Além da Morte

CAPÍTULO 12

ORAÇÃO NA COLÔNIA



O Sol ainda não se ocultara de todo. Raios dourados brincavam nos ramos das roseiras que oscilavam lentamente sacudidas por suave brisa.

Grande transparência na atmosfera deixava desnudo um céu profundo e calmo, banhado de azul sereno, convidando à meditação e ao silêncio.

Como se flutuassem no ar, notas melodiosas de um mavioso órgão invadiram lenta e suavemente o recinto em que me encontrava. Os acordes harmoniosos tocavam-me sensivelmente o coração e, sem que pudesse explicar, surpreendi-me tomada por silencioso e confortador pranto. Traduziam essas lágrimas aquele estado dalma, misto de felicidade e recordação, que não se pode ou não se sabe bem definir.

As notas subiam e desciam em conjunto melodioso, parecendo falar às nossas almas saudosas e angustiadas, confortando -as miraculosamente.

Nesse momento, a Benfeitora Zélia deu entrada em nosso reduto acolhedor e, aproximando-se de uma mesa, no fim da sala, acercou-se de um aparelho semelhante aos receptores de televisão da Terra e o ligou, com movimento rápido. Surgiu-nos, então, à visão deslumbrada, amplo recinto, em forma semicircular, com aproximadamente 1. 000 pessoas, sentadas, em atitude de profunda concentração.

Num estrado, ao fundo, singela tribuna, à feição dos púlpitos das Igrejas Reformadas, destacava-se, cercada por duas filas de poltronas, igualmente ocupadas.

Festões de rosas desciam delicadamente enrolados nas colunas que cercavam o encantador auditório, no cenário da noite em crepe transparente, ornado das cascatas de luz poente.

Verdejante relva se derramava além das alvas colunas que pareciam construídas do mais fino mármore, a apontar o céu estrelado.

Jovem seráfica, sentada a grande órgão, continuava a dedilhar o teclado alvo, sensivelmente emocionada. Todos pareciam participar da mesma emoção, porquanto, de olhos fechados, deixavam transparecer, na face, a comunhão fraterna que se irradiava, misturando-se harmoniosamente.

— Eis o nosso santuário de orações — informou a Enfermeira Zélia, aproximando-se de mim.

— A pulcra jovem organista — prosseguiu, jovialmente — é Susana, que na Terra se dedicou à música de Bach, Wagner e Haéndel. No momento, prepara-nos o ambiente com o trecho da peça "XERXES" de Haêndel, denominado LARGO.

Tomada pelos acordes vibrantes, parecia recuar no tempo e evocava a melodia que tantas vezes escutara quando encarnada. Tinha a impressão de que a música, naquele momento, possuía uma linguagem mais compreensível, saturando de emoções superiores a minha alma.

Envoltos nas vibrações do instrumento magnificamente conduzido, ouvimos as últimas notas perderem-se no ar. A jovem, entretanto, parecia vestida de suave e bela luminosidade. O rosto, pálido, coloriu-se de rubor expressivo e as lágrimas brilhavam nos seus grandes olhos negros.

Pretendia indagar à bondosa mentora a respeito da jovem, solicitando mais algumas informações, quando esta me socorreu, esclarecendo, compreensiva: — Susana foi uma dessas heroínas anônimas que muito amou sem fruir ventura da retribuição. Entregou-se, por isso mesmo, à música, qual musa da arte, enquanto a tuberculose pulmonar lhe consumia a fragilidade orgânica. Chegou à nossa Colônia na condição de vitoriosa, e aqui, desde há alguns anos, coopera no ministério da oração, ajudando com acendrado devotamento os afeiçoados que continuam na retaguarda.

Silenciando a voz pausada, observei que venerando ancião se ergueu de uma das filas laterais assomando à tribuna sob a mais viva satisfação de todos os presentes.

— É o orientador Célsius, abnegado Instrutor de nossa Colônia — elucidou a amiga espiritual.


