No desdobramento das tarefas habituais, através das quais eram mantidos os contactos com os Benfeitores Desencarnados, nas sessões especiais, hebdomadárias, recebíamos esclarecimentos e informações, através das quais os irmãos Saturnino e Ambrósio nos davam elucidações minudentes dos acontecimentos transcorridos na Esfera Espiritual, quando dos labores abençoados de que participávamos, conquanto a nossa condição de encarnados no domicílio orgânico.
Dessa forma, inteiramo-nos dos detalhes da operação fraterna junto ao Dr. Teofrastus e a Henriette-Marie, assim como dos fatos precedentes. Obviamente, ao retornarmos ao corpo somático, as lembranças das realizações espirituais desapareciam quase completamente, deixando-nos as evocações em impressões de sonhos que se manifestavam, ora como pesadelos dolorosos, ora como estados de comunhão elevada com as Esferas Superiores da Vida.
Nesse particular, os 1nstrutores se encarregavam de ativar ou frenar os centros encarregados das lembranças, de modo a que a nossa jornada humana transcorresse com a normalidade possível, sem problemas que nos perturbassem as atividades de servidores da Comunidade dos homens.
A recordação detalhada situar-nos-ia entre os dois mundos, ensejando-nos um desapercebimento das realidades do lado físico, propiciando-nos um desvio da atenção, que se voltaria para as experiências e realidades da esfera espiritual.
Desde que fora iniciado o processo desobsessivo de Mariana, recebêramos advertência no sentido de manter as ligações psíquicas com a Espiritualidade Superior, de modo a nos acautelarmos das ciladas dos Espíritos menos felizes que, surpreendidos pelas incursões que se fariam nos seus domínios, seriam concitados à agressão por todos os meios possíveis, numa tentativa de obstar o labor abençoado ora em execução.
Considerando as altas responsabilidades que nos diziam respeito, buscávamos corresponder à expectativa dos Mentores, esforçando-nos por oferecer, pelo menos, a quota da oração, do pensamento otimista e o espírito de abnegação, dedicandonos ao mister espiritual com alta dose de entusiasmo e fé.
Ao primeiro ensejo, após a entrevista com o ex-Mago de Ruão, o Benfeitor Saturnino elucidou, pela psicofonia do médium Morais, que voltaríamos a encontrarnos, depois de concluídos os trabalhos da noite, quando o Irmão Glaucus conduziria o terrível obsessor, ora em fase de meditação, a uma entrevista naquela Casa, num encontro que estava destinado a definir os rumos futuros da sua vida.
Concitava-nos ao exercício e mentalização da piedade fraternal, manifestação essencial para a caridade legítima, de que nos deveríamos revestir para cooperar ativamente.
Em retornando ao lar, a expectativa do reencontro me inquietava, dificultandome o necessário repouso. Orando, no entanto, e sentindo a presença dos 1rmãos Maiores do Mundo Espiritual, recompusemos a paisagem mental e brando torpor nos invadiu, facilitando às Entidades vigilantes o nosso desdobramento e consequente condução à Sede da nossa Casa de Oração e Amor.
Quando ali chegamos, já se encontravam os demais membros participantes das tarefas socorristas.
Saturnino, sempre calmo e gentil, traduziu em sentida oração os anseios de todos os presentes e rogou a Jesus fosse Ele o Sublime Visitante e o Condutor dos trabalhos em desdobramento, com vistas à caridade da iluminação de consciências obnubiladas pelo orgulho e pelo egoísmo — esses dois implacáveis inimigos do espírito humano!
O ambiente, à medida que o Benfeitor orava, se foi saturando de perfume discreto, qual lavanda muito leve carreada por suave aragem - Pétalas de luz diáfana começaram a cair, abundantes, e desfaziam-se ao tocar nos circunstantes ou nos diversos móveis e objetos.
Vibrações muito penetrantes nos impregnavam a todos - E sem que o percebêssemos, as emoções rompiam os diques da visão e fluíam em copiosas lágrimas, no recolhimento em que nos encontrávamos.
—Leia, meu irmão, o «Livro da Vida».
O venerando amigo acercou-se da mesa mediúnica e tomou de pequeno livro, irisado de filetes de luz, no qual vimos em tons azul-prateados as letras, em destaque: Novo Testamento.
