Naquela noite, demorei a conciliar o sono. O caso Matilde voltava-me à mente com frequência assustadora. Recordava-lhe as justificações e parecia escutar as palavras proferidas pelo médico. As expressões de advertência e despertamento, invigilância e simonia, atormentavam-me, escaldando-me o cérebro.
Que lhe teria ocorrido realmente? Quais práticas teriam sido aquelas aludidas pelo dr. Cléofas? A quais vampiros se referia a infeliz? Seriam visões imaginativas ou experiências atormentadas que vivera?
Na manhã seguinte, quando a irmã Zélia veio visitar-nos, não pude sopitar por mais tempo a ansiedade de esclarecimentos e atirei-me à sua fonte de experiência. As palavras amigas não se fizeram demorar.
— E os Benfeitores Espirituais não advertiram a médium, nessa hora tão significativa para sua vida?
— Evidentemente! — retrucou. — Todavia, Matilde negava-se a ouvi-los, fascinada que se encontrava pela leviandade. Recordava as necessidades até então experimentadas e justificava-se, retrucando, mentalmente. Repassava os problemas que lhe afligiam o ser, esquecida, certamente, de que a dor é mestra da vida, e murmurava: — Afinal de contas estou trabalhando mais do que nunca, em favor dos aflitos, e a doação que recebo fica muito aquém dos benefícios que faço. Que mal existe nisso? Não fazem o mesmo os sacerdotes de outras crenças, vivendo da fé, com o auxílio dos religiosos? — Olvidava, enlouquecida que se encontrava, que o Espiritismo não pode ser comparado às "outras crenças, porquanto é da Lei que "cada um coma o pão com o suor do seu rosto". E nesse sentido, o médium que não é um ser excepcional; sendo apenas um instrumento, nada pode receber, porque, quanto faz, procede sempre do Cristo e nunca dele mesmo. No entanto, as advertências continuavam, constantes, embora não ouvidas. "Por sua vez, os Espíritos maléficos se utilizavam dos consulentes desavisados e estes a envolviam nas suas solicitações, compensando todo o trabalho com moedas e auxílios adquiridos muitas vezes na desonestidade e no crime que procuravam com habilidade acobertar.
— Um dos maiores inimigos dos médiuns está naqueles que buscam o intermediário, com problemas, procurando "consultas". Ninguém pode resolver problemas de ninguém, especialmente por processos mediúnicos. Quem realmente se encontre angustiado, busque a Doutrina Espírita e esta lhe dará os instrumentos de solução, não, porém, o médium, porquanto este é, quase sempre, uma alma aflita, também avassalada por problemas, no trabalho de renovação.
— Atordoada, deslumbrava-se pelo alarido álacre das "novas e generosas afeições que lhe ofertavam o pão e a luz da felicidade na Terra". Era necessário, meditava, afastar-se do Núcleo de trabalhos coletivos, onde ela se perdia na multidão, sem serem reconhecidos os seus dotes mediúnicos, para fazer a sua CASA DE CARIDADE. Além disso, arrematava, o número de pessoas que a procuravam era tão grande, que já não dispunha de tempo para procurar o Centro Espírita.
— Quando, minha filha, um médium abandona o Grupo de estudos e sob justificáveis motivos (nem sempre justos) edifica o "seu" Centro de atividades ou permanece "trabalhando" em casa, encontra-se em grave perigo. "O Centro Espírita é uma fortaleza, um abrigo. Quando lhe faltam os requisitos que seriam de desejar, o médium tem obrigação de cooperar ainda mais, entregando-se ao serviço mediúnico com devotamento e deixando aos Mentores, que esclarecem e norteiam os companheiros, a tarefa de orientarem os diretores para a ordem, dentro das bases de Kardec e as sublimes lições de Jesus Cristo. "Aliás, preocupa-nos constatar que os Espíritos infelizes se utilizam da invigilância de médiuns e doutrinadores, atualmente, dividindo, a seu belprazer, os corações, criando, cada dia, novos setores de trabalho, em grupos, quase todos, da divisão, da vaidade e da pretensão. "
— Foi o que aconteceu à médium, objeto de nossa conversação — retornei ao tema.
— Cheia de entusiasmo — continuou a narrativa — abriu "as portas do Lar à Caridade total", como costumava expressar-se, iludindo-se terrivelmente. A medida que os favores humanos a cercavam, inacessível se tornava às vozes dos Amigos Espirituais. "Cercada de entidades inoperantes e viciadas, com as quais afinava pelos pensamentos comuns, aturdida ante o volume de exigências da insaciável clientela sempre crescente, foi-se deixando, lentamente, conduzir pelas inspirações da desordem. Não desejando perder a posição granjeada de "pitonisa" moderna ou avalista de benefícios para almas, insensatamente se atirou a arrojadas aventuras no campo da Goécia, envolvendo-se nas malhas cruéis de perigosos labores que, por fim, a aniquilaram. "Naturalmente, muitas vezes, quando a mente lhe ardia de inquietação, orava e, na doçura da prece, recordava o velho doutrinador de palavra sedutora e conduta salutar, deixando-se empolgar pelas lágrimas de saudade. Desejaria recomeçar, tornar aos dias idos, à necessidade de outrora. Mas, como? Tinha amigos (ou senhores inclementes?) a quem não se poderia furtar. Notava, desde há muito, a ausência das forças vitalizantes e, através das telas do pensamento, parecia descobrir entre espessas sombras uma forma hedionda a dominar-lhe o campo psíquico, arrastando-a e cingindo-a, empurrando-a para a frente escabrosa, com tenazes vigorosas. "Torturada, exausta, adormecia sem forças de abandonar tudo e recomeçar, enquanto o tempo abençoava sua vida com oportunidades facilmente aproveitáveis. "No dia seguinte, entretanto, já cedo, antes de refazer-se da noite mal dormida, os semblantes sorridentes dos necessitados — falsos doentes e aflitos ociosos — buscavam-lhe o concurso em pactos terríveis com os espíritos da zombaria, da irresponsabilidade, do mal... "Passaram-se os anos. Aos quarenta janeiros, Matilde era, em aparência e vitalidade, uma anciã. Os cabelos alvejavam rapidamente, os olhos cobriam-se de amargura e o coração ralava-se na angústia. Tinha conforto para o corpo — a que preço? — e muitas dores na alma. "Alguns ainda a procuravam aflitamente. Desejavam lucros em negócios inescrupulosos, sorte em amores, regularização de compromissos e toda uma longa sorte de enganosas especulações. Outros, entretanto, maldiziam-na. O esquecimento de uns e a maledicência de outros cruciavam-na. "Lentamente a obsessão de outrora retomou-lhe os centros neuropsíquicos e, numa noite de horror, enlouquecida, ateou fogo às vestes rasgadas, sendo consumida pelas chamas, entre gargalhadas de pavor. Antes que qualquer recurso, por parte dos vizinhos, pudesse ser tentado, desencarnou, em circunstâncias apavorantes, lanceada no sentimento e fracassada na mediunidade. " Silenciou a amiga espiritual, e tomada de imensa piedade fitou a enferma que continuava a dormir com o semblante congestionado, como se fosse vítima de terríveis pesadelos.