1. — Escrevem de Winschoten, † em 2 de maio de 1867, ao Journal de Bruxelles: †
Sábado passado, um operário cavouqueiro de nossa comuna apresentou-se à casa do guarda rural, onde intimou esse funcionário a prendê-lo e o entregar à justiça, diante da qual, dizia, deveria fazer a confissão de um crime por ele cometido há vários anos. Levado à presença do burgomestre, esse operário, que declarou chamar-se J. Ryzak, fez o seguinte relato:
“Há cerca de doze anos eu era empregado nos trabalhos de dessecamento do lago de Harlem, quando um dia o cabo, pagando a minha quinzena, entregou-me o soldo devido a um de meus camaradas, com ordem de o entregar a este último. Gastei o dinheiro e, querendo evitar os dissabores das investigações, resolvi matar o amigo a quem acabava de roubar. Para isto, precipitei-o num dos abismos do lago, mas, vendo-o voltar à superfície e fazer esforços para nadar para a margem, dei-lhe duas facadas na nuca.
“Tão logo cometi o crime, comecei a sentir remorso. Em breve tornou-se intolerável e foi-me impossível continuar no trabalho. Comecei por fugir do teatro do meu crime, e não achando em parte alguma do país nem paz nem trégua, embarquei para as Índias, onde me engajei no exército colonial. Mas lá, também, o espectro de minha vítima perseguiu-me noite e dia; minhas torturas eram incessantes e inauditas e, assim que terminou o meu tempo de serviço, uma força irresistível impeliu-me a voltar a Winschoten e a pedir à justiça o apaziguamento de minha consciência. Ela mo dará, impondo-me a expiação que julgar conveniente. E se ordenar que eu morra, prefiro este suplício à tortura que me faz experimentar, há doze anos, a toda hora do dia e da noite, o carrasco que trago no peito.”
Após esta declaração, e certificando-se de que o homem que estava à sua frente era são de espírito, o burgomestre requisitou a polícia, que prendeu Ryzak e relatou imediatamente o fato ao oficial de justiça.
Aqui se aguarda com emoção os desdobramentos que poderá ter este estranho acontecimento.
Como sabeis, cada ser tem a liberdade do bem e do mal, o que chamais de livre-arbítrio. O homem tem em si a consciência, que o adverte quando fez bem ou fez mal, cometeu uma má ação ou descurou de fazer o bem; sua consciência que, como guardiã vigilante, encarregada de velar por ele, aprova ou desaprova sua conduta. Muitas vezes acontece que se mostre rebelde à sua voz, que repila suas inspirações; quer sufocá-la pelo esquecimento; mas jamais ela é completamente aniquilada para que, num dado momento, não desperte mais forte e mais poderosa e não exerça um severo controle de vossas ações.
A consciência produz dois efeitos diferentes: a satisfação de ter agido bem, a paz que deixa a consciência do dever cumprido, e o remorso que penetra e tortura quando se praticou uma ação reprovada por Deus, pelos homens ou pela honra. É, propriamente falando, o senso moral. O remorso é como uma serpente de mil voltas, que circula em redor do coração e o destrói; é o remorso que sempre faz ouvir as mesmas inflexões e vos grita: Fizeste uma ação má; deverás ser punido; teu castigo só cessará depois da reparação. E quando, a este suplício de uma consciência atormentada, vem juntar-se a visão constante da vítima, da pessoa a quem se fez o mal; quando, sem repouso nem trégua, sua presença exprobra ao culpado sua conduta indigna, repetindo-lhe incessantemente que sofrerá enquanto não tiver expiado e reparado o mal que fez, o suplício se torna intolerável. É então que, para pôr fim às suas torturas, seu orgulho se dobra e ele confessa seus crimes. O mal traz em si a sua pena, pelo remorso que deixa e pelos reproches feitos pela só presença daqueles contra os quais se agiu mal.
Crede-me, escutai sempre essa voz que vos adverte quando estais prestes a falir; não a sufoqueis pela revolta do vosso orgulho; e se falirdes, apressai-vos em reparar o mal, sem o que o remorso será a vossa punição. Quanto mais vos demorardes, mais penosa será a reparação e mais prolongado o suplício.
Um Espírito.
Hoje tendes um exemplo notável da punição que sofrem, mesmo na Terra, os que se tornaram culpados de uma ação má. Não é somente no mundo invisível que a visão da vítima vem atormentar o assassino para o forçar ao arrependimento; lá onde a justiça dos homens não começou a expiação, a justiça divina faz começar, à revelia de todos, o mais lento e o mais terrível dos suplícios, o mais temível castigo.
Há certas pessoas que dizem que a punição infligida ao criminoso no mundo dos Espíritos, e que consiste na visão contínua de seu crime, não pode ser muito eficaz, e que em nenhum caso não é esta punição que, por si só, determina o arrependimento. Dizem que um naturalmente perverso, como é um criminoso, não pode senão amargurar-se cada vez mais por essa visão, e assim se tornando pior. Os que assim falam não fazem ideia do que pode tornar-se um tal castigo; não sabem quanto é cruel esse espetáculo contínuo de uma ação que jamais se queria haver cometido. Certamente vemos alguns criminosos empedernidos, mas muitas vezes é só por orgulho e por quererem parecer mais fortes que a mão que os castiga; é para fazer crer que não se deixam abater pela visão de imagens vãs; mas essa falsa coragem não tem longa duração, pois logo os vemos fraquejar em presença desse suplício, que deve muito de seus efeitos à sua lentidão e persistência. Não há orgulho que possa resistir a esta ação, semelhante à da gota d'água sobre a rocha; por mais dura que possa ser a pedra, é inevitavelmente atacada, desagregada, reduzida a pó. É assim que o orgulho, que faz com que esses infelizes se obstinem contra seu soberano senhor, mais cedo ou mais tarde é abatido, e que o arrependimento, enfim, pode ter acesso à sua alma. Como sabem que a origem de seus sofrimentos está em sua falta, pedem para repará-la, a fim de trazer um abrandamento a seus males.
Aos que pudessem duvidar, não tendes senão que citar o fato que vos foi assinalado esta noite; ali não é só a hipótese, não é mais o só ensinamento dos Espíritos, mas um exemplo de certo modo palpável, que se vos apresenta. Nesse exemplo, o castigo seguiu de perto a falta e foi tal que, ao cabo de vários anos, forçou o culpado a pedir a expiação de seu crime à justiça humana, e ele mesmo disse que todas as penas, a própria morte, lhe pareceriam menos cruéis do que aquilo que sofria, no momento em que se entregou à justiça.
