Em Busca da Verdade

CAPÍTULO 6

CONVIVER E SER



Einegável que o Evangelho de Lucas possui uma beleza especial, que o torna um dos mais belos livros que jamais se escreveram.

Quando Jesus se dirigia a Jerusalém, nessa subida narrou 19 parábolas, que representam um dos mais belos e atuais estudos do comportamento humano diante da consciência enobrecida e dos deveres para com o próximo.

É chamado de O Evangelho da misericórdia e da compaixão.

Misericórdia e compaixão constituem desafiadores termos da equação existencial humana.

Misericórdia, porém, que seja mais do que piedade, também alegria no júbilo do outro, satisração ante a vitória do lutador e tudo quanto se puder fazer, que seja realizado com paixão, com um devotamento superior rico de bondade e de enternecimento...

O capítulo XV, que tem merecido nossas reflexões na presente obra, narra as três parábolas dos perdidos, em uma análise das necessidades emocionais do ser diante das ocorrências do cotidiano, dos aparentes insucessos e perdas, que devem stituir motivo de coragem e de busca, jamais de recuo ou de desistência.

... E Ele narrou-as, porque, acossado pela hipocrisia farisaica dos seus ferrenhos inimigos, que O acusavam de conviver com os miseráveis: meretrizes, ébrios, poviléu, doentes e excluídos, não teve outra alternativa, senão tentar despertar as suas consciências ignóbeis adormecidas para o bem e para a solidariedade.

Caluniado de beberrão e comilão, porque se alimentava com os infelizes, jamais se justificou, isto porque não tinha sombra, era numinoso.

Entretanto, fazia-se mister legar-lhes o tesouro terapêutico da misericórdia, a fim de que entendessem que também eram esfaimados de luz e de amor, debatendo-se nos conflitos hediondos em que se refugiavam.

Preferiam não entender que Ele é a luz do mundo e, à semelhança do Sol que oscula a corola da flor sem perfumarse, assim como o pântano apodrecido sem macular-se, pairava acima das humanas misérias, erguendo os tombados e evitando que descessem a abismos mais profundos, aqueles que se lhes encontravam à borda...

Preocupavam-se, os seus infelizes acusadores, em manter os hábitos e a tradição, sempre exteriores, com o mundo íntimo em trevas, comprazendo-se em vigiar os outros, descarregar as culpas e mesquinhezes naqueles que invejavam porque não eram capazes de se assemelhar ou pelo menos de aproximar-se-lhes moralmente...

Captando-lhes os pensamentos hostis e despeitados, ouvindo-lhes as acusações, o Homem Integral, compadecendo-se da sua incúria, expôs a Sua tese, através de interrogações sábias e respostas adequadas: Qual de vós é o homem que, possuindo cem ovelhas e tendo perdido uma delas, não deixa as noventa e nove no deserto, e não vai em busca da que se havia perdido até achá-la? Quando a tiver achado, põe-na cheio de júbilo sobre os seus ombros e, chegando a casa, reúne os seus amigos e vizinhos e diz-lhes: Regozijai-vos comigo, porque achei a minha ovelha que se havia perdido.

Digo-vos que assim haverá maior júbilo no céu por um pecador que se arrepende, do que por noventa e nove justos, que não necessitam de arrrependimento.

E prosseguiu, intimorato e intemerato: Qual a mulher que, tendo dez dracmas e perdendo uma, não acende a candeia, não varre a casa e não a procura diligentemente até achá-la? Quando a tiver achado, reúne as suas amigas e vizinhas, dizendo: Regozijai-vos comigo, porque achei a dracma que eu tinha perdido.

Assim, digo-vos, há júbilo na presença dos anjos de Deus por um pecador que se arrepende. (versículos 4:10) As profundas parábolas dos perdidos e achados são o prólogo da extraordinária narrativa do Pai que tinha dois filhos...

Nas três narrativas, o inconsciente coletivo libera inúmeros arquétipos ocultos que se fazem presentes, de maneira clara, como acompanhamos no texto, quando o homem e a mulher são apresentados, respeitando o anima-us, para servir de base ao estudo psicológico do ser humano que, embora a diferença de sexo, as emoções se equivalem, as aspirações são idênticas, as ansiedades e alegrias são características do seu comportamento.

A saúde, a paz de espírito, o equilíbrio emocional e psicológico, a harmonia doméstica, a confiança, a alegria de viver podem ser considerados ovelhas e dracmas valiosas que todos estimam e lutam por preservar.

Nada obstante, as circunstâncias do trânsito carnal, não poucas vezes, criam situações difíceis e perdem-se alguns desses valores ou, pelo menos, um deles, essencial à vitória e ao bem-estar.

