Habituado ao não enfrentamento com o self, o ego camufla a sua resistência à aceitação da realidade profunda, elaborando mecanismos escapistas, de forma a preservar o seu domínio na pessoa.
Desse modo, podemos enumerar alguns desses instrumentos do ego, para ocultar-lhe a realidade, facultando-lhe a fuga do enfrentamento com o eu profundo, tais como: compensação, deslocamento, projeção, introjeção e racionalização.
Compensação Foi o admirável pai da Psicanálise individual, Alfred Adler, quem, percebendo que um órgão deficitário é substituído pelo seu par — um pulmão enfermo ou um rim doente —, estabeleceu que ocorre uma compensação correspondente na área psicológica.
Grandes ases da cultura física tornaram-se atletas, porque buscaram compensar a fragilidade orgânica, ou algum limite, entregando-se a extenuantes exercícios que lhes facultaram alcançar as metas estabelecidas. O mesmo ocorre nas artes, na ciência com muitos dos seus paladinos.
Essa compensação se enraíza nos fulcros de algum conflito, nos leva a exagerar determinada tendência como fenômeno inconsciente que nos demonstra o contrário.
O excesso de devotamento a uma causa ou ideia é a compensação ao medo inconsciente de sustentá-lo.
O fanatismo resulta da insegurança interior, não consciente, pela legitimidade daquilo em que se pensa acreditar, desse modo compensando-se.
Há sempre um exagero, um superdesenvolvimento compensador, quando, de forma inconsciente se estabelece um conflito, por adoção de uma crença em algo sem convicção.
O excesso de pudor, a exigência de pureza, provavelmente são compensações por exorbitantes desejos sexuais reprimidos e anelos de gozos promíscuos, vigentes no ser profundo.
Sem dúvida, não se aplica à generalidade das pessoas corretas e pudicas, mas àquelas que se caracterizam pelo excesso, pela ênfase predominante que dão a essas manifestações naturais.
Na compensação ocorre a formação de reação, que responde pela necessidade de um efeito psicológico contrário.
Desse modo, as atitudes exageradas em qualquer área camuflam desejos inconscientes opostos.
Nessa compensação psicológica, o ego exarcerbado está sempre correto e, sem piedade pela fragilidade humana, exprime-se dominador, superior aos demais, que não raro persegue com inclemência.
Na distorcida visão egóica, a sua é sempre a postura certa, por isso exagera para sentir-se aliviado da tensão decorrente da incoerência entre o ego presunçoso e o eu debilitado.
A compensação substituta — uma deficiência orgânica propele o indivíduo a destacar-se noutra área da saúde, sobrepondo a conquista de realce ao fator de limite — também transfere-se para o campo emocional, e o conflito de ordem psicológica cede lugar ao desenvolvimento de uma outra faculdade ou expressão que se pode destacar, anulando, ou melhor dizendo, escamoteando o ocasional fenômeno perturbador.
Graças a compensação substituta o ego se plenifica, embora tentando ignorar o desequilíbrio que fica sob compressão, reprimido.
Todavia, todo conflito não liberado retorna e, se recalcado, termina por aflorar com força, gerando distúrbios mais graves.
A conpensação egóíca é, sem dúvida, um engodo que deve ser elucidado e vencido.
Cada criatura é o que consegue e, como tal, cumpre apresentar-se, aceitar-se, ser aceito, trabalhando pelo crescimento interior mediante catarse, consciente dos conflitos degenerativos.
Todo esse mecanismo de evasão da realidade e mascaramento do ego torna a pessoa inautêntica, artificial, desagradável pelo irradiar de energias repelentes que causam mal-estar nas demais.
Deslocamento A consciência exerce sobre a pessoa um critério de censura, face ao discernimento em torno do que conhece e experiência, sabendo como e quando se pode fazer algo, de maneira que evite culpa.
Nesse discernimento lúcido, quando surge um impulso que a censura da consciência proibe apresentar-se sem reservas, o ego produz um deslocamento.
Freud havia identificado essa capacidade de censura da consciência, que situou como superego.
Quando se experimenta um sentimento de revolta ou de animosidade contra alguém ou alguma coisa, mas que as circunstâncias não permitem expressar, o ego desloca-o para reações de violência contra objetos que são quebrados ou outras pessoas não envolvidas na problemática.
Na antiga arena romana ou nos atuais ringues de boxe se traduzem esses sentimentos recalcados, contra a vítima momentânea, deslocando a fúria oculta, que se mantém contra outrem, nesse ser desamparado.
Subconscientemente, a pessoa que apoia o dominador e pede-lhe para extinguir o contendor, mantém hostilidade que reprime, impossibilitada pelas convenções sociais ou circunstânciais de exteriorizá-la.
A hostilidade da criatura leva-a a reagir sempre através de motivos reais ou imaginários.
Um olhar, uma palavra malposta, uma expressão destituída de mais profundo significado, são suficientes para provocar um deslocamento, uma atitude agressiva.
Face a essa postura, há uma tendência para camuflar os significados perturbadores da vida.
Ao reprimi-los, adota-se um comportamento agradável para o ego.
Esse mecanismo é de fácil identificação, pois que o ego procura uma vivência de qualquer acontecimento sem sentido, para ocultar um grave problema que não deseja enfrentar conscientemente.
