1. — Como nos anos anteriores, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas reuniu-se especialmente em 1º de novembro, com vistas a oferecer uma piedosa lembrança aos seus colegas falecidos.
Nessa ocasião foi feita a leitura: 1º do discurso de abertura pronunciado pelo Sr. Allan Kardec na sessão de 1º de novembro de 1868, intitulado: O Espiritismo é uma religião?; 2º de uma comunicação espontânea ditada pelo Sr. Dozon sobre a solenidade do dia de Todos os Santos, † em 1865, e que é lida anualmente na sessão comemorativa; 3º de uma notável comunicação sobre o temor da morte, assinada por Guillaumin e recebida pelo Sr. Leymarie. (Vide a Revista de dezembro de 1868.)
Depois de ter invocado as bênçãos de Deus sobre a assembleia e agradecido ao nosso presidente espiritual, São Luís, o seu concurso habitual, a Sociedade julgou por bem prestar, por meio de uma comemoração especial, um particular testemunho de reconhecimento à memória do Sr. Allan Kardec.
Fazendo-se intérprete dos sentimentos gerais, um dos membros do comitê pronunciou a seguinte alocução:
“Senhoras e Senhores,
“Nesta seção especialmente consagrada a dar marcas do nosso reconhecimento aos Espíritos que houveram por bem prestar-nos o seu concurso, e a honrar a memória dos nossos colegas falecidos e de todos os que, por seus trabalhos, se tornaram dignos da admiração dos homens, devemos um testemunho particular de simpatia e de veneração ao homem honrado por excelência, cujos trabalhos conquistaram celebridade universal, ao eminente Espírito que, no mundo do espaço como na Terra, consagrou seu tempo e suas faculdades à obra bendita de moralização e regeneração da Humanidade.
“Todos conhecestes o pensador laborioso cujo nome está em todos os lábios, o filósofo convicto e consciencioso cujos ensinos encontraram eco em todos os verdadeiros amigos do progresso: Allan Kardec, o imortal autor de O Livro dos Espíritos.
“Depois de ter dedicado sua vida à coordenação metódica da Doutrina Espírita, em consolar os aflitos, em tranquilizar os Espíritos roídos pela dúvida da incredulidade, substituindo a incerteza e a negação concernente ao futuro da alma por uma crença racional, fundada sobre as próprias leis da Natureza, foi colher na erraticidade a merecida recompensa, a sanção da missão cumprida e reunir os elementos necessários para contribuir ainda, como Espírito, para fazer da Humanidade um só povo de irmãos, marchando solidariamente para a conquista do futuro.
“Homem, soube fazer-se apreciado e amado não só pelos que o conheciam pessoalmente, mas ainda por seus numerosos correspondentes, enfim por todos que encontraram em suas obras a consagração de suas mais legítimas aspirações.
“Sem se preocupar com as críticas dos que, por orgulho ou por preconceito, recusavam-se a compreender a nossa insaciável avidez de conhecimento, voltava mais para o alto as suas contemplações. Os obstáculos que teve de superar, as decepções diante das quais se deixaram abater tantos pensadores sérios não o atingiam. Ante a grandeza do objetivo, ele esquecia todas as dificuldades do caminho.
“Espírito, não tardou a nos dar novas provas de seu zelo e devotamento infatigáveis. Em todos os centros, em todos os países, foi sancionar, através de comunicações de incontestável elevação, a verdade dos ensinos que em vida popularizou. Espírito conciliador e persuasivo, ensina a todos a tolerância e a solidariedade. Mais que nunca convencido de que o interesse pessoal deve apagar-se diante do interesse geral, continua seu apostolado sob uma nova forma, indo a todos os lugares, encorajando uns, instruindo outros e dando a todos provas irrecusáveis de sua afeição e devotamento.
“Em todas as épocas de transição, Espíritos superiores, profetas, messias, missionários do progresso aparecem na Humanidade para tornar populares as crenças aceitas por um pequeno número. Tais foram, na Antiguidade, Sócrates, Platão, Moisés, o Cristo e todos os grandes gênios que se imortalizaram por suas ações e, mais recentemente, João Huss, Galileu, Newton, Leibnitz e tantos outros, cujos trabalhos constituem objeto de legítima admiração.
“Tal ele já o é para nós, que o conhecemos, e tal será para as gerações futuras, quando as crenças espíritas forem adotadas, o Espírito daquele cuja memória hoje estamos reverenciando.