«Mestre, eu te trouxe meu filho, que está possesso dum Espírito mudo, e este, onde quer que o apanha, o lamça por terra: ele espuma, range os dentes e vai definhando. Roguei a teus discípulos que o espelissem, e eles não puderam. «Disse-lhes Jesus: «Oh, geração incrédula! até quando estarei convosco? até quando vos sofrerei? Trazei-mo» Então, lho trouxeram. Ao ver a Jesus, logo o espírito o convulsionou; ele caiu por terra e se estorceu, espumando. Perguntou Jesus ao pai dele: — «Há quanto tempo acontece isto?» Respondeu-lhe: — «Desde a infância; e muitas vezes o tem lançado tanto no fogo como na água, para o destruir; mas se podes alguma coisa, compadece-te de nós e ajuda-nos. » Disse-lhe Jesus: "Se podes! tudo é possível ao que crê. » Imediatamente o pai do menino exclamou: «Creio! ajuda a minha incredulidade. » Jesus, vendo que uma multidão afluia, repreendeu o Espírito imundo, dizendo-lhe: «Espírito mudo e surdo, eu te ordeno, saí dele, e nunca mais nele entres. » Gritando e agitando-o muito, saiu; o menino ficou como morto, de maneira que a maior parte do povo dizia: «Morreu. » Jesus, porém, tomando-o pela mão, ergueu-o, e ele ficou em pé. Depois que entrou em casa, perguntaram-lhe seus discípulos particularmente: — «Como é que nós não pudemos expulsá-lo?» Respondeu-lhes: — "Esta espécie só pode sair à força de oração. » Fechando o delicado repositório dos (ditos do Senhor», e, inspirado e comovido, José Petitinga, após ligeira pausa, teceu comentários vazados na mais excelente conceituação espírita, revivendo os feitos do Mestre, naquele momento em que deveríamos, aquinhoados pela mercê do Rabi, concitar à paz e ao arrependimento, um Espírito que, somente «à força da oração», poderia modificarse.
Silenciava o apóstolo da mensagem espírita em terras baianas no passado, quando deu entrada na sala o irmão Glaucus, que se fazia acompanhar do Dr. Teofrastus e dos dois guardiães que, com permissão dos 1nstrutores, ficaram postados à porta do recinto, pelo lado exterior.
A Entidade visitante trazia o semblante velado por singular melancolia, Os olhos antes brilhantes, traduzindo estranha ferocidade, se apresentavam baços, e, como se suportasse invisível fardo, caminhava tardo, com características mui diversas daquelas que ostentava até há poucos dias.
Tratado com carinho e respeito pelo venerável Benfeitor, foi convidado a sentarse entre nós, na condição de convidado especial.
—Tratamos aqui de dar prosseguimento ao exame dos problemas que dizem respeito a Henriette-Marie e ao seu perseguidor, que agora se encontra recolhido em recinto de Amor, sob guarda de devotados servidores do Bem. Não ignoramos que o irmão Teofrastus foi defrontado por surpresa dolorosa com o resultado da má aplicação do tempo, passando a experimentar desde então as consequências das atitudes espontaneamente tomadas. Sabendo-o ligado por profundos laços de afeição à sofredora, que lhe não pôde fruir a companhia nos últimos tempos, consideramos de bom alvitre conduzi-lo até onde ela se encontrava, de modo a concertar planos em relação ao futuro e sustar, em definitivo, as maquinações da criminalidade até agora em desdobramento.
—Mas, no momento — repostou o vingador, visivelmente conturbado —, não poderei aquiescer com quaisquer compromissos que objetivem afastar-me dos muros do meu campo de ação.
Estou vinculado a uma poderosa Organização, e embora em posição de comando sou, por minha vez, comandado.
—Insistimos em elucidar — replicou, seguro e calmo, o Benfeitor — que Chefe somente um há: Jesus, o Rei Sublime das nossas vidas, a Quem devemos as dádivas oportunas da evolução e do progresso atual, em nossa nova condição de viandantes da luz.
Entregando-nos ao Seu comando afável, nenhuma força possuirá meios de alcançar-nos, porque sombra alguma, por mais densa, conseguirá suplantar a luz mais insignificante, submetendo-a...