E após alguns momentos:

— É portador de grande soma de bênçãos em nossa Casa de carinho, que muito lhe deve ao labor abnegado e incansável. Trabalha neste Hospital- Escola há mais de um século, segundo estou informada, com credenciais de demandar outra esfera de realização. Todavia, jamais utilizou o patrimônio que lhe exorna o espírito abençoado, para qualquer benefício pessoal... As tarefas mais difíceis têm-lhe a preferência, atestando o seu alto coeficiente de renúncia e caridade. "Regiões dolorosas de reparações punitivas —prosseguiu a lúcida matrona —, núcleos infernais de purificação, recebem-lhe, invariável e constantemente, o concurso valioso e, nas enfermarias reservadas aos loucos e possessos, sua figura é um convite honroso aos companheiros socorristas no sagrado ministério de ajudar. " O ar balsâmico do anoitecer caía ameno. De nosso leito, participávamos do culto que ora se iniciava.


O orientador Célsius, imóvel na tribuna, recebia no rosto aureolado a carícia do fugitivo dia. Ergueu os olhos e, ao baixá-los, fitou com imenso carinho a multidão atenta, falando com voz clara e pausada:
— Irmãos em Jesus. Paz seja conosco. "Infatigáveis companheiros nossos encontram-se no momento, nas frentes de luta das regiões purgadoras, combatendo, denodados, a serviço do Bem Sem Fim. "Enfrentando dificuldades indescritíveis sob temporais de revoltas e ódios, cooperam com Jesus nas ásperas jornadas de soerguimento das almas fracassadas e no despertamento de consciências entenebrecidas há muito tempo... "Constituem os braços da legião dos "Servidores da Cruz", em nobilitante esforço salvacionista. "Também temos hoje ao nosso lado antigos companheiros que retornam sem luz, nem pão, nem esperança. Alguns conservam ainda as fundas feridas das refregas em que foram batidos; outros guardam as impressões violentas das tormentas que os açoitaram e em cujo vendaval foram levados até ao crime, pela inobservância dos deveres morais. Quase todos se apresentam desencantados, aturdidos, sem forças... Retornam ao Lar como náufragos desesperados aportam em acolhedora ilha, sem que, entretanto, possam repousar, tais as impressões que conservam no íntimo, daqueles tormentosos dias e noites de ansiedade e loucura ao sabor das águas revoltas... "São corações desesperados que nos pedem os melhores esforços, conclamando-nos, na sua desdita, à vigilância e aguardando o concurso do nosso trabalho assistencial para o redespertamento de consciências enegrecidas pelo erro e intoxicadas pelo ópio dos prazeres absorventes. " O narrador silenciou por momentos, para prosseguir com outro timbre de voz, modulado em vibrações de muita ternura:

— Quantas vezes não tivemos igualmente batido a outras portas, apresentando os mesmos desequilíbrios? Quantos não conservamos, até este momento, úlceras ou cicatrizes que nos recordam loucuras idênticas? Quantos não carregamos reminiscências amargas e apreensões justas em relação a afeiçoados enceguidos nas disputas da posse, nos resvaladouros da ingratidão e da "morte"? Quanto temos de fazer, por nós mesmos, para esquecer por superação, vencer através da renúncia total, crescer pela senda do sacrifício, a fim de conquistarmos os tesouros da paz e da imortalidade? São quesitos que não podem ficar esquecidos em nossa Agenda, para meditação.

Senti que, embora suas palavras não tivessem o tom amargo de acusação nem denotassem lamento, falavam verdades que me atingiam vivamente. Quantas oportunidades deixara escapar, quando mergulhada na carne? Como estaria minha filha, no lar, que me era tão querido? Que me reservaria o futuro nos ensejos de novas lutas?


