Obreiros da Vida Eterna

Capítulo VIII

Treva e sofrimento



Completa a comissão de serviço de que Zenóbia se fazia acompanhar, pusemo-nos em marcha, abeirando-nos do vale de treva e sofrimento.

A sombra tornava-se, de novo, muito densa e não se conseguia divisar o recôncavo. Frases comovedoras, porém, subiam até nós. Dolorosos ais, blasfêmias, imprecações. Guardava a ideia de que vastíssimo agrupamento de infelizes se rebolcava no solo, em baixo. Os impropérios infundiam receio; contudo, os gemidos ecoavam-me angustiosamente nalma. Certo, os demais companheiros experimentavam análogas emoções, porque a Irmã Zenóbia tomou a palavra, esclarecendo:

— Os padecimentos que sentimos não se verificam à revelia da Proteção Divina. Incansáveis trabalhadores da verdade e do bem visitam seguidamente estes sítios, convocando os prisioneiros da rebeldia à necessária renovação espiritual; no entanto, retraem-se eles, revoltados e endurecidos no mal. Lamentam-se, suplicam e provocam compaixão. Raramente alguns deles nos ouvem o apelo. Às vezes, intentamos impor-lhes o bem. Entretanto, quando retirados compulsoriamente do vale tenebroso, acusam-nos de violentadores e ingratos, fugindo ao nosso contato e influenciação.

Embora o triste conteúdo da notificação, Zenóbia no-la fornecia, inflamada no espírito de serviço, a julgar pelo bom ânimo que transparecia de seus gestos e palavras.

— A negação deles, — continuou a orientadora, — não é motivo para qualquer negação de nossa parte. Lembremo-nos de que o esforço da Natureza converte o carvão em diamante… Trabalhemos em benefício de todos os necessitados, procurando, para o nosso espírito, o divino dom de refletir os Supremos Desígnios. Façam-se as obras da vida, não como queremos, mas como o Senhor determine. Grande é a beneficência do Pai para conosco. Repartamo-la em serviço de fraternidade e esclarecimento, na harmonia comum.

Em seguida, dez cooperadores, obedecendo-lhe as ordens, acenderam focos de intensa luz.

Contemplamos, então, sensibilizados e surpresos, monstruoso quadro vivo. Vasta legião de sofredores cobria o fundo, um pouco abaixo de nossos pés. A rampa que nos separava não era íngreme, mas compacto e enorme o lamaçal.

Em face da claridade brusca, muitas vozes suplicaram socorro, em frases angustiosas que nos cortavam a alma. Outras, porém, faziam-se ouvir, diferentes: vociferavam blasfêmias, ironias, condenações.

Recomendou Zenóbia, por necessário ao êxito de nossos trabalhos, nos congregássemos todos em grupo exclusivo, de modo a infundir respeito e temor nas perigosas entidades que ali se misturavam aos infelizes, acrescentando:

— Os adeptos da revolta e do desespero encontram-se igualmente aqui, compelindo-nos a severa atividade defensiva. São pobres desequilibrados que tentam induzir todas as situações à desarmonia em que vivem.

Em seguida, solicitou ao padre Hipólito dirigisse apelo geral, em nome do Senhor, às vítimas do infortúnio, para que considerassem a necessidade da transformação íntima.

O ex-sacerdote abriu pequeno manual evangélico que carregava consigo e leu, na relação do Apóstolo Lucas, a parábola do homem rico que se vestia de púrpura, em regalada existência, enquanto o mendigo chaguento lhe batia, debalde, à porta da sensibilidade. Pronunciou, alta e pausadamente, todos os versículos, Lc 16:19. Logo após, enchendo o expressivo silêncio, destacou a sentença “Lembra-te de que recebeste os teus bens em tua vida”, constante do versículo vinte e cinco, e dispunha-se ao comentário, quando certos gritos blasfematórios chegaram até nós, ameaçadores e sarcásticos:

— Fora! Fora! Abaixo as mentiras do altar!

— Ataquemos de vez o padre!

— Estamos bem, somos felizes! Não pedimos auxílio algum, não precisamos de arengas!

— Temos aqui o nosso céu! Vão para os infernos!…

Os adversários gratuitos de nossa atuação não se limitaram ao vozerio perturbador. Bolas de substância negra começaram a cair, ao nosso lado, partindo de vários pontos do abismo de dor.

— As redes! — Exclamou Zenóbia, dirigindo-se a alguns colaboradores, — estendam as redes de defesa, isolando-nos o agrupamento.

As determinações foram cumpridas rapidamente. Redes luminosas desdobraram-se à nossa frente, material esse especializado para o momento, em vista da sua elevada potência magnética, porque as bolas e setas, que nos eram atiradas, detinham-se aí, paralisadas por misteriosa força.