— Somos, porém — revidou, algo indeciso —, doze Mentes Dominadoras, que nos encontramos submetidos a uma equipe de dez Magistrados que habitam Regiões Infernais, onde os mínimos desvios da Justiça recebem longas punições. Constituímos o grupo dos Doze... Na aplicação do nosso código selecionamos criminosos que alcançam, de nossas mãos, as primeiras correções, após o que são conduzidos para os presídios próprios, nas furnas, onde levantam as construções da Cidade da Flagelação... Ligamo-nos por processo mental especializado e frequentemente somos convidados, por nossa vez, à prestação de contas, em minudentes relatórios verbais que são fiscalizados por técnicos competentes e aparelhos sensíveis. Além disso, as minhas próprias razões me impedem tudo abandonar, para deixar-me arrastar por sentimentalismos mórbidos, renegando à felicidade em que me comprazo, sem conhecer, evidentemente, o que se espera de mim. Tudo me é muito fácil: bastar-me-á arrancar Henriette-Marie da masmorra carnal e retê-la comigo...
— E olvida o amigo — explicou o irmão Glaucus — que desencarnando a nossa irmã, por constrição obsessiva, ela escapará das vossas mãos, por ter sido apressada a sua partida, sem que se possa responsabilizá-la por isso? Ignorais exatamente as «leis de fluídos» e os processos de «sintonia»? Esqueceis-vos de que toda vítima libra acima dos seus algozes? Além disso, consideremos que não podemos desprezar a opção do Senhor: isolá-la da vossa interferência por processos que nos escapam à sagacidade, mas que pertencem à sabedoria.
Sim, não ignoro — aquiesceu —, mas a conjuntura que se me apresenta é grave... Amo-a, sempre a amei. Na impossibilidade de possuí-la, como privar-me do seu amor? — Deixando-vos possuir — redarguiu, ameno, o Benfeitor. — O amor é concessão que se manifesta com mil faces. Não podendo ser-lhe o esposo, conseguireis ser o amado, no seio materno, na condição de filho da alma e do coração. Fruir-lhe-eis a ternura das mãos e sugareis o leite vital do seu seio. Estareis no calor da sua devoção e os vossos olhos se demorarão mergulhados na luminosidade dos olhos que amam. Permutareis a grande noite da soledade pelo demorado meio-dia da convivência.
Transfundireis todo sentimento de amargura em expressão de dependência e fé. Derramareis o vaso do ódio, que se converterá em adubo de produção, no solo da compreensão e da afetividade. Por década de distância, um tempo sem fim de presença, de imorredoura constância.
— E a lepra? — argúiu.
— A lepra de que parece revestida — elucidou o Amigo Espiritual — é enfermidade simulacro, produzida pelas descargas constantes do seu perseguidor desencarnado. Não desconheceis, amigo Teofrastus, o que conseguem as forças fluídicas desencadeadas sob o impacto do ódio, e a absorção em longo processo obsessivo das energias deletérias. De mente consumida pela perturbação que a si mesma se vem impondo, através das constantes transgressões às Leis de Justiça, nossa irmã sincronizou com o verdugo que a vítima e, amolentada pelas vibrações hipnóticas do seu antagonista, começou a experimentar as falsas impressões do Mal de Hansen — conforme desejo do seu inimigo —, sendo atirada ao presídiohospitalar em que vive, em quase total abandono, para que a vindita se coroe da resolução final, que o sicário aguardava: o suicídio.
Estamos, aliás, informados de que tal plano fora trabalhado pelo próprio amigo Teofrastus, que atenderá à. consulta que lhe formulara o algoz de Henriette, em espetáculo, no Anfiteatro, após ouvi-lo, em ocasião passada, anos atrás...
— Quê? — Gritou o infortunado.
— Então, serei eu, o sabujo que ofereceu ao caçador a pista da destruição da vítima?
— Sim, meu amigo — afirmou, o prestimoso Mentor. — Por isso só à Justiça Divina compete os casos da justiça. Disse Jesus: «Vós julgais segundo a carne (ou a aparência), eu a ninguém julgo», por conhecer Ele o nosso ontem e as perspectivas do nosso amanhã.
Todo agressor inconsciente cai hoje ou mais tarde nas armadilhas da agressão.
— Sob carinhosa assistência de passistas especializados da nossa Esfera, e afastado para tratamento o seu perseguidor, Ana Maria recobrará forças psíquicas e orgânicas, logo mais, recuperando-se algo rapidamente. A enfermidade regridirá em caráter miraculoso e ela conhecerá um pouco de lenitivo e esperança através do braço amigo de alguém que, também, se lhe vincula, distendendo na sua direção a aliança nupcial.
Mergulhareis, logo após, o amigo Teofrastus e o vosso cômpar, para, no longo caminho a percorrer através da experiência carnal, tudo recomeçar, refazer, regularizar.
— E os meus débitos — interrogou — como me serão cobrados? Não posso desconhecer a extensão dos meus atos e sei das consequências que eles devem acarretar.