Não pude alongar-me nas divagações mentais. A voz do tribuno inspirado voltava à oração cativante:

— Somos devedores compulsórios da Misericórdia Divina — continuava, calmo —, que jamais nos abandonou. Por essa razão, não podemos permanecer indiferentes à vasta cópia de dores que assalta outros corações, atingindo, assim, nossa alma. "O Senhor Jesus Cristo deu-nos o exemplo, pelos longos testemunhos no campo do auxílio infatigável, na temporada vivida conosco, no mundo. E até agora, sem cansaço nem esmorecimento, prossegue o Trabalhador Incessante, construindo para nós e por nós. "Conservemos em mente que a felicidade somente é possível quando conseguimos arrancar os tentáculos do egoísmo e do imediatismo, esses vitoriosos adversários de nossa gloriosa destinação. E para tal desiderato a Caridade é o único meio de retirar as ventosas desse algoz titânico que nos suga as energias, debilitando-nos o ânimo. Perseveremos no concurso aos semelhantes e abriremos clareiras na mata de nossa ambição, permitindo, assim, que a luz de cima oscule as baixadas do nosso ser. " Fez-se, novamente, uma breve pausa. Em todos os olhares brilhava o desejo de servir. Fitando o orador nimbado de diamantina claridade, o auditório conservava-se em expectativa silenciosa.


Erguendo novamente a voz, muito branda, quase além de um murmúrio, continuou o intérprete da Palavra Evangélica:

—Eis que temos por bem-aventurados os que sofrerem... "... E a oração da fé salvará o doente, e o Senhor o levantará; e, se houver cometido pecados, ser-lhe-ão perdoados". Assim nos fala o Apóstolo Tiago, na sua Epístola Universal, no capítulo cinco, versículo onze e quinze, concitandonos ao culto da dor e da prece, principalmente quando, doentes e pecadores, estivermos juntos, buscando o Senhor. " O órgão cantou dolente, sob as mãos leves de Susana.

Alçando os braços em atitude de súplica sem afetação, o respeitável ancião, então, orou: "Jesus, Celeiro da Esperança, socorre-nos. Sentinela luminosa de nossa noite, clareia-nos. Alonga os teus ouvidos e ouve-nos a súplica.

Em nossa luta de toda hora, em ti confiamos.

Nas regiões de sofrimento-lição, ajuda-nos.

No abismo da ignorância milenar, abre-nos o manancial da tua sabedoria. Em nossa condição de delinquentes, favorecenos, outra vez, com a graça de nova oportunidade.

Carregados de aflições e dores, consola-nos.

E além de nós, Jardineiro das almas, favorecenos, com a misericórdia da tua permissão, para levar adiante, embora não nos encontremos aptos: teu nome aos recintos de horror, tua paz aos penhascos da revolta, teu amor aos vales do ódio, tua luz aos abismos da treva, teu perdão às charnecas escuras da vingança, e tua esperança aos tortuosos rios do desalento. Suplicamos, igualmente, pelos flautas vencidos nas viagens laboriosas e difíceis do mundo das tentações e que retornam a estas praias desarvorados e tristes.

Por quantos seguiram animados e retornam presos aos cipós intrincados das redes perigosas da invigilância e, principalmente, por aqueles que: ferem e sorriem em plena loucura, perseguem e dormem em total ignorância, malsinam e gozam em completo abandono de si mesmos. Eles constituem "motivo de escândalo", não te conhecem, e são, em consequência, os mais infelizes...

por nós que te conhecemos e preferimos a treva à luz, a ventura enganosa e passageira à renúncia redentora.

Senhor, tem piedade de nós!" Silenciou o abnegado Mensageiro da Luz. Gotas de evanescente claridade caíam sobre os assistentes. O órgão continuava a entoar as excelências harmoniosas do Céu.

A irmã Zélia acarinhou-me a cabeça. Todos chorávamos.

A reunião terminava.

Estrelas miúdas brilhavam no céu azul-escuro, muito longe.

O aparelho foi desligado, mas, com o silêncio decorrente, a meditação falava alto em nossas almas.