A diretora da Casa Transitória, afeita a ocorrências iguais àquela, fornecia-nos belo exemplo de firmeza e serenidade. Após organizar a defensiva, fez sinal ao pregador para que falasse; e o padre Hipólito, sobrepondo-se aos ruídos e insultos, iniciou o comentário com empolgante acento:

— Irmãos, que vos prepareis para a recepção da Luz Divina, é o nosso desejo fraternal! Reúnem-se aqui várias centenas de infortunados companheiros em precárias condições espirituais. De alma esfrangalhada pela dor, vencidos de aflição, suportando inomináveis padecimentos, entregai-vos, muita vez, ao desalento, à rebeldia e ao desespero. Perturbada e desditosa, vossa mente não sabe senão fabricar pensamentos de angústia destruidora. Alegais que as Forças Divinas vos esqueceram no vale fundo das trevas e, de negação em negação, transformai-vos, gradativa e naturalmente, em perigosos gênios da sombra e do mal, personificando figuras diabólicas e assediando, indistintamente, as obras edificantes dos mensageiros do Pai. Cruéis perversões interiores modificam-vos o aspecto fisionômico. Não vos assemelhais às criaturas humanas que fostes, repletas de dons divinos, e, sim, a imagens vivas das regiões infernais, infundindo compaixão aos bons, receio e pavor aos mais tímidos. Na lastimável posição mental a que vos conduzistes e na qual muitos de vós outros perseverais apaixonadamente, sois tão autênticos demônios da perversidade e do crime, que nem mesmo as vergastadas da dor conseguem modificar a boca disforme. Entretanto, sois nossos irmãos mais infelizes, aleijados do sentimento e do raciocínio, perdidos em dolorosos desertos da ignorância, não por falta de amor da Providência Celeste, mas pela própria imprevidência no descaso com que recebestes na Terra todas as oportunidades de ascensão à Esfera superior do Espírito eterno. Por mais que nos expulseis de vossas congregações de sofrimento, nunca escasseará, para convosco, nossa sincera comiseração. Visitaremos a paisagem sinistra dos abismos, quantas vezes se façam necessárias. Nunca nos cansaremos de proclamar a misericórdia excelsa do Pai e jamais se imobilizará nossa mão fraterna no sublime serviço da semeadura do bem e da verdade!

As palavras injuriosas que ouvíamos antes, desapareceram, pouco a pouco. A franqueza de Hipólito triunfara. O pregador falava com ardorosa eloquência e, possuído de angélicos pensamentos, todo ele irradiava luz. Ante o respeitoso silêncio que o seu verbo inflamado provocara, prosseguiu, comovendo-nos:

— Dominam-vos a inveja e o despeito, a maldade e o sarcasmo, quando não permaneceis aniquilados de supremo terror. Emitis desordenadas paixões, entre coros de ironias e lágrimas… Quase todos, recebeis nosso concurso amoroso, reagindo, impenitentes. Acreditais que somos agraciados por favores indébitos, que somos prediletos dos Céus e afirmais levianamente que privilégios gratuitos nos felicitam a vida. Ó meus amigos! Não vos falará, porventura, a inteligência da justiça indefectível que rege toda a vida? Somos, também, batalhadores a longa distância da última vitória sobre nós mesmos, encontramo-nos, igualmente, no mesmo carreiro de redenção. Trabalhamos, lutamos, choramos e sofremos; apenas diverge de algum modo a nossa posição da vossa, porquanto, nós outros, que vos dirigimos a palavra tranquila e fraterna, já iniciamos o luminoso aprendizado do reconhecimento a Deus, nosso Pai, todo poder, justiça e misericórdia, agradecendo ao Cristo, o Divino Intermediário, o ensejo de trabalho e realização no presente. Também sentimos saudades do lar terrestre e dos brandos elos afetivos que se movimentam agora, muito distantes, experimentando, como vos acontece, o vivo desejo de regressar ao passado, a fim de retificar os caminhos percorridos, e, quase sempre, debalde procuramos aqueles que nos testemunharam amor, com o fim de beijar-lhes as mãos e pedir-lhes esquecimento das nossas fraquezas. Possuímos, todavia, a felicidade de compreender a extensão de nossos débitos e pusemo-nos, desde muito, a caminho do futuro redentor.