— Os nossos erros — referendou o irmão Glaucus — hoje ou mais tarde nos voltam em caráter de necessária reparação. Adiar o reajustamento significa, também, aumentar os gravames que o tempo lhes acrescentará, impondo-nos mais elevada dose de sacrifício. Além disso, não nos cabe a presunção de antecipar o porvir. Entregues ao Senhor, o Senhor cuidará de nós, abrindo-nos os depósitos do Seu amor e enriquecendo-nos com as Suas bênçãos múltiplas. Para Ele não há perseguidor nem perseguido, mas Espíritos enfermos em estados diferentes, caminhando por vias diversas na direção do Bem Infinito. Não ignoramos que o mal é somente ausência do bem e que à chegada deste aquele esmaece, porquanto só uma força existe: a do Amor triunfante!
Aqueles conceitos penetravam-nos a todos, especialmente no Chefe do Anfiteatro, que se mostrava cada vez mais triste, mais infeliz, não ocultando o sofrimento que o libertava dele mesmo, escravo das paixões séculos a fio.
— Mas isto aqui é uma Casa Espírita! Sou uma das Mentes encarregadas de combater a peçonha cristã, que teima em reaparecer com indumentária nova.
Detestemos esses aventureiros do corpo, que se atrevem invadir os domínios, que somente pertencem aos mortos.
— Equivocam-vos, amigo — obtemperou amàvelmente o irmão Glaucus. — Não há mortos, e sim vivos. Encarnados ou desencarnados somos todos Espíritos imortais, transitando numa ou noutra vibração, marchando, porém, na direção da imortalidade. O Cristianismo não teima em aparecer ou reaparecer: não desapareceu nunca, conquanto as interpolações e desrespeitos de que foi vítima através dos séculos. Refletindo o pensamento do Cristo é a esperança dos homens e o pão das vidas. Combatê-lo é envenenar-se; persegui-lo significa dilatar-lhe os horizontes que se perdem nas fronteiras do Sistema Solar.
Vã loucura da ignorância pelejar contra o conhecimento e da estultice investir contra a sabedoria... Jesus vive e vence, meu amigo. É tudo inútil e vós sabeis.
— Não o sei — replicou, já combalido — mas o sinto. Ele me persegue inexoràvelmente. Não me deixa repousar; tortura-me em cada um a quem torturo; desespera-me em todos aqueles nos quais descarrego a minha sanha.
Que tem Ele contra mim?
— Ou que tendes contra Ele? — retrucou o Benfeitor. — Jesus é o amor inexaurível: não persegue: ama; não tortura: renova; não desespera: apascenta! O amigo Teofrastus, sim, arvorou-se em Seu adversário e sofre as contingências da alucinação e da procrastinação do momento de entregar-se-lhe em total doação.
Não te-mais, pois. A verdadeira coragem se manifesta, também, quando o ser reconhece o que é e o que possui, refazendo o caminho por onde deseja seguir, reunindo forças para retemperar o ânimo, e, qual criança, aprender o amor desde as suas primeiras lições.
— Temo, sou constrangido a confessar.
— O temor descende da consciência em culpa.
— Tenho sido a expressão da força e da violência e aprendi a não confiar.
—Jesus, porém, é a expressão do amor e sua não-violência oferece a confiança que agiganta aqueles que O seguem em extensão de devotamento.
— Temo, porque creio...
E crendo, sofro. Em todo o pelejar, mesmo odiando, nunca O bani da minha mente.
— Nem poderíeis fazê-lo.
O ódio é o amor que enlouqueceu...
— Nos primeiros dias do século atual fui convocado a abandonar o solo da França para vir aqui operar, tendo em vista a transformação que se realizava neste país, ante o reverdescér do pensamento cristão, amortecido em toda a parte e revivente aqui pelo contacto com a - nossa Esfera de vida. Nosso grupo deveria encarregar-se de sitiar a mediunidade e os novos cruzados do Cristianismo, instaurando tribunal de punição e trazendo-os a nossos recintos, quando semidesligados pelo sono, para que as visões dos nossos cenários e das nossas operações diversas pudessem infundir-lhes medo ou sedução, deixando nas suas lembranças as sementes do desejo, no culto do sexo, da ambição, no culto do dinheiro, da prepotência, no culto da vaidade. Em diversas sessões Espíritas, emissários nossos têm procurado penetrar, com o objetivo de semear ali a discórdia, multiplicar as suspeitas, irradiar o azedume e difundir a maledicência... E quando as circunstâncias facultam, mantemos o comércio pela incorporação sutil ou violenta, conforme o paladar da leviandade dos membros da Colmeia... Sem dúvida que temos conseguido boa colheita, principalmente no campo das agressões morais de vária ordem, em que os falsa-mente bons e os aparentemente honestos oferecem seminário favorável para as nossas mudas, que logo medram exuberantes, multiplicando-se facilmente. É evidente que o nosso acesso não se faz em todos os recintos, porque, alertados, muitos se mantêm em atitude de vigilância, coibindo-nos a interferência.
