Diariamente, às vésperas, antes das orações do anoitecer, o jovem passista me trazia, com a sua bondade assistencial, elucidações e apontamentos sobre a água fluida, os passes magnéticos, as vibrações mentais, a prece e todo um cortejo de valiosos temas que me rasgavam horizontes ao entendimento, aclarando-me a visão.
A justiça de Deus tornava-me mais amorosa e instruída, desaparecendo em meu pensamento as falsas conexões à base de tabus interpretativos, quanto às diretrizes superiores.
Depois de um mês de contribuição magnética frequente, já me era possível movimentar-me pela sala singela, interessando-me, mais de perto, pelos problemas dos demais companheiros hospitalizados, ora em alguma pequena assistência mais direta, enfim, nessas pequenas coisas tão insignificantes, e tão importantes entretanto, para quem tem ânsia de recuperação do tempo perdido e busca iluminação interior.
Verifiquei, tão logo me desembaracei do cansaço e do torpor que me prendiam ao leito, que o Santuário hospitalar, que me acolhia, longe estava de ser a decantada "Mansão do Repouso" com que tanto sonhamos na Terra.
A palavra TRABALHO não era apenas um vocábulo, mas sim uma realidade construtiva e ativa em todos os lados. Os residentes pareciam divididos em misteres especiais e não me recordo de ter visto, até hoje, um semblante sequer, onde a inércia se desenvolvesse. Certamente, enfermos de todos os matizes guardavam o leito por tempo indeterminado. Todavia, a movimentação dos próprios esforços muito contribuía para o despertar, libertando-os dos tentáculos porosos da doença demorada.
Aqui e ali identificava rostos sisudos, preocupados; expressões de saudade e dor entre transeuntes e enfermeiros; todavia, as bênçãos vigorosas do serviço a que se dedicavam pareciam anunciar-lhes melhores horas, em próximos tempos. E cientes de que o trabalho é mensagem divina, em contribuição benéfica, guardavam todos, na expressão do olhar, a presença da fada Esperança, como mensageira da felicidade plena.
Aclimatada, na Terra, aos labores humildes de limpeza e asseio, oferecime à irmã Zélia, em dia de grande movimento, para contribuir de algum modo com os deveres de manutenção da Enfermaria, onde me encontrava, experimentando, com a sua aquiescência, indizível júbilo.
— O trabalho — informou gentil —, é o poderoso elixir de longa vida que fortifica todas as esperanças e esponja que apaga todas as preocUpaçõeS. A alma que labora não é colhida pelas malhas das tentações da dúvida e do medo, ficando distante do barco fraco dos receios. Enquanto revigora, o exercício do dever bem cumprido estimula energias, antes esquecidas, a dormitarem na inutilidade. Reabastece a organização psíquica e imprime ao espírito uma razão operante de lutar e vencer, proporcionando a felicidade do ideal.
— Com Jesus, aprendemos que todo trabalho é honrosa incumbênCia, constituindo-se concessão utilíssima de elevação para todos. O próprio Mestre, desde as primeiras horas na Carpintaria de José, onde se exercitava, ensinounos o melhor meio de valorizar o tempo, em aplicação das horas nos serviços humildes, como base das grandes tarefas. "Trabalhe quanto lhe permitam suas forças — estimulou-me com simplicidade —, sabendo que o trabalho é o melhor medicamento contra a perturbação. Poupe, por enquanto, as energias mais valiosas, que serão úteis mais tarde e, pela aplicação sadia dos minutos, seu pensamento adquirirá roteiro disciplinar indispensável à utilização inadiável do porvir. "E quando o cansaço tomar suas fibras — arrematou com encantadora jovialidade —, lembre-se de que o Senhor até hoje trabalha por nós, sem desfalecimento.
— Hoje é domingo e encontro-me com um saldo de horas livres. Desejo oferecê-las a você e acredito que seriam de utilidade se as pudéssemos aproveitar numa pequena caminhada até o parque de repouso, nas cercanias do Hospital, onde encontraríamos motivos de entretenimento e refazimento espiritual.