Penetrando a interpretação direta da parábola, Hipólito modificou o tom de voz e prosseguiu:

— Qual de nós não terá sido, na Crosta do Mundo, aquele “rico, vestido de púrpura e linho finíssimo”, do ensinamento do Mestre? Exibíamos a roupa vistosa e brilhante do “eu” egoístico, ferindo a observação de nossos semelhantes e vivendo o bendito ensejo de permanência nos Círculos carnais, “regalada e esplendidamente”. Todos nós, que nos associamos nesta paisagem de dor, tivemos, em derredor, mendigos de afeto e socorro espiritual mostrando-nos, em vão, as chagas de suas necessidades. Chamavam-se eles familiares, parentes, companheiros de luta, irmãos remotos de humanidade… Eram filhos famintos de orientação, pais necessitados de carinho, viandantes do caminho evolutivo sequiosos de auxílio, que, improficuamente, se aproximavam de nós, implorando algo de reconforto e alegria. Em geral, lembrávamo-nos sempre tarde de suas feridas interiores, indiferentes ao menosprezo da oportunidade sublime que nos fora concedida para ministrar-lhes o bem. No justo instante a que se recolhiam no leito mortuário, multiplicávamos afetos e carícias, depois de haver gasto o tempo sagrado da vida humana entre a insensibilidade e a exigência. Desejavam, os mais pobres que nós, alguma coisa das migalhas de nosso permanente banquete de conhecimentos e facilidades, frequentavam-nos a companhia, quais crianças necessitadas de iluminação e ternura, e os próprios cães se inclinavam para eles, tomados de natural simpatia… Nós, porém, envaidecidos das próprias conquistas, encarcerados em clamorosa apatia, amontoávamos expressões de bem-estar, crendo-nos superiores a todas as criaturas integrantes do quadro de nossa passagem pela carne. Prisioneiros de nossas criações inferiores, a morte precipitou-nos no despenhadeiro purgatorial, semelhante ao tenebroso inferno da teologia mitológica. Envelhecida e rota a veste rica da oportunidade, ao término do curso de aprimoramento espiritual no educandário terrestre, somos, por vezes, mais pobres que o último dos miseráveis que nos batiam, confiantes, à porta do coração e para os quais poderíamos ter sido beneméritos doadores da felicidade. Viajores, na travessia do rio sagrado da elevação, fugíamos de todos os companheiros necessitados, instituíamos serviços ativos de vigilância contra os náufragos sofredores, estimávamos, acima de tudo, o bom tempo, as ilhas encantadas de prazer, a camaradagem dos mais fortes, para atingir a outra margem, humilhados e pesarosos, em terríveis necessidades do espírito, incapazes de prosseguir a caminho dos continentes divinos da redenção… Sejamos razoáveis, meus irmãos, reconhecendo que esse inferno é construção mental em nós mesmos. O estacionamento, após esforço destrutivo, estabelece clima propício aos fantasmas de toda sorte, fantasmas que torturam a mente que os gerou, levando-a a pesadelos cruéis. Cavamos poços abismais de padecimentos torturantes, pela intensidade do remorso de nossas misérias íntimas; arquitetamos penitenciárias sombrias com a negação voluntária, ante os benefícios da Providência. Desertos calcinantes de ódio e malquerença estendem-se aos nossos pés, seguindo-se a jornadas vazias de tristeza e desconsolo supremo. Semelhamo-nos a duendes vagabundos da inquietação e do desalento, pela amargura do que fomos e pela dificuldade quase invencível na aquisição dos recursos para o que devemos vir a ser. De um lado, a falência gritante; do outro, o desafio da vida eterna. Como o rico infeliz da parábola, todavia, sabemos que muitas de nossas vítimas de outro tempo escalaram altas posições no campo hierárquico da eternidade; que muitos daqueles mendigos de carinho da estrada humana foram conduzidos a fontes da Maravilhosa Sabedoria e do Inesgotável Amor, e, assim, porque não impetrarmos o concurso de suas bênçãos intercessórias? Porque não dobrarmos humildemente a cerviz, considerando os desvios do passado, a fim de recebermos a sublime e indispensável cooperação do presente? Sabemos, amigos, que muitos de vós outros padeceis, atormentados, a devoradora sede da água viva do Espírito imortal, que, aflitos e desanimados, neste vale de sombras, desejaríeis romper todos os obstáculos para a recepção de uma gota apenas do líquido precioso, prometido por Jesus aos sedentos que a Ele se devotassem de boa vontade! Ah! Não basta, porém, a desordenada rogativa de dor, para que o orvalho divino refresque o coração dorido e dilacerado! Urge regenerar o vaso receptivo da alma enferma, alijando a poeira venenosa da Terra, para que permaneça puro e reconfortante o rocio do Céu! Imprescindível o sofrimento de função purificadora. Os desvarios mentais, a que nos entregamos na Crosta Planetária, são energias que presentemente se manifestam com a intensidade das forças libertas, depois de longo represamento, e, daí, a intraduzível angústia da fome, da sede, da aflição e da enfermidade que muitos de vós ainda sentis, pela carência de conformação com as leis estabelecidas pelo Eterno Pai!…

Pelo silêncio do ambiente, parecia-me que o padre Hipólito era ouvido com respeitosa atenção pelas inúmeras fileiras de sofredores ali congregados diante de nós. Após ligeira interrupção, continuou o pregador, bem inspirado:

— Nenhum de nós outros, os que apelamos para a vossa renovação, encontrou até agora a residência dos anjos. Somos companheiros em cujo coração palpita, plena, a humanidade, com os seus defeitos e aspirações. Compreendemos, contudo, vosso tormento consumidor e trazemos a todos o convite de renúncia aos impulsos egoísticos, concitando-vos, ainda, ao reconhecimento devido ao Senhor e à penitência pelos nossos erros voluntários e criminosos do passado. Agradeçamos a Misericórdia Divina e, reunidos, peçamos ao Cristo entendimento de sua vontade sublime e sábia, com a precisa força para executá-la, onde estivermos. Não roguemos, como o rico enganado da narração evangélica, qualquer vantagem para o nosso individualismo ou para o círculo pessoal de nossos interesses particulares, mas, sim, a compreensão, suficiente compreensão dos deveres que nos cabem, na atualidade menos venturosa, de acordo com as suas diretrizes salvadoras. E, cheios de confiança nova, aguardemos o porvir, em que a Terra, nossa grande mãe, nos oferecerá, generosa, outras ocasiões fecundas de aprender e resgatar, santificar e redimir.


Nesse momento, o ex-sacerdote sustou por longos instantes a pregação, possibilitando-nos detido exame do quadro exterior.

Longas filas de sofredores acorriam de todos os recantos, fitando-nos à claridade das tochas, à distância de trinta metros, aproximadamente. Estendiam-se em vasta procissão de duendes silenciosos e tristes, parecendo guardar todas as características das enfermidades físicas trazidas da Crosta, no campo impressivo do corpo astral. Viam-se ali necessitados de todos os tipos: aleijões, feridas, misérias exibiam-se ao nosso olhar, constringindo-nos os corações. Muitos deles, ajoelhados, talvez na suposição de que fôssemos embaixadores do Celeste Poder em visita ao purgatório desditoso, mantinham-se em posição de supremo respeito, embora deixando transparecer, na face angustiada, indescritíveis padecimentos. De olhos ansiosos, falavam sem palavras do intenso e secreto desejo de se unirem a nós; entretanto, algo lhes coibia a realização. Semelhavam-se a prisioneiros, suspirando pela liberdade. Porque não corriam ao nosso encontro? Porque não se ajoelharem, junto de nós, em sinal de reconhecimento sincero a Deus? Desejando penetrar a causa daquela imobilidade compulsória, compreendi, sem maiores esclarecimentos, o que se passava. Entre a multidão compacta e nós outros, cavava-se profundo fosso, e, onde surgiam possibilidades de transposição mais fácil, reuniam-se pequenos grupos de entidades que se revelavam por sinistra expressão fisionômica. Não podia abrigar qualquer dúvida. Aqueles rostos agressivos e duros sustentavam severa vigilância. Que faziam aí semelhantes verdugos? Permaneceriam dirigidos por potências vingadoras, com poderes transitórios na zona das trevas, ou agiriam por sua conta própria, obedientes a desvairadas paixões da mente em desequilíbrio? Recordei antigas lendas do inferno esboçado na teologia católico-romana, para concluir que a fogueira ardente, onde Satã se comprazia em torturar as almas, devia ser mais bela que a paisagem de lama, treva e sofrimento à nossa vista. Recolhi, porém, o fio das considerações desnecessárias ao momento, compreendendo que o minuto não comportava divagações, por exigir contribuição ativa.

Prolongando-se a pausa do pregador, uma criatura de rosto patibular gritou, em meio de gestos odiosos:

— Não pedimos exércitos de salvação! Fujam daqui!

Bastou isolada manifestação para que outras expressões de desagrado explodissem.

— Não desejamos redimir coisa alguma! Nada devemos! Interessam-nos o culto sistemático do ódio, a revolta contra os deuses insensíveis, o movimento de resistência à repugnante aristocracia espiritual!

— Morram os pregoeiros da virtude falsificada! Caiam os oportunistas de além-túmulo! Viva o nosso movimento de destruição contra a velha ordem dos senhores e dos escravos! Depois das ruínas, edificaremos o mundo novo!

Homenzarrão hirsuto, com todas as particularidades dum gigante, avançou até à borda do fosso, no outro lado, fez significativo gesto de provocação e perguntou, bradando:

— Calou-se o realejo do padre?!

Riu-se, diabolicamente, e continuou:

— Perdem tempo! Estão redondamente enganados! Também temos programa e também sabemos querer! Onde está o Deus que nos prometeram?! Têm, porventura, o mapa do céu? Nossos ídolos agora estão quebrados. Somos filhos do desespero, tentando reorganizar a vida no deserto que nos defronta. Voltaremos, acaso, à ingenuidade primitiva, a ponto de acreditar novamente em mentiras religiosas? Em que remota região se compraz a beneficência divina que não se condói de nossas necessidades? Declaram-se felizes e proclamam a compaixão de um pai que não conhecemos. Viram-no alguma vez?