Além disso, os seguidores do Cordeiro conseguem dispersar os nossos agentes, utilizando-se de processos muito eficientes. Como me poderei agasalhar numa Casa que tal? Como me liberarei dos compromissos com aqueles aos quais me encontro vinculado?
— Ouvimos-vos com atenção — respondeu o Benfeitor, lúcido e claro. — Embora não fossemos colhidos de surpresa ante o vosso informe, porque conhecíamos as tarefas do irmão Teofrastus, elucidamos-vos que esta Casa dispõe de defesas construídas em muitas décadas de santas realizações, merecendo do Plano Divino carinhosa assistência. Resguardada das forças agressoras, é agasalho e hospedagem abertos aos que sofrem, sob a direção do Cristo. Não há porque considerar compromissos senão com a Verdade.
Os outros não podem ser denominados compromissos, mas conchavos da ignorância, destituídos de qualquer valor, pelos propósitos infelizes de que se revestem. Nossa destinação, meu amigo, é a Verdade. Como Jesus é o Caminho, não mais recalcitremos.
Todos nos encontrávamos mergulhados na mais comovente concentração.
O duelo verbal entre a impostura e a verdade convincente aclarava-nos o espírito, alargando as percepções em torno da vitória dos altos propósitos e dos superiores desígnios.
A um sinal quase imperceptível, o irmão Saturnino deixara antes o recinto, atendendo à orientação do Benfeitor Espiritual.
Naquele momento em que o silêncio se fizera natural e quando a Entidade meditava, dominada por compreensível inquietação do espírito em febre, retornou o Guia Amigo, trazendo, adormecida, qual criança agasalhada no afeto paternal, Ana Maria, que foi colocada carinhosamente sobre alvo leito, reservado e vazio no recinto, desde o começo da entrevista.
Vendo-a, de inopino, o Dr. Teofrastus foi acometido de angustiante expectativa. O Benfeitor vigilante acalmou-o com gesto delicado, após o que se aproximou da jovem adormecida e, tocando-lhe as têmporas, despertou-a com voz amiga e confortadora.
A leprosa circunvagou o olhar em torno, e, devida-mente acalmada pelo Instrutor, reconheceu o Dr. Teofrastus. O olhar adquiriu brilho especial, alongou os braços e, ante a aquiescência do Mentor, o antigo Mago estreitou-a, com imensa ternura, envolvendo-a em ondas de afetividade e carinho.
— Quanto esperei por este momento! — aludiu o antigo vingador.
— Também eu, também eu! — retrucou a sofredora, em lágrimas.
— Perdoa-me, Henriette...
— Perdoar-te? Nosso dorido amor é maior do que tudo e por si só anula todas as aflições antigas. Sou eu quem te roga, Teo: ajuda-me e não me abandones mais! Eu sou a esperança quase morta e tu és o hálito do meu reviver. Não me negues a migalha da tua presença, haja o que haja. Levantemo-nos do torpor que nos aniquila a longo prazo e roguemos a Deus que nos resguarde de nós mesmos e nos ajude, a partir de hoje.
Não suportaria mais viver sem ti. Sonho, Teo, isto é um sonho! Estamos numa esfera de sonho em que me apareces desfigurado e triste. Porque demoraste tanto?
— Perdoa-me! Por mais te buscasse, jamais reencontrei-te.
Não, não nos separaremos mais, nunca mais. Juro! Renunciarei a tudo, para experimentar a ternura das tuas mãos e a meiguice dos teus olhos. Ouve, Henriette-Marie, o que te irei falar... Escuta com atenção...
Não pôde prosseguir.
O choro convulsivo desatou-lhe n"alma e ele recuou, vencido, cambaleante, aos gritos, em atroada desesperadora.
O Mentor amoroso aproximou-se e exortou-o ao equilíbrio. Falou-lhe da significação do momento e das poucas reservas que possuía Ana Maria, recémlibertada da constrição psíquica do seu antagonista e necessitada de estímulo para aceitar os novos encargos de esposa e não, logo se lhe refizessem os departamentos fisiomentais, com vistas ao futuro.