Não me fiz rogada. Ao contrário, exultei de incontida alegria. Senti mesmo uma grande emoção.
Momentos depois estávamos em plena rua. O movimento fazia lembrar o das zonas residenciais da Terra, nos dias de repouso comercial. Silêncio agradável pairava no ar, quebrado somente pelo brando cicio da brisa na ramagem do arvoredo.
Era minha primeira marcha, além das dependências do pavilhão onde me encontrava em tratamento e, por isso mesmo, tudo tinha um sabor inusitado e delicioso. Parecia-me estar no próprio paraíso. Rapazes e velhos, jovens e matronas trajavam-se com discrição e decência; as mulheres, com leves túnicas, formavam pequenos grupos; todos passavam conversando na mais fascinante cordialidade, tocados por emoção muito diversa das intempestivas paixõeS do desejo.
Demorava-me extasiada na contemplação da manhã fresca, fitando OS quadros coloridos da natureza que, aos ósculos do dia em crescimento, mudava as tonalidades de luz na moldura das nuvens, em cambiantes variados e harmoniosos.
Não cessava de admirar as belezas do caminho ajaezadO de miosótiS e tufos de violetas perfumadas que serviam de tapete colorido a hortênsias rosas, azuis e brancas.
Com sorriso bondoso, AdriãO chamou-me a atenção para os transeuntes que me fitavam alegres, notando a incontida satisfação com que me movimentava, traduzindo-lhes a minha situação de recém-chegada, como acontecera a eles próprios em ocasiões passadas.
Após três quartos de hora, aproximadamente, chegamos a magnífico parque, arborizado, com jardins perfumados, onde algumas centenas de pessoas se agrupavam no mais cativante contentamento.
(*) João
estas estâncias de socorro, onde a alma escala o seu percurso ascensional evolutivo...
Nesse momento, um casal de velhinhos, em cujos semblantes a esperança parecia residir, acercou-se, sorridente.
Tratava-Se do casal Romero, estudantes da Reforma Luterana, e que, durante O ultimo estagio na Terra, se ligaram à Igreja ProteStante. O Sr. Romero desencarnara primeiro, por volta de 1932, e demorara-se na Colônia Redenção enquanto se refazia do túmulo. Despertando para a luz meridiana do Evangelho, constatando em si mesmo a imortalidade da alma e renovando conceitos em torno da vida, procurou, em constantes tentativas mediúnicas, despertar a companheira para o movimento espírita, vigente e florescente nas terras do Brasil.
Aferrada, porém, à letra bíblica, Dona Aurora não abria uma fresta aos insistentes alvitres do companheiro desencarnado, continuando no estreito corredor literal, esquecida de que "a fé sem obras é morta" consoante a feliz observação de Tiago, o Apóstolo intransigente. Desencarnando, uma década depois, chegara àquela Casa de Benemerência, escrava da pretensão religiosa, exigindo o Céu a que pensava ter feito jus...
Longo foi o seu processo de reajustamento e despertar. Todavia, crente honesta e sincera, ao aperceber-se das diretrizes novas que o evangelho lhe apontava, candidatou-se ao encargo mediúnico, em dolorosa provação, no seio de uma família ligada a uma das Igrejas Reformadas, para onde retornaria em breve, pelo processo santificante da reencarnação.
Rapidamente, sentimo-nos os quatro fortemente afins e interessados pelas questões da Doutrina Espírita — poderoso norteador de almas —, conduzindo a Senhora Romero a conversação para a minha última experiência terrena, após o que, igualmente emocionada, me narrou os fatos citados.
Demoramo-nos reunidos até horas avançadas, quando o dia, pleno e estuante, dominava a paisagem, coroando a fraternidade naquele recanto aprazível, com a mensagem dourada de sua benéfica luz.