Um Espírito.
Observação. – Sem ir buscar aplicações do remorso nos grandes criminosos, que são exceções na sociedade, nós as encontramos nas mais ordinárias circunstâncias da vida. É esse sentimento que leva todo indivíduo a afastar-se daqueles contra os quais sente que tem censuras a se fazer; em presença deles sente-se mal; se a falta não for conhecida, ele teme ser adivinhado; parece-lhe que um olhar pode penetrar o fundo de sua consciência; vê em toda palavra, em todo gesto uma alusão à sua pessoa, razão por que, desde que se sente desmascarado, retira-se. O ingrato também foge de seu benfeitor, já que sua visão é uma censura incessante, da qual em vão procura desembaraçar-se, pois uma voz íntima lhe grita no fundo da consciência que ele é culpado.
Se o remorso já é um suplício na Terra, quão maior não será esse suplício no mundo dos Espíritos, onde não é possível subtrair-se à vista daqueles a quem se ofendeu! Felizes os que, tendo reparado já nesta vida, poderão sem receio enfrentar todos os olhares no mundo onde nada é oculto.
O remorso é uma consequência do desenvolvimento do senso moral; não existe onde o senso moral ainda se acha em estado latente. É por isto que os povos selvagens e bárbaros cometem sem remorsos as piores ações. Aquele, pois, que se pretendesse inacessível ao remorso, assimilar-se-ia ao bruto. À medida que o homem progride, o senso moral torna-se mais apurado; ofusca-se ao menor desvio do reto caminho. Daí o remorso, que é o primeiro passo para o retorno ao bem.
1. Nota. – Nesta sessão, nenhuma pergunta prévia tinha provocado o assunto que foi tratado. Inicialmente o médium se havia ocupado de saúde; depois, pouco a pouco, viu-se conduzido às reflexões, cuja análise damos a seguir. Falou durante cerca de uma hora, sem interrupção.
2. — Os progressos do Espiritismo causam aos seus inimigos um pavor que não podem dissimular. No começo brincaram com as mesas girantes, sem pensar que acariciavam uma criança que devia crescer; a criança cresceu… então eles pressentiram o seu futuro e disseram de si para si que em breve estariam com a razão… Mas, como se diz, a criança tinha sete fôlegos. Resistiu a todos os ataques, aos anátemas, às perseguições, mesmo às zombarias. Semelhante a certos grãos que o vento carrega, produziu inúmeros rebentos; para um que destruíam, brotavam cem outros.
Primeiro empregaram contra ele as armas de uma outra era, as que outrora eram bem-sucedidas contra as ideias novas, porque essas ideias não passavam de lampejos esparsos, que tinham dificuldade de vir à luz através da ignorância e porque ainda não haviam criado raízes nas massas… hoje é outra coisa, tudo mudou: os costumes, as ideias, o caráter, as crenças; a Humanidade não mais se inquieta com as ameaças que amedrontavam as crianças; o diabo, tão temido por nossos ancestrais, já não causa medo: riem dele.
Sim, as armas antigas se gastaram contra a couraça do progresso. É como se, em nossos dias, um exército quisesse atacar uma praça forte, guarnecida de canhões, com as flechas, os aríetes e as catapultas dos nossos antepassados.
Os inimigos do Espiritismo viram, pela experiência, a inutilidade das armas carcomidas do passado contra a ideia regeneradora; longe de o prejudicar, seus esforços só serviam para o propagar.
Para lutar vantajosamente contra as ideias do século, seria preciso estar à altura do século; às doutrinas progressistas seria necessário opor doutrinas ainda mais progressistas; mas o menos não pode sobrepujar o mais.
Não podendo, pois, triunfar pela violência, recorreram à astúcia, a arma dos que têm consciência de sua fraqueza… de lobos, fizeram-se cordeiros, para se introduzirem no aprisco e aí semearem a desordem, a divisão, a confusão. Porque conseguiram lançar a perturbação em algumas fileiras, cedo demais se julgaram senhores da praça. Nem por isto os adeptos isolados deixaram de continuar sua obra, e diariamente a ideia abre o seu caminho sem muito alarido… Eles é que fizeram barulho… Não a vedes penetrar em toda parte? nos jornais, nos livros, no teatro e mesmo no púlpito? Ela trabalha todas as consciências; arrasta os espíritos para novos horizontes; é encontrada em estado de intuição naqueles mesmos que dela não ouviram falar. Eis um fato que ninguém pode negar e que cada dia se torna mais evidente. Não é a prova de que a ideia é irresistível e que é um sinal dos tempos?
Aniquilá-lo, portanto, é uma coisa impossível, porque seria preciso aniquilá-lo não num ponto, mas no globo inteiro; e, depois, as ideias não são levadas nas asas dos ventos? e como atingi-las? Pode-se pegar fardos de mercadorias na alfândega; mas, ideias! elas são inatingíveis.
3. — Que fazer, então? Tentar apoderar-se delas, para as acomodar à sua vontade… Pois bem! é o partido pelo qual se decidiram. Disseram a si mesmos: O Espiritismo é o precursor de uma revolução moral inevitável; antes que se realize completamente, tratemos de a desviar em nosso proveito; façamos de modo que aconteça com ela como com certas revoluções políticas; desnaturando o seu espírito, poder-se-ia imprimir-lhe outro curso.
Assim, o plano de campanha está mudado… Vereis se formarem reuniões espíritas, cujo objetivo confessado será a defesa da doutrina, e cujo objetivo secreto será a sua destruição; supostos médiuns que terão comunicações encomendadas, adequadas ao fim a que se propõem; publicações que, à sorrelfa do Espiritismo, se esforçarão para o demolir; doutrinas que lhe tomarão algumas ideias, mas com o pensamento de o suplantar. Eis a luta, a verdadeira luta que ele terá de sustentar, e que será perseguida obstinadamente, mas da qual sairá vitorioso e mais forte.
Que podem os homens contra a vontade de Deus? É possível desconhecê-la diante do que se passa? Seu dedo não é visível nesse progresso que desafia todos os ataques? nesses fenômenos que surgem em toda parte como um protesto, como um desmentido dado a todas as negações?… A vida dos homens, a sorte da Humanidade, não está em suas mãos?… Cegos!… Eles não contam com a nova geração que se ergue e que diariamente suplanta a geração que se vai… Mais alguns anos e esta terá desaparecido, não deixando atrás de si senão a lembrança de suas tentativas insensatas, para deter o impulso do espírito humano que marcha, marcha a despeito de tudo… Eles não contam com os acontecimentos que vão apressar a eclosão do novo período humanitário… com os apoios que vão levantar-se em favor da nova doutrina e cuja voz poderosa imporá silêncio aos seus detratores em razão de sua autoridade.