Fria gargalhada pontilhou suas últimas palavras. Revelando-se sob forte impressão, o padre Hipólito respondeu:

— O conhecimento da Divindade e o roteiro celeste serão encontrados dentro de nós mesmos. Por que audácia inominável cometeríamos o absurdo de aguardar plena e pronta identificação da nossa natureza egressa da irracionalidade, em dias tão curtos, com a sublime plenitude de Deus? Como ombrear-se o batráquio com o Sol? Em verdade, as religiões antropomórficas da Crosta envenenaram-nos a mente, instilando falsas concepções de Deus em nossos raciocínios. Não podemos, todavia, culpá-las em sentido absoluto, porquanto a estagnação espiritual caracterizava-nos a todos. Quando os discípulos se integrarem efetivamente, de cérebro e coração renovado, no Evangelho do Mestre, será impossível a negativa interferência sacerdotal. O dogma, considerado imparcialmente, constitui desafio e castigo simultâneos. Desafio à inteligência investigadora e construtiva, para que se dilate no mundo a noção do Universo Infinito, e castigo às mentes ociosas que renunciam levianamente ao dom de pensar e decidir por si mesmas as questões sagradas do destino. Em toda parte encontraremos a Sabedoria Operante e Invisível do Senhor, estendendo-se em todas as minúcias da Natureza. Calai, portanto, a vaidade ferida e o orgulho humilhado que vos ditam observações ingratas e criminosas! Detende-vos no santuário da consciência e não exigireis visões e revelações que não conseguiríeis suportar. Tomados, pois, de compaixão pela vossa rebeldia e infortúnio, rogamos ao Senhor abençoe a esperança de quantos nos ouvem, famintos de suprema redenção, como nós, diante da grandeza inapreciável da vida eterna!

Para outro público, as palavras do ex-sacerdote seriam vivas e convincentes, mas as entidades endurecidas e perversas, para quem foram proferidas, mostraram-se frias e insensíveis.

Fizeram-se ouvir outras vozes, em sinistro coro:

— Basta! Basta!

— Fora! Fora!…

Todavia, entre aqueles que nos seguiam atenciosamente o serviço, contemplamos inúmeros rostos angustiados, revelando o pavor que os companheiros lhes causavam. Aumentara-se-lhes o número. Verifiquei, porém, que não havia ali uma só criança. Apenas adultos, jovens e velhos de todos os aspectos. Notava-se que a dissertação de Hipólito lhes fizera enorme bem. Muitos deles vertiam pranto copioso. Contudo, impropérios e maldições cruzavam o espaço. Os malfeitores impenitentes não nos toleravam a presença e cada qual era mais fértil nas ironias selecionadas, com o fim de despertar humorismo sarcástico e desprezo na desventurada assembleia.

A princípio, impulsos de reação afloraram-me no espírito surpreso. Não seria conveniente que nos organizássemos contra semelhante malta de criminosos? Não seria melhor saltar o óbice visível e arrebatar-lhes as vítimas indefesas? A nosso favor, contávamos com a volitação fácil. E as noções de caridade avivavam-me justificado instinto de reação. Perante nós, a algumas dezenas de metros viam-se mulheres desfiguradas pela dor, velhos e moços esquálidos e abatidos. Ninguém fugia ao doloroso aspecto de supremo infortúnio. Semelhavam-se a cadáveres em retorno inesperado à vida, depois de longa permanência no túmulo.

Pensamentos de revolta cruzavam-se-me no cérebro.

Por que razão o padre Hipólito não respondia à altura? Porque não punir aqueles sicários da sombra, que denunciavam refinada cultura intelectual e vigorosa inteligência? Não possuíamos suficiente poder para a repressão necessária?

O Assistente Jerônimo, percebendo-me o perigoso estado dalma, aproximou-se cautelosamente de mim e falou, discreto:

— André, extingue a vibração da cólera injusta. Ninguém auxilia por intermédio da irritação pessoal. Não assumas papel de crítico. Permanecemos aqui, na qualidade de irmãos mais velhos no conhecimento divino, tentando socorro aos mais jovens, menos felizes que nós. Revistamo-nos de calma e paciência. Responder a insultos descabidos é perder valioso tempo, na obra de confraternização, ante o Eterno Pai. Hipólito não pode duelar verbalmente, nem a Irmã Zenóbia autorizaria qualquer violência a estes infortunados, sob pena de relegarmos ao esquecimento sublime oportunidade de praticar o verdadeiro bem. Modifica a emissão mental para que te não falte a cooperação construtiva e guardemos a voz, não para condenar, e, sim, para informar e edificar cristãmente.

