivíduo. Credes que aquele que tiver sido indiferente à leitura de um livro, que tiver tratado as máximas que o mesmo encerra como lugares-comuns, não ficará diversamente impressionado se seu pai, sua mãe ou um ser que lhe é caro e que ele respeita, lhe vem dizer, mesmo num estilo inferior ao de Bossuet: “Não estou perdido para ti, como pensaste; estou aqui junto a ti, vejo-te e te escuto, conheço-te melhor que quando estava vivo, porque leio o teu pensamento. Para ser feliz no mundo onde estou, eis a regra de conduta a seguir; tal ação é boa e tal outra é má, etc.” Como vedes, é um ensino direto ou, se preferirdes, um novo meio de publicidade, tanto mais eficaz porque vai direto ao coração; porque nada custa; porque dirige-se a todo mundo, ao pequeno como ao grande, ao pobre como ao rico, ao ignorante como ao letrado, e porque desafia o despotismo humano que gostaria de impor-lhe uma barreira.

Mas, perguntareis, isto é possível? Não será uma ilusão? Essa dúvida seria natural se tais comunicações fossem feitas a um só homem privilegiado, pois nada provaria que não se engane. Mas quando milhares de indivíduos recebem mensagens semelhantes diariamente, em todos os países do mundo, é racional pensar que todos sejam alucinados? Se o ensino do Espiritismo estivesse encerrado exclusivamente nas obras espíritas, não teria conquistado a centésima parte dos adeptos que possui. Esses livros nada mais fazem que resumir e coordenar esse ensino, e o que constitui seu sucesso é que cada um encontra em seu íntimo a confirmação do que eles encerram.

Ter-se-á razão para dizer que o ensino moral dos Espíritos é supérfluo quando for provado que os homens são suficientemente bons para dispensá-lo. Até lá não é de admirar vê-lo repetido sob todas as formas e em todos os tons.

Que me importa, dizeis vós, Sr. Bertram, que me importa que haja ou não Espíritos! É possível que isto vos seja indiferente, mas não é assim com todos. É absolutamente como se dissésseis: “Que me importa que haja habitantes na América, e que o cabo elétrico me venha prová-lo!” Cientificamente, é apenas a prova da existência do mundo invisível; moralmente, é muito, porque a constatação da existência dos Espíritos povoando o espaço que julgávamos desabitado é a descoberta de todo um mundo, a revelação do futuro e do destino do homem, uma revolução nas suas crenças. Ora, se a coisa existe, toda denegação não poderá impedi-la de existir. Seus inevitáveis resultados bem merecem que com ela a gente se preocupe. Sois homem de progresso e repelis um elemento do progresso; um meio de melhorar a Humanidade, de cimentar a fraternidade entre os homens; uma descoberta que conduz à reforma dos abusos sociais contra os quais clamais incessantemente? Credes em vossa alma imortal e não vos preocupais absolutamente em saber o que ela se torna, o que se tornaram vossos pais e amigos? Francamente, isto é pouco racional. Direis que não é no armário dos Davenport que eu a encontrarei. De acordo. Jamais dissemos que aquilo é Espiritismo. Entretanto, esse mesmo armário, precisamente por que, com razão ou sem razão, aí fizeram intervirem os Espíritos, fez com que muito falassem dos Espíritos, mesmo aqueles que neles não acreditavam. Daí pesquisas e estudos que não teriam sido feitos se esses senhores se tivessem apresentado como simples prestidigitadores. Se os Espíritos não estavam em seu armário, bem que puderam provocar esse meio de fazer uma porção de gente sair de sua indiferença. Vedes que vós mesmo, inadvertidamente, fostes levado a semear a ideia entre vossos numerosos leitores, o que não teríeis feito sem esse famoso armário.

Quanto às verdades novas que ressaltam das revelações espíritas fora da moral, recomendamos o artigo publicado na Revista de janeiro de 1865 sob o título de O que o Espiritismo ensina.