4. — Oh! como estará mudada a face do mundo para aqueles que virem o começo do próximo século!… Quantas ruínas verão em sua retaguarda, e que esplêndidos horizontes se abrirão à sua frente!… será como a aurora afastando as sombras da noite… Aos ruídos, aos tumultos, aos rugidos da tempestade sucederão cantos de alegria; depois das angústias, os homens renascerão para a esperança… Sim! o século vinte será um século abençoado, porque verá a era nova, anunciada pelo Cristo.
Nota. – Aqui o médium para, dominado por indizível emoção e como que esgotado de fadiga. Após alguns minutos de repouso, durante os quais parece voltar ao grau de sonambulismo ordinário, continua:
– Que vos dizia eu, então? – Faláveis do novo plano de campanha dos adversários do Espiritismo; depois considerastes a era nova. – É isso.
5. — Enquanto esperam, disputam o terreno palmo a palmo. Renunciaram mais ou menos às armas de outros tempos, cuja ineficácia reconheceram; agora ensaiam as que são todo-poderosas neste século de egoísmo, de orgulho e de cupidez: o ouro, a sedução do amor-próprio. Junto aos que são inacessíveis ao medo, exploram a vaidade, as necessidades terrenas. Aquele que se obstinou contra a ameaça, às vezes dá ouvidos complacentes à lisonja, ao atrativo do bem-estar material… Prometem pão a quem não o tem, trabalho ao artesão, clientela ao negociante, promoção ao empregado, honras aos ambiciosos se renunciarem às suas crenças; ferem-nos em sua posição, em seus meios de subsistência, em suas afeições, se são indóceis; depois, a miragem do ouro produz sobre alguns seu efeito ordinário. Nesse número encontram-se, necessariamente, alguns caracteres fracos, que sucumbem à tentação. Há os que caem na armadilha de boa-fé, porque a mão que os dirige se esconde… Há, também, e muitos, que cedem à dura necessidade, mas que não pensam menos nisto; sua renúncia é apenas aparente; curvam-se, mas para se erguerem na primeira ocasião… Outros, os que têm em mais alto grau a verdadeira coragem da fé, afrontam o perigo resolutamente; esses vencem sempre, porque são sustentados pelos Espíritos bons… Alguns, oh!… mas estes jamais foram espíritas de coração… preferem o ouro da Terra ao ouro do céu; ficam, pela forma, ligados à doutrina e, sob esse manto, apenas servem melhor à causa de seus inimigos… É uma triste troca que fazem e que pagarão muito caro!
6. — Nos tempos de cruéis provas que ides atravessar, ditosos aqueles sobre os quais se estender a proteção dos Espíritos bons, porque jamais esta foi tão necessária!… Orai pelos irmãos transviados, a fim de que aproveitem os breves instantes de mora que lhes são concedidos, antes que a justiça do Altíssimo se torne mais pesada sobre eles… Quando virem rebentar a tempestade, mais de um exclamará graça! Mas lhes será respondido: Que fizestes dos nossos ensinos? Vossos médiuns não escreveram centenas de vezes a vossa própria condenação?… Tivestes a luz, e não a aproveitastes; nós vós tínhamos dado um abrigo: por que o abandonastes? Sofrei, pois, a sorte daqueles que preferistes. Se vosso coração tivesse sido tocado por nossas palavras, teríeis ficado firmes no caminho do bem, que vos era traçado; se tivésseis tido fé, teríeis resistido as seduções armadas contra o vosso amor-próprio e a vossa vaidade. Então acreditastes no-las impor, como aos homens, por falsas aparências? Sabeis, se duvidastes, que não há um só movimento da alma que não tenha seu contragolpe no mundo dos Espíritos?
7. — Credes que seja por nada que se desenvolve a faculdade da vidência em tão grande número de pessoas? que seja para oferecer um novo alimento à curiosidade que hoje tantos médiuns adormecem espontaneamente em sono de êxtase? Não; desiludi-vos. Esta faculdade, que há tanto tempo vos é anunciada, é um sinal característico dos tempos que são chegados; é um prelúdio da transformação, porque, como vos foi dito, deve ser um dos atributos da nova geração. Essa geração, mais depurada moralmente, sê-lo-á também fisicamente; a mediunidade sob todas as formas será mais ou menos geral, e a comunhão com os Espíritos um estado, a bem dizer, normal.
Deus envia a faculdade de vidência nesses momentos de crise e de transição, para dar aos seus fiéis servidores um meio de desmanchar a trama de seus inimigos, porque os maus pensamentos, que se julgam escondidos na sombra dos refolhos da consciência, se refletem nessas almas sensitivas, como num espelho, e se descobrem por si mesmos. Aquele que só emite bons pensamentos não teme que se os conheça. Feliz o que pode dizer: Lede em minha alma como num livro aberto.
[Sem nome.]
Observação. – O sonambulismo espontâneo, do qual já falamos, não é, com efeito, senão uma forma de mediunidade vidente, cujo desenvolvimento já era anunciado há algum tempo, assim como o aparecimento de novas aptidões mediúnicas. É notável que em todos os momentos de crise geral ou de perseguição, as pessoas dotadas desta faculdade são mais numerosas do que nos tempos normais. Houve-os muito no momento da Revolução; os calvinistas das Cevenas, perseguidos como animais selvagens, tinham numerosos videntes que os advertiam do que se passava ao longe; por este fato, e por ironia, foram classificados de iluminados; hoje, começa-se a compreender que a visão a distância, independente dos órgãos da visão, pode bem ser um dos atributos da natureza humana, e o Espiritismo o explica pela faculdade expansiva e pelas propriedades da alma. Os fatos deste gênero se multiplicaram de tal maneira que já não causam tanta admiração; o que outrora parecia a alguns milagre ou sortilégio, é hoje considerado como efeito natural. É uma das mil vias pelas quais penetra o Espiritismo, de sorte que, se se estanca uma fonte, ele surge por outros caminhos.