Reajustei o campo emotivo, rogando a Jesus me conferisse forças para olvidar o “homem velho” que gritava dentro de mim.

Com a invocação ao Plano Superior, através da súplica, instantânea compreensão brotou-me na consciência.

Em verdade, como interpretar investidas de criaturas já de si mesmas tão desventuradas? Antes de tudo, necessitavam de amparo e compaixão. Não haviam recebido ainda, como acontecera a nós outros, a bênção da fé viva, da conformação aos desígnios da Lei Eterna, do reconhecimento das próprias necessidades interiores, por incapacidade espiritual. Blasfemavam e riam, sarcásticas. Desprezavam as dádivas da Providência. Injuriavam o Mestre. Esqueciam todas as considerações referentes à ordem divina e ao respeito humano. Quem éramos nós, para convertê-las, inopinadamente, se o próprio Senhor lhes tolerava, paciente e amigo, as palavras torpes, sem represálias individuais? Não lhes bastaria a limitação lamentável a que se entregavam? No círculo estreito do sofrimento e acoimados pelo desespero, não ultrapassavam a esfera de sensações grosseiras e intentavam inutilmente combater o bem. Verdade é que doía vê-los oprimindo míseras entidades que se ajoelhavam, sob nosso olhar, implorando ajuda e libertação; entretanto, razões ponderáveis existiriam, justificando a ligação entre algozes e vítimas, razões que me escapavam, naturalmente, na hora em curso. Modificaram-se-me as apreciações do primeiro instante. Tomado de súbita piedade, notei que, ao serenarem as ironias dos maus e observando talvez que não transpúnhamos o obstáculo em serviço de libertação, pintava-se, na fisionomia dos sofredores confessos, a mais pungente ansiedade.

Pobre velhinha, que me pareceu desassombrada na fé, examinando os terríveis fatores circunstanciais, estendeu-nos os braços esqueléticos e, na sua antiga concepção religiosa, suplicou-nos:

— Santos mensageiros de Deus, nosso Pai, dignai-vos retirar-nos do purgatório! Estamos torturados pelo fogo dos remorsos e pelos demônios que nos cercam. Por piedade, salvai-nos!

Fortes soluços interceptavam-lhe a voz; todavia, a venerável anciã continuou:

— Nossas faltas, mal pagas na Terra, uniram-nos aos Espíritos perversos do abismo! Somos pecadores necessitados da purgação, mas não nos abandoneis à nossa própria sorte! Ajudai-nos, em nome de Jesus, por quem vos suplicamos a graça da salvação! Errei muito, é verdade… Entretanto, meu Espírito arrependido implora proteção… Sei que não mereço o descanso do paraíso, mas, ó emissários do Céu! Por quem sois, concedei-me recursos para resgatar minhas dívidas. Estou pronta! Procurarei aqueles a quem ofendi durante a vida terrestre, a fim de humilhar-me e pedir perdão!…

De mãos postas, a fitar-nos angustiosamente, concluía:

— Não me desampareis! Não me desampareis!…

Mudou-se de algum modo o quadro. A valorosa pedinte encorajou os demais companheiros de infortúnio:

— Pelos méritos de São Geraldo de Majela gritou um infeliz, — revelando sua antiga condição de católico-romano, — libertai-nos daqui! Salvai-nos do torvelinho infernal! Socorrei-nos, por amor de Deus!

Destacando-se umas das outras, as súplicas proferidas evidenciavam a presença de adeptos de variados credos religiosos, conhecidos na Crosta, e os espiritistas não faltavam no triste concerto. Determinada senhora, de porte respeitável, cabelos revoltos e fundas chagas no rosto, deprecou, chorosa:

— Espíritos do Bem, auxiliai-me! Eu conheci Bezerra de Menezes na Terra, aceitei o Espiritismo. No entanto, ai de mim! Minha crença não chegou a ser fé renovadora. Dedicava-me à consolação, mas fugia à responsabilidade! A morte atirou-me aqui, onde tenho sofrido bastante as consequências do meu relaxamento espiritual! Socorrei-me, por Jesus!

De todos os recantos soavam apelos comovedores.

Jamais esquecerei a inflexão das palavras ouvidas. Jovens e velhos, homens e mulheres, em deploráveis condições, prostrados a reduzida distância, respeitosos e confiantes, em virtude das luzes que acendêramos dentro da noite triste, imploravam o socorro divino, tratando-nos com extrema veneração, como se fôramos legítimos expoentes de santidade. Quando os rogos cresceram, partindo de tantas bocas, os verdugos empunharam látegos sinistros, espalhando vergastadas, quase que indiscriminadamente… A maioria dos pobres que se mantinham genuflexos debandou, em passos tão apressados quanto lhes era possível, regressando aos ângulos sombrios do vale fundo. Alguns, porém, suportavam os golpes, heroicamente, prosseguindo de joelhos e contemplando-nos, ansiosos.