É sábio quem, não considerando os outros tesouros, empenha-se por buscar o que foi perdido, lutando com tenacidade até encontrá-lo e, ao tê-lo novamente, quanto júbilo que o invade! Irrompe-lhe a satisfação imensa, o desejo de anunciar a todos: amigos, vizinhos e conhecidos a alegria de que se encontra tomado pela recuperação do que havia perdido e voltou a fazer parte da sua existência.

Todos os indivíduos conduzem no inconsciente individual a sua criança ferida, magoada, que lhe dificulta a marcha de segurança na busca da paz interior, da saúde e da vitória sobre as dificuldades.

Essa criança ferida é o ser humano perdido no deserto, ou na casa, que necessita ser varrida, a fim de retirar as camadas de ressentimentos que impedem a claridade da razão, do discernimento.

Mediante a reflexão e a psicoterapia equilibrada, a criança ferida, libera o adulto encarcerado que não se pode desenvolver e ocorre uma integração entre a sombra e o ego, proporcionando alegrias inenarráveis ao Self, que aspira à perfeita junção das duas fissuras da psique.

Jesus conhecia essa ocorrência, identificava os opositores internos, e por isso trabalhava com as melhores ferramentas da bondade e da compaixão, que Lhe constituíam recursos psicoterapêuticos para oferecer à massa dos sofredores e, ao mesmo tempo, dos adversários soezes que O não conseguiam perturbar.

As três parábolas da esperança, que são os tesouros arquetípicos existentes no inconsciente de todos os indivíduos, têm urgência de ser vivenciadas, seja num mergulho de reflexão em torno da existência de cada qual, seja pela observação dos acontecimentos naturais do dia a dia, trabalhando os conflitos que decorrem das perdas para que sirvam de alicerces para as resistências na busca para o encontro.

A sociedade é constituída em todos os tempos por pessoas como aquelas às quais Jesus deu prioridade, comendo e bebendo com elas, isto é, sentando-se à mesa da fraternidade, alimentando-se sem alarde e sem preocupações exteriores das observancias israelitas, demonstrando sua preocupação maior com o interior, com a psique, do que com o exterior, o ego, a aparência dissimuladora.


O número de transtornados psicologicamente é muito grande, em face da preservação da criança ferida em cada um,

dos complexos narcisistas e de inferioridade, do egoísmo e da presunção que impedem o indivíduo de autorrealizar-se.

Sempre está observando o que não tem, o que ainda não conseguiu, deixando-se afligir pela imaginação atormentada, fora da realidade objetiva, perdendo-se...

O encontro somente será factível quando se resolver por autopenetrar-se, por buscar identificar a raiz do drama conflitivo e encorajar-se a lutar em favor da libertação, regozijando-se com cada encontro, cada realização dignificante.

Quem teme o avanço e somente observa a estrada, permanece impossibilitado de conquistar espaços e alcançar o cume da montanha dos problemas desafiadores.

Passo a passo, etapa a etapa, vão ficando para trás os marcos das vitórias, pequenas umas, significativas outras, facultando a integração da própria na Consciência Cósmica sem a perda da sua individualidade.


Cair em si

As perdas têm uma trajetória na psique humana, desde os primórdios da evolução, quando ocorreu a saída do paraíso, a perda da inocência, ante os gravames das castrações culturais, religiosas, sociais, que geraram o mascaramento da necessidade substituída pela dissimulação, dando surgimento aos primeiros sinais de insegurança e aos registros de criança ferida no indivíduo.


Embora reconhecendo-se problematizado, esse indivíduo ainda hoje foge da responsabilidade do enfrentamento das culpas e desafios, normalmente transferindo-a para os demais, que são

— justamente considerados como inimigos e perturbadores da sua paz íntima.

Poderá, realmente, alguém de fora, criar embaraços ou sombrear a luz interna, a paz de cada qual, trabalhada na consciência tranquila em torno dos deveres retamente cumpridos? É claro, que não.

No entanto, torna-se mais fácil ao ego transferir responsabilidades do que enfrentar a sombra devastadora a que se acostumou.

O estágio da doença prolongada gera uma aceitação da circunstância com certa dose de alegria, porque o doente não trabalha, mas dá trabalho, não se preocupa com as ocorrências deixando que outrem as assuma, permanecendo num estado infantil de dependência, de lágrimas e de queixas, com que se compraz, enquanto se aflige...