Assim, esta faculdade não é nova, mas tende a generalizar-se, sem dúvida pelo motivo indicado na comunicação acima, mas, também, como meio de provar aos incrédulos a existência do princípio espiritual. No dizer dos Espíritos, ela se tornaria mesmo epidêmica, o que naturalmente se explicaria pela transformação moral da Humanidade, transformação que deveria produzir no organismo modificações que facilitassem a expansão da alma.
Como outras faculdades mediúnicas, esta pode ser explorada pelo charlatanismo. Desse modo, é bom precaver-se contra a trapaça que, por um motivo qualquer, poderia tentar simulá-la, e assegurar-se, por todos os meios possíveis, da boa-fé dos que dizem possuí-la. Além do desinteresse material e moral e da honorabilidade notória da pessoa, que são as primeiras garantias, convém observar com cuidado as condições e as circunstâncias nas quais se produz o fenômeno, e ver se nada oferecem de suspeito.
P. – O gênio é conferido a cada Espírito conforme a sua conquista, ou segundo uma lei divina, em relação com as necessidades de um povo ou da Humanidade?
Resposta. – O gênio, caros filhos, é a irradiação das conquistas anteriores. Essa irradiação é o estado do Espírito no desprendimento ou nas encarnações superiores: há, pois, duas distinções a fazer. O gênio mais comum entre vós é simplesmente o estado de um Espírito, do qual uma ou duas faculdades ficaram desvendadas e em estado de agir livremente; recebeu um corpo que permite sua expansão na plenitude adquirida. A outra espécie de gênio é o Espírito que vem dos mundos felizes e adiantados, onde a aquisição é universal sobre todos os pontos; onde todas as faculdades da alma chegaram a um grau eminente, desconhecido na Terra. Estas espécies de gênio se distinguem dos primeiros por uma aptidão excepcional para todos os talentos, para todos os estudos. Concebem todas as coisas por uma intuição segura, e que confunde a ciência ensinada pelos mais sábios. Distinguem-se em bondade, em grandeza de alma, em verdadeira nobreza, em obras excelentes. São faróis, iniciadores, exemplos. São homens de outras terras, vindos para fazer resplandecer a luz do alto num mundo obscuro, assim como se enviam entre os bárbaros, para os instruir, alguns sábios de uma capital civilizada. Tais foram entre vós os homens que, em diversas épocas, fizeram avançar a Humanidade, os sábios que alargaram os limites dos conhecimentos e dissiparam as trevas da ignorância. Vieram e pressentiram o destino terrestre, por mais longe que estivessem da realização deste destino. Todos lançaram os fundamentos de alguma ciência, ou foram o seu ponto culminante.
O gênio não é, pois, gratuito e não está subordinado a uma lei; sai do próprio homem e de seus antecedentes. Refleti que os antecedentes são todo o homem. O criminoso o é por seus antecedentes; o homem de mérito, o homem de gênio é superior pela mesma causa. Nem tudo é velado na encarnação a ponto de nada transparecer de nosso ser anterior. A inteligência e a bondade são luzes muito vivas, focos muito ardentes para que a vida terrena os reduza à obscuridade.
As provas a sofrer bem podem velar, atenuar algumas de nossas faculdades, adormecê-las, mas se tiverem chegado a um alto grau, o Espírito não pode perder inteiramente a sua posse e exercício; tem em si a segurança de que os mantém sempre à sua disposição; muitas vezes mesmo não pode consentir em delas se privar. Eis o que causa as vidas tão dolorosas de certos homens adiantados, que preferiam sofrer por suas altas faculdades a deixar que estas se apagassem por algum tempo.
Sim, todos nós somos pela esperança, e alguns pela lembrança, cidadãos dessas altas esferas celestes, onde o pensamento irradia puro e poderoso. Sim, todos seremos Platões, Aristóteles, Erasmos; nosso Espírito não verá mais empalidecer suas aquisições sob o peso da vida do corpo, ou extinguir-se sob o peso da velhice e das enfermidades.
Amigos, eis verdadeiramente a mais sublime esperança. Que são junto de tudo isto as dignidades e os tesouros que se punham aos pés destes homens! Os soberanos mendigavam suas obras, disputavam a sua presença. — Credes que essas vãs honrarias os lisonjeavam? Não; a lembrança de sua gloriosa pátria era muito viva. Eles voltaram felizes sobre o raio de sua glória, aos mundos que seus Espíritos desejavam incessantemente.
Terra! Terra! região fria, obscura, agitada; terra cega, ingrata e rebelde! não lhes podias fazer esquecer a pátria celeste onde viveram, onde voltariam a viver.
Adeus, amigos! ficai certos de que todo homem de bem se tornará cidadão desses mundos felizes, dessas Jerusaléns esplêndidas, onde o Espírito vive livre num corpo etéreo, possuindo sem nuvens e sem véus todas as suas conquistas. Então, conhecereis tudo quanto aspirais conhecer, compreendereis tudo quanto procurais compreender, mesmo o meu nome, caro médium, que não te quero dizer.
Um Espírito.
Allan Kardec.
1. — Vários de nossos correspondentes se admiraram por ainda não termos falado da associação designada sob o título de Liga do Ensino. Por seu caráter progressivo, esse progresso parece-lhes merecer as simpatias do Espiritismo; entretanto, antes de nele participar, desejariam ter a nossa opinião. Agradecendo-lhes esse novo testemunho de confiança, repetiremos o que lhes temos dito muitas vezes, a saber: que jamais tivemos a pretensão de cercear a liberdade de ninguém, nem de impor nossas ideias a quem quer que seja, nem as considerando como devendo fazer lei. Guardando silêncio, quisemos não prejulgar a questão e deixar a cada um a mais inteira liberdade. Quanto ao motivo de nossa abstenção pessoal, não temos nenhuma razão de o calar e, já que desejam conhecê-lo, di-lo-emos francamente.
Nossa simpatia, como a de todos os espíritas, está naturalmente garantida a todas as ideias progressivas, a todas as instituições que tendem a propagá-las; mas ainda é necessário que tal simpatia tenha um objetivo determinado. Ora, até o presente a Liga do Ensino não nos oferece senão um título, sedutor é verdade, mas nenhum programa definido, nenhum plano traçado, nenhum objetivo preciso. Esse título tem, mesmo, o inconveniente de ser tão elástico que poderia prestar-se a combinações muito divergentes em suas tendências e em seus resultados. Cada um pode entendê-lo como quiser e, sem dúvida, imaginar, por antecipação, um plano conforme à sua maneira de ver; poderia, então, acontecer que, quando estivesse em execução, a coisa não correspondesse à ideia que certas pessoas tinham feito. Daí as inevitáveis defecções.