Indicando-nos, sarcástico, certo perseguidor vociferou, estentoricamente:

— Estão vendo? São benfeitores de gravata! Não se atiram à luta em favor de ninguém! Ensinam com lábios, mas, no fundo, são mensageiros do inferno, insensíveis e duros, como estátuas de pedra. Nenhum deles ousa atravessar a barreira para prestar-vos assistência e socorro!…

Seguiram-se gargalhadas tão escarnecedoras que todo o meu sentimento de repulsa humana aflorou de súbito. Onde estava que não reprimia o provocador? Porque não puni-lo devidamente? Abeirava-me de pleno desequilíbrio mental, quando a Irmã Zenóbia, temendo talvez pela nossa reação, se voltou, tranquila, e recomendou:

— Amigos, conservemo-nos em calma para o trabalho eficiente. Ninguém se conserva neste abismo de dor, sem razão de ser.

E possivelmente convicta da necessidade de argumentação mais firme para demover-nos, acrescentou:

— Que seria do Cristianismo se Jesus abandonasse o madeiro do testemunho, a meio caminho, a fim de entrar em pugilato com a multidão? Permanecemos aqui em tarefa consoladora e educativa, não o esqueçamos. O serviço de punição dos culpados virá de Mais Alto.

A referência despertou-nos, de pronto, para o caráter elevado da investidura. As almas efetivamente superiores possuem o dom de projetar-nos o espírito em zonas sagradas da vida, reintegrando-nos na corrente inspiracional das Forças Divinas que sustentam o Universo.

A hora não comportava qualquer dissertação mais longa, a respeito das obrigações que deveríamos desempenhar. Sem perda da tempo, a diretora da Casa Transitória entrou em combinação com os auxiliares que havia trazido, desenrolando extenso material socorrista.

Iam as providências em meio, quando vários grupos de infelizes tentaram vencer o obstáculo, ansiosos por se reunirem a nós outros; mas os verdugos, agindo, solertes, golpeavam-nos cruelmente, empenhando-se em luta para precipitá-los ao fundo do fosso tenebroso, do qual fugiam as vítimas, tomadas de visível terror.

Ativa, delicada, Zenóbia determinou que fossem lançadas faixas luminosas de salvação ao outro lado, no propósito de retirarmos o número possível de sofredores de tão amargurosa situação; todavia, a ordem seguiu-se de odiosa represália. Os gênios diabólicos fizeram-se mais duros. Acorreram míseras almas, aos magotes, buscando agarrar-se às extremidades resplandecentes, descidas na margem oposta, como bordos de acolhedora ponte de luz; no entanto, multiplicaram-se golpes e pancadas. Entidades perversas, em grande número, continham os aflitos prisioneiros, impedindo-lhes o salvamento, com manifesto recrudescimento de maldade. Nosso esforço persistiu por longos minutos, ao fim dos quais, observando que redundavam inúteis, apenas favorecendo a dilatação da agressividade dos algozes, a Irmã Zenóbia, mantendo-se em grande serenidade, determinou fosse recolhido o material utilizado para os trabalhos de salvação.


Às rogativas chorosas das vítimas, casavam-se as frases injuriosas dos verdugos, confrangendo-nos o coração.

Após a recomposição do material, improficuamente utilizado, a devotada orientadora acenou para um servidor que lhe trouxe pequenino aparelho, destinado à ampliação da voz, e falou, pausadamente, na direção do abismo:

— Irmãos em humanidade, reine conosco a Paz Divina!

Sua palavra adquirira impressionante poder de repercussão. Ecoava, longe, como se fosse endereçada às almas que, porventura, se mantivessem dormindo a consideráveis distâncias.

Sem qualquer demonstração de impaciência ou desagrado, continuou:

— Regozijai-vos, ó corações de boa vontade! E confiai, sobretudo, na proteção de Nosso Senhor Jesus. Dilaceram-nos vossas dores, tocam-nos, de perto, as incompreensões e sofrimentos a que vos entregastes, apartados da Lei Divina, e se não atravessamos o fosso negro, na tentativa suprema de salvar-vos temporariamente do mal, é que somos igualmente companheiros de luta, sem imunidades angélicas, detentoras de possibilidades limitadas no amparo aos semelhantes! Alegrai-vos, porém, e aguardai, confiantes, porque se manifestará, em vosso benefício, o fogo consumidor, nesta região menos feliz, onde tantas inteligências perversas tripudiam sobre os mandamentos do Pai e menosprezam-Lhe as bênçãos de luz. Amanhã mesmo, demonstrar-se-á o Supremo Poder.