Essa reação pode decorrer, também, de um ambiente hostil no lar, onde a pessoa se acostumou a deslocar os sentimentos que cultivou, na convivência doméstica, e não deseja reconhecer como de natureza agressiva.
Somente uma atitude de autorreflexão consegue despertar o indivíduo para a aceitação consciente do seu self, sem disfarce do ego, não deslocando reações para outrem e lutando contra as perturbações psicológicas.
Projeção A repressão inconsciente dos conflitos da personalidade leva o ego a projetá-los nos outros indivíduos, nas circunstâncias e lugares, evadindo-se à aceitação dos erros e da responsabilidade por eles.
Se tropeça em uma pedra na rua, a culpa é da administração pública municipal; se choca com outrem, a culpa é dele...
A projeção alcança reações surpreendentes.
Um jovem esbarrou noutro na rua e reagiu, interrogando: Você é cego?", ao que o interlocutor respondeu: Sim, sou cego. " Atropelara o invidente e se permitia o luxo de fazer-se vítima.
Há uma natural e mórbida tendência no ser humano de ignorar certas deficiências pessoais para projetá-las nos outros.
Toda vez que alguém combate com exagerada veemência determinados traços do caráter de alguém, projeta-se nele, transferindo do eu, que o ego não deseja reconhecer como deficiente, a qualidade negativa que lhe é peculiar.
Torna a sua vítima o espelho no qual se reflete inconscientemente.
Há uma necessidade de combater nos outros o que é desagradável em si.
Pessoas existem que se dizem perturbadas pelas demais, perseguidas onde se encontram, desgostadas em toda parte, revelando caráter e comportamento paranoicos, assim projetando a animosidade que mantêm por si próprias nos outros indivíduos, sob a alegação de que não os estimam, e tentam interditar-lhes o passo, o avanço.
A projeção é facilmente identificável e pode ser combatida mediante honesta aceitação de si mesmo, de como se é, trabalhando-se para tornar-se melhor.
Introjeção Outro mecanismo de disfarçe do ego é a introjeção, que se caracteriza como a conscientizaçào de que as qualidades das pessoas lhe pertencem.
Os valores relevantes que são observados noutrem, são traços do próprio caráter, constituindo uma armadilha —defesa do ego.
A pessoa introjeta-se na vida dos heróis aos quais ama e com quem se identifica, aceitando ser parecida com eles.
Assume-lhes a forma, os hábitos, os traquejos e trejeitos, o modo de falar e de comportar-se...
Pode acontecer também que se adote o comportamento infeliz de personagens dos dramas do cotidiano, das películas cinematográficas, das telenovelas, das tragédias narradas pelos periódicos.
Na atualidade, ao lado dos inúmeros vícios sociais e dependências dos alcoólicos, tabaco e drogas outras, há, também, a dependência das telenovelas, mediante as quais as personagens, especialmente as infelizes, são introjetadas nos telespectadores angustiados.
Essa morbidez deve ser liberada e o indivíduo tem a necessidade, que lhe cumpre atender, de assumir a realidade interior, identificando-se numa harmoniosa combinação entre o self e o ego, mantendo o equilíbrio emocional através do exercício de autodescobrimento, eliminando as ilusões, os romances imaginários, pois que tais mecanismos de fuga, não obstante o momentâneo prazer que dispensam, terminam por alienar o ser.
Racionalização A racionalização é o mecanismo de fuga de maior gravidade do ego, por buscar justificar o erro mediante aparentes motivos justos, que degeneram o senso crítico, de integridade moral, assumindo posturas equivocadas e perniciosas.
Sempre há uma razão para creditar-se favoravelmente os atos, mesmo os mais irrefletidos e graves, através das razões apresentadas, que não são legítimas.
Essa dicotomia — o que se justifica e o que se é — torna-se um mecanismo perturbador, por negar-se o real a favor do que se imagina.
As razões legítimas dos hábitos e condutas são mascaradas por alegações falsas.
Por não admitir o que se prefere fazer ou ser, e se tem em conta de que é errado, assume-se a máscara egóica da racionalização.
Essa falta de honestidade, como expressão falsa do eu, torna-se um desequilíbrio psicológico, que termina em perda de sentido existencial.
Ninguém pode mudar um mal em bem, apenas porque se recusa a aceitar conscientemente esse mal, que lhe cumpre trabalhar para melhor, ao invés de ignorá-lo ou justificá-lo com a racionalização.
A tendência humana da escolha é sempre direcionada para o bem.
Assim, há uma repulsa natural pelo mal, de que a racionalização tenta alterar a contextura, a fim de apaziguar a consciência, gerando a perturbação psicológica.
Essa luta, que se trava entre o intelecto e a razão, busca justificativa para tornar o mal em um bem, que é irreal.
Desse modo, quando a pessoa age erradamente e a razão lhe reprocha, o intelecto busca uma alegação justa para reprimir o bem e prossegui na ação.
A execução supera a razão e a mente justifica o mal, do qual surgirá um bem, para si ou para outrem, como racionaliza o ego em desequilíbrio.
Somente uma vontade severa e nobre, exercendo sua força sobre os mecanismos de evasão, para preservar o equilíbrio entre a razão e o intelecto com a emoção do bem e do justo, propondo o ajustamento psicológico do ser.
Fora disso, tais mecanismos de camuflagem da realidade conduzem à alienação, ao sofrimento.