Mas, dizem, nada se arrisca, já que são os próprios subscritores que regularão o emprego dos fundos. – Razão a mais para que não se entendam e, nesse conflito de opiniões e de vistas diversas, forçosamente haverá decepções.
Ao contrário, com um objetivo bem definido, um plano claramente traçado, sabe-se em que se compromete, ou, pelo menos, se se adere a uma coisa praticável ou a uma utopia; pode-se apreciar a sinceridade da intenção, o valor da ideia, a combinação mais ou menos feliz das engrenagens, as garantias de estabilidade, e calcular as chances de êxito ou de insucesso. Ora, no caso, esta apreciação não é possível, porque a ideia fundamental é cercada de mistérios e deve ser aceita sob palavra como boa. Queremos mesmo acreditá-la perfeita, nós a desejamos sinceramente, e quando o bem que dela deve sair nos for demonstrado e, sobretudo, quando lhe virmos o lado prático, nós o aplaudiremos de coração; mas, antes de dar a nossa adesão seja ao que for, queremos fazê-lo com conhecimento de causa; temos de ver muito claro em tudo o que fazemos e saber onde pomos o pé. No estado das coisas, não tendo os elementos necessários para louvar ou censurar, reservamos o nosso julgamento.
Esta maneira de ver é inteiramente pessoal e não deve induzir os que se julgam suficientemente esclarecidos.
A propósito do artigo que publicamos sobre a liga do ensino, recebemos do Sr. Macé, † seu fundador, a carta seguinte, que julgamos um dever publicar. Se expusemos os motivos sobre os quais apoiamos a opinião restritiva que emitimos, é de toda equidade confrontar as explicações do autor.
Senhor,
O Sr. Ed. Vauchez me comunica o que dissestes da liga do ensino na Revista Espírita, e tomo a liberdade de vos dirigir, não uma resposta para ser publicada em vossa Revista, mas algumas explicações pessoais sobre o objetivo que persigo, e o plano que tracei. Ficaria satisfeito se elas pudessem dissimular os escrúpulos que vos detêm e vos ligar a um projeto que não tem, pelo menos no meu espírito, o vácuo que nele vistes.
Trata-se de agrupar, em cada localidade, todos os que se sentem prontos a fazer ato de cidadania, contribuindo pessoalmente ao desenvolvimento da instrução pública em seu redor. Cada grupo deverá necessariamente fazer o seu programa, pois a medida de sua ação é necessariamente determinada por seus meios de ação. Aí me era impossível precisar alguma coisa; mas a natureza desta ação, o ponto capital, eu a precisei da maneira mais clara e mais nítida: Fazer instruir pura e simples, fora de toda preocupação de seita e de partido. Aí está um primeiro artigo uniforme, inscrito antecipadamente no topo de todos os prospectos; aí estará sua unidade moral. Todo círculo que vier a infringi-lo sairá de pleno direito da liga.
Sois, eu não poderia duvidá-lo, muito leal para não convir que não haverá, depois disto, lugar para nenhuma decepção, quando se chegar à execução. Aí só se decepcionariam os que tivessem entrado na liga com a secreta esperança de fazê-la servir ao triunfo de uma opinião particular: eles estão prevenidos.
Quanto às intenções que poderia ter o próprio autor do projeto, e à confiança que convém conceder-lhe, permiti-me ficar com a resposta que já dei uma vez a uma suspeita emitida nos Anais do Trabalho, da qual vos peço que tomeis conhecimento. Ela se dirige a uma dúvida quanto às minhas tendências liberais; pode dirigir-se também às dúvidas que poderiam ser levantadas em outros espíritos sobre a lealdade de minha declaração de neutralidade.
Ouso esperar, senhor, que essas explicações vos pareçam suficientemente claras para modificar vossa primeira impressão e que julgareis acertado, se assim o for, dizê-lo aos vossos leitores. Todo bom cidadão deve o apoio de sua influência pessoal ao que reconhece útil, e eu me sinto tão convencido da utilidade de nosso projeto da Liga, que me parece impossível possa ela escapar a um espírito tão experimentado quanto o vosso.
Recebei, senhor, minhas mui cordiais e fraternas saudações.
Jean Macé.
A esta carta o Sr. Macé houve por bem juntar o número dos Annales du travail, no qual se acha a resposta mencionada acima, e que reproduzimos integralmente.
Senhor Redator,
A objeção que fizestes relativamente a uma possível modificação de minhas ideias liberais e, em consequência, ao perigo, também possível, de uma direção má, dada ao ensino da Liga, tal objeção me parece lamentável, e eu vos peço permissão para responder aos que vo-la fizeram, não pelo que me concerne – julgo-o inútil – mas pela honra de minha ideia, que não compreenderam. A Liga nada ensina e não terá direção a dar. É, pois, supérfluo inquietar-se desde já com as opiniões mais ou menos liberais de quem procura fundá-la.
Faço apelo a todos os que levam a sério o desenvolvimento da instrução em seu país e que desejam nela trabalhar, quer para os outros, ensinando, quer para si mesmos, aprendendo. Convido-os a se associarem em todos os pontos do território; a fazer ato de cidadania, combatendo a ignorância, e de sua bolsa e de sua pessoa, o que vale ainda mais; a perseguir homem a homem, os maus pais, que não mandam os filhos à escola; a fazer vergonha aos camaradas que não sabem ler nem escrever; a lhes lembrar que sempre é tempo; em lhes pôr o livro e a pena na mão, caso necessário, improvisando-se professores, cada um daquilo que sabe; em criar cursos e bibliotecas, em benefício dos ignorantes que desejam cessar de o ser; enfim, em formar por toda a França um só feixe para se prestar mútuo auxílio contra as influências inimigas – algumas há, infelizmente, de uma elevação considerada perigosa, segundo o nível intelectual do povo.