A palavra oportuna ajudou o atormentado a recompor-se.
—Filha, hoje tem início etapa nova na jornada do teu espírito eterno. Embora o passado não esteja morto, todo ele deve ser esquecido. A construção do amanhã tem início agora. Sombras e receios, mágoas -e recriminações devem ser superados e a eles se faz necessário antepor esperança e paz, fé e trabalho na reconstrução da felicidade que tem demorado. Muitas vezes, ou quase sempre, quanto nos ocorre é consequência do que realizamos.
O nosso teto de albergue deve possuir sem dúvida segurança e estabilidade para não ruir sobre as nossas cabeças. Longo tem sido o teu peregrinar e demorado o teu prazo de aflição corretiva. Jesus, porém, que não deseja a «morte do pecador», mas a sua redenção, faculta-nos, a todos, ensejos de resgate luminoso.
Fez uma pausa oportuna.
A entidade acompanhava as palavras felizes do Benfeitor, buscando imprimi-las no imo dalma. Após breve silêncio, este prosseguiu: — O teu sonho de amor, esperado por largo período de tempo, que agora já passou, se concretizará... O nosso Teofrastus necessita, também, de recomeçar a experiência, a benefício dele mesmo. Entre ambos, porém, medeia o impedimento dos estados em que permanecem.
Enquanto, filha, jornadeias no corpo carnal, o nosso amigo se encontra libertado dos fluídos fisiológicos. Ante, pois, a impossibilidade de uma comunhão matrimonial que a vida lhes não pode oferecer de momento, solicitamos que lhe ofertes a intimidade orgânica para que ele recomece o caminho, na condição de filho da tua devoção e do teu carinho...
— Que se faça a vontade de Deus!
— Tu, porém, filha, deverás oferecer ensejo a outro ser que ama e padece, esperando compreensão e piedade.
Trata-se de Jean Villemain, o infeliz sacerdote que, no pretérito, desencadeou todas estas aflições... — A ele, eu me recuso ajudar —, replicou a jovem. — Odeio-o com todas as forças. Como lhe poderia ser mãe?
— O ódio, filha — considerou o Benfeitor —, somente desaparece na pira do sacrifício do amor. É certo que ele te fez sofrer em demasia; no entanto, a tua felicidade que agora tem início é, de certo modo, facultada porque ele te libera dos vínculos da rebeldia com os quais se ata a ti. Afastado para tratamento, sentirás o benefício da saúde e da paz em retorno. Negar-lhe-ás a sublime oferta do recomeço, que a ti a Misericórdia Divina, por sua vez, está concedendo? O teu seio, transformado em santuário maternal, receberá o amigo e o adversário e os terás como filhos diletos na forja do lar, sofrendo e amando, ajudando-os recíprocamente para que transformem os floretes do duelo em arados do amanho ao solo da esperança, em cujos sulcos sejam depositadas as sementes da paz.
— Jesus, embora nossa ingratidão, continua amando-nos. Quando na Cruz, conquanto escarnecido, esteve amando, e agora, apesar de propositadamente ignorado por milhões de seres, prossegue amando.
Sigamos-Lhe, filha, o exemplo, e transformemo-nos em célula de amor, a fim de que as nossas construções se assentem em alicerces de segurança.
— Se o meu amor pode beneficiar o Teo e a minha recusa a Jean pode ser fator de insucesso, em homenagem ao Amor de todos os Amores, aceito-o, também, como filho, e que Deus tenha piedade de nós...
O irmão Glaucus enlaçou a jovem mulher em terno abraço, e, tomando o Dr. Teofrastus no mesmo envolvente gesto, rogou ao Senhor que os abençoasse, felicitando-os com a concessão da união espiritual.
A jovem foi reconduzida de volta ao corpo, no Lazareto.
Depois de mais alguns estudos sobre a nova condição do irmão Teofrastus, este aproximou-se da porta e despediu os dois guardas, ficando combinado que ele se demoraria naquela Casa sob os auspícios dos 1nstrutores, até o momento em que seria encaminhado a uma Colônia preparatória para.
a reencarnação futura, mesmo porque outros trâmites no processo da desobsessão de Mariana requereriam sua presença.
Ante os sucessos daquela madrugada, o irmão Glaucus, sensivelmente comovido, orou a Jesus, em gratidão, e os trabalhos foram encerrados, depois do que, fomos reconduzidos ao lar.