“Caro e venerado mestre, estais aqui presente, conquanto invisível para nós. Desde a vossa partida tendes sido para todos um protetor a mais, uma luz segura, e as falanges do espaço foram acrescidas de um trabalhador infatigável. Como na Terra, e sem chocar ninguém, sabeis dar a cada um os conselhos convenientes, moderais o zelo prematuro dos ardentes, secundais os sinceros e os desinteressados, estimulais os tíbios; vedes hoje e sabeis tudo quanto prevíeis pouco tempo atrás. Vós, que não estais mais sujeito às incertezas, sede nosso guia e nossa luz e, por vossos conselhos, sob vossa influência, avançaremos a passos certos para os tempos felizes prometidos à Humanidade regenerada.”
2. — Depois das preces habituais (Vide a Revista Espírita de novembro de 1865), foi obtido um certo número de comunicações pelos médiuns presentes. Como a falta de espaço não nos permite reproduzi-las todas, limitar-nos-emos à publicação das duas seguintes, que nos pareceram dever interessar mais particularmente aos nossos leitores:
Hoje é dia de festa nos asilos consagrados ao repouso dos mortos. A multidão se apressa, os trajes brilham; percorre-se os campos fúnebres a passos lentos, e parece que esta afluência deveria encher de alegria as almas dos que não pertencem mais ao número dos encarnados! Entretanto, quão pouco numerosos são os Espíritos que do espaço vêm reunir-se aos seus antigos amigos da Terra! Os humanos são inumeráveis, quase alegres ou no mínimo indiferentes; um zumbido imenso se eleva acima da multidão. Mas, de que se ocupa toda essa gente? que sentimento as reúne? Pensam nos mortos? Sim, pois que vieram! Mas o pensamento salutar bem depressa se eclipsou; e se alguns nomes inscritos sobre as lápides tumulares provocam as exclamações do transeunte indiferente, ele lança no éter com a fumaça de seu charuto algumas reflexões banais, alguma gargalhada sem eco!…
Nessa balbúrdia nascem todos os pensamentos, todos os sentimentos, todas as aspirações, exceto o recolhimento, o sentimento religioso, a aspiração à comunhão íntima com os que partiram. Muitos curiosos, mas bem poucos possuem a religião da lembrança!… Por isso, os mortos que não se sentem chamados estão por toda parte, menos nos cemitérios, e a maioria dos que planam no espaço ou circulam nas estreitas aleias, estão fatalmente chumbados pelas paixões terrestres aos despojos mortais que outrora tanto amaram.
Risos, discursos inúteis entre os vivos; gritos de dor e de raiva na maior parte dos mortos; um espetáculo sem interesse para todos, uma visita formal para alguns, hábito para a maioria, eis o quadro que apresentam os cemitérios parisienses no dia dos mortos!…
E, contudo, há festa na Terra e no espaço; festa para os Espíritos que, havendo cumprido a missão que aceitaram, expiado o mal de outra existência, voltaram ao mundo da vida real e normal com alguns florões a mais. É festa para os santos que a Humanidade inteira consagrou, não por uma abnegação sem utilidade e um isolamento egoísta, mas pelo devotamento a todos, por seus trabalhos fecundos, por seus ensinos perseverantes, por sua luta incessante contra o mal, pelo triunfo do bem. Para estes há festa no espaço, como há festa na Terra para todos os que, esclarecidos pelas grandes leis que regem os universos, clamam em seu foro íntimo pela visita dos que tanto amaram e que não estão perdidos para eles. Há festas para os espíritas que creem e praticam. Há festa para os Espíritos que instruem e que continuam no espaço a obra de regeneração começada neste mundo!…
Ó, meus amigos, no campo dos mortos, nestes dias consagrados pelo uso, tudo é do domínio da morte em seu sentido mais restrito!… A vestimenta abandonada pelo Espírito não existe mais e não há crença alguma no coração dos visitantes; são mortos que só têm da vida as aparências terrestres, pois a vida real, a grande vida da alma ainda é desconhecida para o maior número.
Nós vivemos, nós que pensamos, que progredimos, que trabalhamos juntamente para estabelecer a base dos progressos futuros; e eles morrem, ou, melhor, vão morrer no passado para nascer no futuro, graças ao Espiritismo, que traz em seu seio a fonte fecunda de toda perfeição.