Caso se consiga fazer tudo isto, por favor, em que sentido inquietante esse movimento poderia ser dirigido, fosse por quem fosse? Que se organize, por exemplo, em Paris, † entre operários, Sociedades de cultura intelectual, como as que existem às centenas em cidades da Alemanha, e das quais o Sr. Edouard Pfeiffer, presidente da Associação de Instrução Popular de Wurtemberg, † explicava o funcionamento de maneira tão interessante no número do Coopération de 30 de setembro último; que, no bairro de Santo Antônio, † no quarteirão do Temple, † em Montmartre, † em Batignolles; † grupos de trabalhadores entrados na Liga se reúnam para se dar, em conjunto, em certos dias, saraus de instrução com professores de boa vontade, ou mesmo pagos, por que não? – os operários ingleses e alemães não se recusam a este luxo – eu queria bem saber o que virão lá fazer as doutrinas de um professor de moças que dá suas aulas em Beblenheim, † e que não tem a menor vontade de mudar de alunos. – Esta gente não estará em casa? Precisará pedir licença a mim?
Não que eu me proíba de ter uma doutrina em matéria de ensino popular. Certamente tenho uma; sem isto não me permitira pôr-me como meu próprio chefe, à frente de um movimento como este. Ei-la tal qual acabo de a formular no Anuário da Associação de 1867. É a negação mesma de toda direção “em tal sentido em vez de outro”, para me servir da expressão dos que não estão inteiramente seguros de mim, e me declaro pronto a pôr a seu serviço tudo quanto eu possa ter de autoridade pessoal – não temo falar disto porque tenho consciência de havê-la ganho legalmente:
“Pregar ao ignorante num ou noutro sentido, nada adianta e não o faz avançar. Ele fica depois à mercê de pregações contrárias, delas não sabendo mais do que sabia antes. Que aprenda o que sabem os que lhe pregam – já é outra coisa; ficará em estado de pregar e os que temessem que ele próprio fosse um mau pregador, podem assegurar-se previamente. A instrução não tem duas maneiras de agir sobre os que a possuem. Se nelas se acham bem por sua conta, por que não prestaria ela o mesmo serviço aos outros?”
Se os vossos correspondentes “de fora” conhecem uma maneira mais liberal de entender a questão do ensino popular, que tenham a bondade de mo ensinar. Não conheço nenhuma.
Jean Macé.
P S. – Pedis que eu responda a uma pergunta que vos foi feita sobre o destino futuro de somas subscritas para a Liga.
A subscrição aberta presentemente destina-se a cobrir as despesas de propaganda do projeto. Publicarei em cada boletim, como acabo de fazer no primeiro, o balanço das receitas e das despesas e prestarei minhas contas, com documentos comprobatórios, à comissão que for nomeada para tal fim, na primeira assembleia geral.
Quando a liga for constituída, o emprego das cotizações anuais deverá ser determinado – pelo menos é a minha opinião – no seio dos grupos aderentes que se formarem. Cada grupo fixaria a parte que lhe conviria no fundo geral de propaganda da obra, para onde iriam igualmente as cotizações dos aderentes que não julgassem a propósito engajar-se num grupo especial.
Talvez isto se deva à falta de perspicácia de nossa inteligência, mas confessamos com toda a humildade não estar mais esclarecido do que antes; diremos mesmo que as explicações acima vêm confirmar nossa opinião. Haviam-nos dito que o autor do projeto tinha um programa bem definido, mas que se reservava para o dar a conhecer quando as adesões fossem suficientes. Esta maneira de proceder nem nos parecia lógica, nem prática, porquanto, racionalmente, não se pode aderir àquilo que não se conhece. Ora, a carta que o Sr. Macé teve a gentileza de nos escrever, não nos dá absolutamente a entender que seja assim; ao contrário, diz: “Cada grupo necessariamente deverá fazer seu próprio programa”, o que significa que o autor não tem um que lhe seja pessoal. Disso resulta que se houver mil grupos, pode haver mil programas; é a porta aberta à anarquia dos sistemas.
É verdade que ele acrescenta que o ponto capital é precisado da maneira mais clara e mais nítida pela indicação do objetivo, que é “fazer instrução pura e simples, fora de qualquer preocupação de seita e de partido.” O objetivo é louvável, sem dúvida, mas nele não vemos senão boa intenção e não a indispensável precisão das coisas práticas.
“Todo círculo – acrescenta ele – que viesse a infringi-lo, sairia de pleno direito da Liga.” Eis a medida cominatória. Pois bem! esses círculos serão livres para sair da Liga, e para formar outras ao lado, sem julgar ter desmerecido fosse no que fosse. Eis, pois, a Liga principal rompida desde o princípio, por falta de unidade de vistas e de conjunto. O objetivo indicado é tão geral que se presta a um erro de aplicações muito contraditórios, e que cada um, interpretando-o segundo suas opiniões pessoais, julgará estar certo. Aliás, onde está a autoridade que legalmente pode pronunciar esta exclusão? Não existe. Não há nenhum centro regulador com qualidade para apreciar ou controlar os programas individuais que se afastassem do plano geral. Tendo cada grupo sua própria autoridade e seu centro de ação, é o único juiz do que faz. Em tais condições cremos impossível um entendimento.
Até aqui só vemos nesse projeto uma ideia geral. Ora, uma ideia não é um programa. Um programa é uma linha traçada, da qual ninguém pode afastar-se conscientemente, um plano decidido nos mais minuciosos detalhes, e que nada deixa ao arbitrário, onde todas as dificuldades de execução estão previstas e onde as vias e meios são indicados. O melhor programa é o que dá menos chance à improvisação.
“Era-me mesmo impossível precisar alguma coisa – diz o autor – porque a medida de ação de cada grupo será necessariamente determinada por seus meios de ação.” – Em outros termos, pelos recursos materiais de que poderá dispor. Mas isto não é uma razão. Todos os dias fazem-se planos, elaboram-se projetos subordinados aos meios eventuais de execução. É somente vendo um plano, que o público se decide a associar-se, conforme compreenda a sua utilidade e nele veja elementos de sucesso.
