Odores pestilentos e desagradáveis invadiam-me as narinas, causando-me sucessivas náuseas. Verifiquei que o meu corpo se tornara volumoso, começando a decompor-se, enquanto aluvião de asquerosos vermes se locupletavam nas carnes entre as vestes úmidas e imundas. Era toda uma massa informe em apodrecimento. Emanações insuportáveis asfixiavam-me sob a laje de cimento que em repetidas tentativas de liberdade desejei erguer, redundando a luta em esforço inútil e cansativo.
Ciente da realidade de minha "morte", cercada de compactas trevas, sabendo-me com o corpo em decomposição no Cemitério eu experimentava avassaladora angústia. Não conseguia demorar-me em conjecturas; não podia raciocinar mais demoradamente; não coordenava ideias; tudo se passava rápido, cruel, fugindo e retornando à retina mental em remoinhos sucessivos. E, acima de tudo, sentia necessidade de ar, de luz, de paz...
As lágrimas que me pareciam sair do coração ferido e amargurado banhavam-me sem que conseguissem lavar-me o lodo que também me empastava a forma nova, em tudo idêntica à que lentamente apodrecia.
Apalpava-me e constatava a presença da dor física, embora desligada do corpo. Sentia-me pesada, raciocinando com dificuldade, esmagada na cova sepulcral.
Num desesperado esforço, tentei fazer um balanço, reunindo todos os fatos da minha vida, até onde podia alcançar, procurando esquecer, por momento, a sensação da violenta dor que se demorava na região cardíaca, e recordei, emocionada, a inadiável necessidade de orar. Sim, a prece ser-me-ia a única fórmula medicamentosa capaz de restituir-me a paz, a serenidade. Recordei-me, então, do Senhor Jesus, o Amigo dos aniquilados e Companheiro constante dos infelizes. A sua figura vitoriosa, além da Cruz, retornou à minha mente, trazendo-me revigorante calma. A princípio, vagamente, depois mais nítida, a lembrança do Cordeiro de Deus fez-me esquecer a própria aflição, ao compará-la com a Sua dor, no infinito desconforto da Cruz, por amor a todos os homens — os companheiros ingratos. Pela primeira vez, minha filha, experimentei tranquilidade junto aos despojos carnais, no fundo da sepultura.
Reconheci-me como sou: ingrata e egoísta, pobre e sem valia. Enquanto Ele não pronunciara uma só queixa à frente dos inenarráveis sofrimentos e humilhações, eu me entregava à desesperança e à revolta. Sua lembrança tomou-me o espírito atribulado e a prece, clara e pura, repassada de fervor, saiu-me pelos lábios, ditada pela fonte do sentimento.
Oh! o consolo que deriva da prece murmurada pelo espírito confiante, após a aflição! Somente poderão sabê-lo aqueles que na última instância a ela se entregarem, esperançosos, rompendo as distâncias, lançando a grande ponte entre o mundo propínquo das dores e o Reino longínquo das misericórdias divinas.
Ainda não havia terminado a rogativa, quando me chegou aos ouvidos, como em formoso sonho, doce e meiga voz que banhou de harmoniosa musicalidade o estranho recinto.
— Onde escutara antes aquela agradável entonação vocal? — interrogava-me. E, depois de breve rememoração, identificava nos recônditos da alma a mensageira visitante. Era a irmã Liebe, não havia dúvida. Era aquele anjo que tantas vezes, no Culto de nossas orações no Lar, nos convidara a seguir o Mestre, concitando-nos a amá-lo acima de todas as coisas terrenas. A mesma meiguice de outrora, o mesmo carinho, o mesmo amor, numa mensagem do Céu ao abismo da minha indigência e agonia.
— Que fazer, irmã querida, em tão trágicas circunstâncias? Como libertarme daqui?...
(*) , a respeito da prece. Sabes que através da oração a alma, aspirante ao Céu, se veste de consoladora paz e tem forças para a ascensão. "Enquanto jornadeamos no mundo, perdemo-nos, invariavelmente, entre recitativos oracionais e amontoado de inexpressivas fórmulas, pondo ao longe o sentimento devocional e o exame de consciência no culto da prece. Livres, entretanto, da carne, verificamos que a prece propicia o alargamento dos horizontes espirituais, favorecendo o intercâmbio que faculta o banho no infinito mar das formosas concessões.
(*) Marcos
não relaciones apontamentos apressados;
não apresentes necessidades... O Senhor, que a todos nos conhece, sabe das necessidades que nos assinalam a existência e supri-las-á, naturalmente. Abre-Lhe o coração com amor e fala ungida de piedade e esperança. Colocando a alma em cada frase, recorda e repete a oração dominical (1) que o próprio Senhor nos ofereceu, como legado de amor, e confia na caridosa assistência que não tardará. " Silenciando-se a voz carinhosa, procurei retemperar o ânimo e, como se voltasse à casa materna, revi-me pequenina e pobre, vestida nos panos da simplicidade, junto ao colo protetor de mamãe, mãos unidas, em noite de frio, repetindo com ela o "PAI NOSSO". Com a imagem fixa na mente, com toda a unção e o recolhimento, tentei naquela hora singular repetir as comoventes e claras expressões.
As palavras vestidas de emoção umedeciam meus olhos. As lágrimas então já não tinham o mesmo sabor de agonia e revolta. Conquanto as dores não tivessem cessado de vez, a serenidade demorou em minha alma.
Permaneci, olhos fechados, ajoelhada como nos tempos passados, orando demoradamente, esquecida do cubículo infecto onde me encontrava.
Ao descerrar as pálpebras, deparou-se-me suave claridade a espraiar-se nas paredes e, sorrindo, surgiu o delicado e compassivo rosto de irmã Liebe, aureolado de fios dourados. Lentamente se foi delineando e, em breve, surgiame deslumbrante e bela.
(1) Lucas
Do tórax estendiam-se raios de luz que me penetravam, banhando-me inteira. Vitalidade antes não experimentada visitou-me, exuberante, reanimando-me fortemente.
Fitando-me com benevolente expressão, falou-me, confiante: — Não temas. Vem! Saiamos daqui.