A morte não existe; a desagregação que leva este nome restitui à terra os elementos que o corpo material aí hauriu; mas a alma em que reside a vida, a alma que é o ser integral, edifício incessantemente aperfeiçoado pela provação humana, emerge no limiar da morte para a vida real e sem fim da erraticidade!…
Moki.
Raramente me é concedida a satisfação de vir entre vós, senhores espíritas. Até pouco tempo atrás eu não era dos vossos; hoje, sou um adepto completo, com o que me congratulo. Alguns pontos apenas nos separavam; para mim, os nossos ancestrais célticos acreditavam na imortalidade da alma e a reencarnação lhes parecia a lei das leis. Filho de gauleses, tendo vivido como gaulês nos últimos dias da Idade Média, venho afirmar a doutrina preconizada hoje; ela foi, ela é a grandeza do mestre Allan Kardec; seu espírito judicioso, lacônico provou-lhe a realidade. Ele está entre nós, lendo em vosso espírito o pensamento profundo, inapercebido; e, posso repetir com orgulho, comungo com ele pelo pensamento.
Comunhão de pensamentos! Como é profunda esta ideia! que radicalismo na filosofia liberal e renovadora de nossa sociedade atormentada, entristecida, mortificada pelas dissidências, pelas fronteiras materiais, fictícias, que os interesses levantaram entre todos os povos! Não nego o caráter peculiar a cada país; como Henri Martin, meu honrado amigo, tão prudente, tão lógico, reconheço o gênio particular inerente a cada população, separada das outras por montanhas, rios, florestas imensas; por esse dom excepcional da Providência, que introduzia no espírito geral de cada povo esse instinto original que devia, pela sucessão dos séculos, trazer um código regenerador à Humanidade, código de justiça, criando harmonia na difusão pela divergência das cores; e esse tempo chegou, em que as fronteiras materiais se abaixam e as unidades fluídicas parecem seguir o vapor e a eletricidade!
Montanhas, abismos, mares: não existis mais!… A alma de Deus se universaliza, assim como o pensamento através dos espaços se traduz instantaneamente. As Américas sentem as pulsações do pulso europeu, e o progresso, lei divina! reúne os mais opostos sistemas. Trabalho, indústria, ciência, mecânica, filosofia estão no auge e todos os vossos caros condiscípulos da erraticidade bendizem os promotores do progresso humano, esses gênios desaparecidos corporalmente, mas que presidem a todas as fases humanitárias; e é sobretudo neste momento que o mestre lamenta sua partida. Há divergência, separação, luta entre o futuro que surge e o passado que desaparece; mas ele sabe que o objetivo é a lei e sua brandura é adoçada pensando que o tempo, esse curador infatigável, sabe usar todas as asperezas; ele sabe, o vosso morto venerado, muito mais vivo do que nunca, que a luz sairá das discussões animadas e que a justiça reunirá todos os homens em feixes, diante dessa desagregação do mundo antigo, que leva as consciências à dúvida, ao horror do desconhecido. Ele sabe, o mestre, que os mortos vão depressa e, repito, comungo o seu pensamento!
Instituições, formas, crenças antiquadas, tudo morre e tudo se regenera! As camadas terrenas são revolvidas para se inocular esse vírus benfazejo que se chama leitura, saber, ciência, julgamento, e todos os desaparecidos vão bater sem cessar em todas as consciências, para as despertar e levantar a tampa de chumbo que as cobria.
Comunhão de pensamentos! última palavra de meus trabalhos de cidadão, torna-se, assim, valor intrínseco, joia nacional; inspira meu país, todos os países unidos com os seus princípios; cria o bem-querer, a justiça, a concórdia, o amor; faze que em vez de palavras vãs haja devotamento e o Mestre, satisfeito, verá, pela vontade de todos que amam a calma, a verdade e a Doutrina Espírita, irradiar-se o espírito de solidariedade, chamando a família eterna dos mortos e dos vivos a concorrerem para a edificação futura da crença na vida da erraticidade, à qual convidamos os nossos irmãos presentes e ausentes!
Sede espíritas tanto por vossos atos, quanto por vossas palavras! Uni-vos, recolhei-vos, todos vós que vos aproximais da tumba; porque, cabelos louros, cabelos brancos, sentis a vida eterna, esta surpresa do dia seguinte, surpresa da morte, radiante de vida!…
Jean Reynaud.