Fez pequena pausa e prosseguiu:

— Faz mais de um lustro que a Casa Transitória de Fabiano persevera nestas zonas de treva e sofrimento, convocando almas perdidas ao aproveitamento da bendita oportunidade do recomeço, através do trabalho dignificador, em cujas bênçãos há sempre recursos de apagar as manchas do pretérito, regenerando-se os caminhos do porvir. Há cerca de dois mil anos ensinamos o bem e a verdade, preparando corações para o futuro redentor. Se é inegável que muitos irmãos se valeram de nosso concurso humilde, aceitando o remédio para a restauração, a maioria de vós outros sempre nos fugiu à influência, desdenhando-nos o socorro, abjurando-nos a colaboração, desprezando-nos os serviços, favorecendo a discórdia e a perseguição e oferecendo-nos obstáculos de toda sorte. Entretanto, meus amigos, o pouso de Fabiano ainda se coloca no vosso dispor, até amanhã, durante as primeiras horas.

Ante a grave inflexão daquela voz e considerando talvez o teor do aviso, calaram-se as bocas pervertidas e desequilibradas. Os mais perversos passaram a contemplar-nos, entre o receio e a interrogação.

Depois de curto intervalo, Zenóbia prosseguiu, fundamente emocionada:

— Não lutamos corpo a corpo com a ignorância audaciosa e infeliz, porque a delegação que o Mestre nos confiou traça-nos deveres de amor e não de porfia. Fomos designados para ministrar o bem e lamentamos que irmãos horrivelmente desventurados nos ofereçam resistência, mergulhando-se no pântano da revolta pessoal. Não temos, porém, qualquer palavra condenatória. Os que tentam escapar às Leis Eternas são bastante infortunados por si mesmos. Amarga ser-lhes-á a colheita da triste semeadura. Gastarão longo tempo extraindo espinhos envenenados, introduzidos por eles próprios no coração. Porque combatê-los se estão vencidos, desde o primeiro repto à Divindade? Porque torturá-los, se permanecem perseguidos pelos fantasmas criados pela própria rebeldia e insensatez? O Poderoso Senhor, porém, que ama os justos e retifica os injustos, fará com que amanhã surja neste céu a tempestade renovadora. O asilo de Fabiano receberá criaturas de boa vontade, dentro das horas próximas; todavia, será inútil procurar-lhe o socorro sem modificação substancial para o bem. Sofredor algum será recolhido tão só porque implore abrigo com os lábios. Nossa casa de paz cristã é igualmente templo de trabalho cristão e a hipocrisia não lhe pode alterar o ministério santificador. Nossas defesas magnéticas funcionarão rigorosas e apenas os corações sinceramente interessados na renovação própria, em Cristo Jesus, serão portadores de senha indispensável ao ingresso. Debalde, rogarão socorro as entidades endurecidas no crime e na indiferença.

Os algozes fixavam as vítimas com expressão odiosa.

A Irmã Zenóbia, contudo, prosseguiu, intrépida, dirigindo-se especialmente aos infortunados:

— Suportai os verdugos cruéis por mais algumas horas e valei-vos da oração para que não vos faltem energias interiores. Não temos necessidade da luta corporal, nem da defensiva destruidora e, sim, da resistência que o Divino Mestre exemplificou. Tolerai os inimigos gratuitos do bem, desesperados e infelizes, que nos perseguem e maltratam, orando por eles, porque o Poder Renovador se manifestará, convidando, por intermédio do sofrimento, a que se arrependam e se convertam.

Em seguida, expressando otimismo e felicidade nos olhos lúcidos, a orientadora ergueu comovente súplica pelos habitantes do abismo, a qual acompanhamos com lágrimas de emoção.

Semblantes angustiados seguiam-nos, atentos, na outra margem, enquanto os impenitentes adversários da luz guardavam silêncio. Entrementes, os encarcerados na dor continuaram implorando auxílio, mas, atendendo as determinações da Irmã Zenóbia, apagamos as luzes, pondo-nos de volta.

De outras vezes, ao término dos incidentes que me surpreendiam, eu conservava uma imensidade de indagações no cérebro ágil e curioso. Agora, todavia, regressava tristemente.

A extensão da luta compungia-me o ser. Os padecimentos da ignorância, de fato, não tinham limites e todo abuso do livre arbítrio individual encontrava punição espontânea nas leis universais. Certo, em diferentes lugares, outros abismos como aquele estariam repletos de vítimas e verdugos.

Ah! Também eu guardava no vaso do coração todos os ressaibos das vicissitudes humanas! Também eu sofrera muito e havia feito sofrer! Reminiscências vigorosas da existência carnal jaziam vivas em mim. De alma voltada em silêncio para o Cristo de Deus, meditei sobre a grandeza do seu sublime sacrifício e, pensando nos cruéis perseguidores e nos pobres perseguidos do vale escuro, perguntava ao Senhor, na intimidade do coração frágil e oprimido, por quem deveria eu chorar mais intensamente.