O que, antes de tudo, teria sido preciso fazer, era assinalar com precisão as lacunas do ensino que se propunham encher, as necessidades que se queria prover; dizer: se se entendia favorecer a gratuidade do ensino, retribuindo ou indenizando professores ou professoras; fundar escolas onde não as há; suprir a insuficiência do material de instrução nas escolas muito pobres para dele se prover; fornecer livros às crianças que não os podem comprar; instituir prêmios de encorajamento para os alunos e professores; criar cursos para adultos; pagar homens de talento para ir, como missionários, fazer conferências instrutivas no campo e destruir as ideias supersticiosas com o auxílio da Ciência; definir o objetivo e o espírito desses cursos e dessas conferências, etc., essas e outras coisas. Só então o objetivo teria sido claramente especificado. Depois poderiam dizer: “Para o atingir, são precisos recursos materiais.” Então vamos apelar aos homens de boa vontade, aos amigos do progresso, aos que simpatizam com nossas ideias; que formem comitês por Departamentos, bairros, cantões ou comunas, encarregados de recolher subscrições. Não haverá caixa geral e central; cada comitê terá a sua, cujo emprego dirigirá conforme o programa traçado, em razão dos recursos de que poderá dispor; se recolher muito, fará muito; se recolher pouco fará menos. Mas haverá um comitê diretor, encarregado de centralizar as informações, transmitir os avisos e as instruções necessárias, resolver as dificuldades que possam surgir, imprimir ao conjunto um cunho de unidade, sem o qual a liga seria uma palavra vã. Entende-se uma liga como uma associação de indivíduos marchando de comum acordo e solidariamente para a realização de um objetivo determinado. Ora, desde o instante que cada um pode entender o objetivo à sua maneira, e agir como quiser, não há mais liga nem associação.
Aqui não se trata apenas de uma meta a alcançar. Desde o instante que sua realização repousa em capitais a recolher por meio de subscrições, há combinação financeira; a parte econômica do projeto não pode ser deixada ao capricho dos indivíduos, nem ao sabor dos acontecimentos, sob pena de periclitar; ela reclama uma elaboração prévia, séria, um plano concebido com previdência na previsão de todas as eventualidades.
Um ponto essencial no qual parece não terem pensado, é este: Sendo permanente o fim a que se propõem, e não temporário, como quando se trata de um infortúnio a aliviar, ou de um monumento a erguer, exige recursos permanentes. Prova a experiência que jamais se deve contar com subscrições voluntárias regulares e perpétuas; assim, se se operasse diretamente com o produto das subscrições, logo tal produto seria absorvido. Se se quiser que a operação não seja interrompida em sua própria fonte, é preciso constituir uma receita para não viver do seu capital; por conseguinte, capitalizar as subscrições da maneira mais segura e produtiva. Como? com que garantia e sob que controle? Eis o que todo projeto, que se baseie num movimento de capitais, deve prever antes de tudo, e determinar antes de algo recolher, como igualmente deve determinar o emprego e a repartição dos fundos coletados por antecipação, no caso em que, por uma causa qualquer, não lhe dessem continuidade. Por sua natureza, o projeto comporta uma parte econômica tanto mais importante quanto é dela que depende seu futuro, e aqui falta completamente.
Suponhamos que antes do estabelecimento das sociedades de seguros, um homem tivesse dito: “Os incêndios fazem devastações diárias; pensei que se nos associássemos e nos cotizássemos poderíamos atenuar os efeitos do flagelo. Como? Ignoro-o. Primeiramente farei a minha subscrição, depois decidiremos. Vós mesmos procurareis o meio que melhor vos convier e tratareis de vos entender.” Sem dúvida a ideia teria sorrido a muitos; mas quando se tivessem posto à obra, com quantas dificuldades práticas não se teriam chocado, por não terem tido uma base previamente elaborada! Parece-nos que aqui o caso é mais ou menos o mesmo.
A carta publicada nos Anais do Trabalho e referida acima, não elucida mais a questão; confirma que o plano e a execução do projeto são deixados ao arbítrio e à iniciativa dos subscritores. Ora, quando a iniciativa é deixada a todos, ninguém a toma. Aliás, se os homens têm bastante raciocínio para apreciar se o que lhes oferecem é bom ou mau, nem todos estão aptos para elaborar uma ideia, sobretudo quanto ela abarca um campo tão vasto quanto este. Essa elaboração é o complemento indispensável da ideia primitiva. Uma liga é um corpo organizado, que deve ter um regulamento e estatutos, para marchar em conjunto, se quiser chegar a um resultado. Se o Sr. Macé tivesse estabelecido estatutos, mesmo provisórios, sob a condição de os submeter mais tarde à aprovação dos subscritores, que os poderiam modificar livremente, como é de praxe em todas as associações, teria dado um corpo à Liga, um ponto de ligação, ao passo que ela não tem nem um nem outro. Dizemos mesmo que não tem bandeira, já que é dito na carta precitada: A liga nada ensinará e não terá direção a dar; é, pois, supérfluo inquietar-se desde já com as opiniões mais ou menos liberais de quem procura fundá-la. Conceberíamos esse raciocínio se se tratasse de uma operação industrial; mas numa questão tão delicada quanto o ensino, que é encarado sob pontos de vista tão controvertidos, que toca os mais graves interesses da ordem social, não compreendemos que se possa fazer abstração da opinião daquele que, a título de fundador, deve ser a alma do empreendimento. Tal asserção é um erro lamentável.
Do vácuo que reina na economia [organização] do projeto, resulta que, subscrevendo-o, ninguém sabe a que, nem por que se empenha, pois não sabe que direção tomará o grupo do qual faz parte; que se encontrarão até subscritores que não farão parte de nenhum grupo. A organização desses grupos nem sequer é determinada; suas circunscrições, suas atribuições, sua esfera de atividade, tudo é deixado no desconhecido. Ninguém tem qualificação para os convocar; contrariamente ao que se pratica em casos semelhantes, nenhum comitê de vigilância é instituído para regular e controlar o emprego dos fundos recolhidos por antecipação e que servem para pagar as despesas de propaganda da ideia. Já que há despesas gerais pagas com os fundos dos subscritores, seria preciso que estes últimos soubessem em que consistem. O autor quer lhes deixar toda a liberdade de agir para se organizarem como bem entenderem; quer ser apenas o promotor da ideia. Seja. E longe de nós o pensamento de levantar contra a sua pessoa a menor suspeita de desconfiança; mas dizemos que para a marcha regular de uma operação deste gênero e para lhe garantir o sucesso, há medidas preliminares indispensáveis, que foram totalmente negligenciadas, o que vemos com pesar, no interesse mesmo da causa. Se for intencionalmente, julgamos mal fundado o pensamento; se for por esquecimento, é lastimável.
Não temos autoridade para dar qualquer conselho nesta questão, mais eis como geralmente se procede em semelhantes casos. Quando o autor de um projeto que necessita de um apelo à confiança pública não quer assumir sozinho a responsabilidade da execução e, também com o objetivo de cercar-se de mais luzes, preliminarmente reúne em seu redor certo número de pessoas cujos nomes sejam uma recomendação, que se associam à sua ideia e a elaboram com ele. Essas pessoas constituem o primeiro comitê, quer consultivo, quer cooperativo, provisório até a constituição definitiva da operação e da nomeação, pelos interessados, de um conselho fiscal permanente. Tal comitê é para estes últimos uma garantia, pelo controle que exerce sobre as primeiras operações, das quais é encarregado de prestar contas, bem como das primeiras despesas. Além disso, é um apoio e uma divisão de responsabilidade para o fundador. Este, falando em seu nome, e escorado no conselho de vários, haure nessa autoridade coletiva uma força moral sempre mais preponderante sobre a opinião das massas do que a autoridade de um só. Se tivessem procedido assim com a Liga do Ensino, e se o projeto tivesse sido apresentado nas formas usuais e em condições mais práticas, sem dúvida alguma os aderentes teriam sido mais numerosos. Mas tal como está, em nossa opinião deixa muitos indecisos.
Embora o projeto esteja entregue à publicidade e, por conseguinte, ao livre-exame de cada um, dele não teríamos falado se, de certo modo, não tivéssemos sido constrangidos pelos pedidos que nos eram dirigidos. Em princípio, sobre coisas às quais, do nosso ponto de vista, não podemos dar inteira aprovação, preferimos guardar silêncio, a fim de não lhe trazer nenhum entrave. Como nos pediram novas explicações a propósito de nosso último artigo, julgamos necessário motivar nossa maneira de ver com maior precisão. Mas, ainda uma vez, apenas damos a nossa opinião, que não compromete ninguém. Seríamos felizes se fôssemos o único de nossa opinião, e se o acontecimento viesse provar que nos enganamos. Associamo-nos de coração à ideia matriz, mas não ao seu modo de execução.
Lê-se no Siècle de 10 de julho de 1867:
“A prefeitura de Metz acaba de autorizar uma sessão da associação fundada por Jean Macé, sob o nome de “Círculo de Metz da Liga do Ensino.”
“A respeito, lê-se no jornal Moselle: †
“A comissão diretora, eleita, do círculo entrou em atividade e decidiu começar seus trabalhos pela fundação de uma biblioteca popular, nos moldes das que prestam tão grandes serviços na Alsácia. †
“Para esta obra, o círculo de Metz † reclama o concurso de todos e solicita a adesão de quem quer que se interesse pelo desenvolvimento da instrução e da educação em nossa cidade. Essas adesões, acompanhadas de uma cotização, cujo valor e modo de pagamento são facultativos, bem como as ofertas de livros, serão recebidos por qualquer um dos membros da comissão.”
Assim como dissemos, ao falarmos da Liga do Ensino (Revista de março e abril de 1867), nossas simpatias são conquistadas por todas as ideias progressistas. Nesse projeto não criticamos senão o modo de execução. Assim, sentir-nos-emos felizes por ver aplicações práticas desta bela ideia.
No dia 19 de junho, sábado, assistimos à primeira assembleia geral realizada pelo Círculo Parisiense da Liga do Ensino, na sala de conferências do Boulevard des Capucines, † sob a presidência do Sr. Jean Macé.
Essa reunião tinha por objetivo especial dar uma constituição oficial ao grupo parisiense, e prestar contas dos trabalhos realizados desde a sua fundação. – Como dizia o Sr. Allan Kardec, falando da Liga do Ensino (Revista Espírita de março, abril e agosto de 1
867) – nossas simpatias são conquistadas por todas as ideias progressivas, por todas as tentativas que têm por objeto elevar o nível intelectual. Estamos, pois, contentes por termos podido constatar os resultados práticos desta bela instituição, lamentando vivamente que a abundância de matérias nos obrigue a adiar para um próximo número a análise da constituição adotada na sessão a que tivemos a honra de assistir.
Num dos últimos números da Revista julgamos por bem anunciar aos nossos leitores a constituição imediata e definitiva do Grupo Parisiense da Liga do Ensino. Hoje nos sentimos felizes por dar a conhecer o programa desses homens devotados, que querem consagrar-se ao desenvolvimento da instrução, sobretudo entre as populações rurais. Aplaudimos sua generosa tentativa e fazemos votos por que seja coroada de pronto e integral sucesso.
Não poderíamos testemunhar melhor a nossa simpatia aos trabalhos da Liga, do que reproduzindo os seguintes extratos das últimas circulares publicadas pelo Círculo Parisiense. Deixaremos que os nossos leitores apreciem o espírito metódico e prático que presidiu à redação desse programa.
“Foi criada uma Sociedade em Paris, sob o título de Círculo Parisiense da Liga do Ensino, com o objetivo de propagar a instrução. É principalmente às populações rurais que ela se dirige. Provoca e estimula a iniciativa individual para a fundação de escolas, cursos gratuitos, conferências públicas e bibliotecas populares; não se ocupa senão de disseminar as noções mais elementares e mais gerais, não se permitindo entrar em discussões políticas ou religiosas. Espera-se que a Liga, que já conta na França importantes e múltiplos Círculos, veja crescer diariamente o número de seus adeptos, e que se possa encontrar, na própria Paris, um centro de ensino.
“Respeitando a vontade livremente expressa de um grupo fundador qualquer, o Círculo Parisiense oferece seu concurso desinteressado; ele aspira a pôr em comunicação os pontos extremos do país; responde a questões, auxilia as individualidades e se abstém de toda pressão.
“O Círculo Parisiense coloca-se gratuitamente à disposição dos que decidirem organizar uma escola, um material científico, e os guia na escolha dos melhores instrumentos, sejam cartas, globos, aparelhos de física, etc. Aos que quiserem dotar sua comuna de uma biblioteca, o Círculo Parisiense pode oferecer os catálogos dos editores franceses e estrangeiros, e dar seus conselhos, caso se os reclame, para a formação de catálogos especiais destinados ao uso dos leitores, quer pertençam a uma população industrial, quer a uma população agrícola. A isto juntará seus donativos em dinheiro, tanto quanto o permitirem os seus recursos.
“O Círculo publicará um boletim, assim que estiver em condições de fazê-lo, para dar conta dos resultados obtidos.
“Obra de propaganda e de fraternidade, o Círculo busca a luz visando ao interesse geral. Solicita, pois, a expressão das necessidades intelectuais coletivas; esforçar-se-á por provê-lo na medida de seus recursos…
“O Círculo Parisiense da Liga do Ensino, fundado em 1866, acaba de constituir-se definitivamente. Conta hoje 450 aderentes que subscreveram uma soma anual de 2.300 francos.”
[A. DESLIENS.]