A conscientização da culpa, assim como das necessidades de serem saudáveis, são sempre retardadas pelos Espíritos enfermos, que se refugiam nas decantadas fraquezas de que se dizem possuídos, atribuindo aos lutadores incansáveis forças que não lhes foram concedidas, como se houvesse privilégio entre as criaturas, aquelas que desfrutam de benesses imerecidas e aqueloutras que são as castigadas pela vida, portanto, dignas de piedade e de amparo.

O desenvolvimento psicológico é contínuo, exceto quando impedido pela acomodação do ego dominador.

O Evangelho de Jesus, particularmente as parábolas narradas por Lucas, são, indubitavelmente, um tratado valioso de psicoterapias espirituais, morais, sociais e libertadoras para todos os indivíduos que as examinem em todos os tempos depois de escritas...

Falando através de parábolas, Jesus utilizou-se dos mais valiosos recursos orais que existem, porque os arquétipos vivenciados encontram-se em todos os indivíduos, ocultos ou não, e que, através dos diferentes períodos, sempre se expressam com caráter de atualidade.

Na parábola do pai misericordioso, quando o filho ingrato experimenta miséria econômica, moral, social pelo desprezo de que é objeto, após reflexionar muito na situação de penúria em que se encontrava, caindo em si resolveu buscar o pai que atendia aos seus empregados com nobreza, optando por não mais ser aceito, nem sequer como filho, porque não o merecia, mas como servo...

E assim o fez, sendo recebido, não como empregado, mas como filho de retorno ao coração afetuoso.

Foi necessário cair em si...

Cair em si foi o triste despertar de Judas ante a injunção da culpa, desertando mais lamentavelmente através do suicídio, num surto perverso de depressão...

Cair em si foi o momento em que Pedro conscientizou-se após as negações, redescobrindo o Amigo traído e abandonado, oferecendo, então, a existência inteira, a partir dali, consciente e lúcido para recuperar-se...

Cair em si foi a oportunidade que se permitiu a mulher equivocada de Magdala, que se transformou interiormente, a ponto de haver sido escolhida para ser a mensageira da ressurreição...

Cair em si deve constituir-se o passo inicial a ser dado por todos os doentes da alma, por aqueles que se comprazem nos conflitos e que se recusam as bênçãos da saúde real, que estorcegam no sofrimento optando pela piedade e comiseração ao invés do apoio do amor e da fraternidade...

A conquista da autoconsciência tem início nesse cair em si, graças ao sofrimento experimentado, que é o desencadeador da necessidade de encontro, de autoencontro profundo.

O sofrimento consciente que faculta reflexões, convida, normalmente, à mudança de comportamento, porque expressa distonia na organização física, emocional ou psíquica que necessita de ajustamento.

Essa experiência evolutiva conduz com segurança ao encontro com o Cristo interno, ajudando-o a ampliar as suas infinitas possibilidades de crescimento e de libertação.

Encarcerado no egoísmo e vitimado pelas paixões ancestrais, o homem de todos os tempos padece a injunção da ignorância dos males que o visitam, que nele mesmo se encontram, procurando mecanismo de evasão e justificativas irreais, para evitar-se o enfrentamento, a busca real e necessária do Si.

Um número expressivo de problemas emocionais que se encontram na criança ferida, que se sente, mesmo na idade adulta, desamada e injustiçada, pode ser corrigido quando o sofrimento deixa de ser manifestação de revolta para tornar-se viagem na direção da autoconsciência, através da qual consegue compreender as ocorrências humanas sem acusações nem desforços.

Provavelmente, os pais ou educadores que se encarregaram de conduzir e orientar os passos iniciais da criança, foram, a seu turno, vítimas da mesma injunção decorrente da ignorância dos seus ancestrais, que se comportaram com impiedade e indiferença, negligenciando os deveres e deles exigindo demasiadamente...

Não será justo, que o mesmo painel de amarguras seja transferido para a outra geração, nesse círculo vicioso que tem de ser interrompido pelo despertar da consciência.

Para que isso ocorra, no entanto, é necessário que cada qual caia em si, analisando com tranquilidade as suas dificuldades emocionais e trabalhando-as com dedicação, a fim de serem reformuladas e revivenciadas.

Noutras vezes, quando a ferida é muito profunda, torna-se necessária a psicoterapia especializada, a fim de levar o paciente a reviver os momentos angustiosos que foram asfixiados pelo medo, submetidos aos impositivos da prepotência dos adultos, perturbando o desenvolvimento psicológico.

Mediante a análise de cada sombra dominadora, será projetada a luz do Self em busca da integração, favorecendo o amadurecimento emocional do paciente e concedendo-lhe ensejos de recuperação e de alegria de viver.

Essa psicoterapia levará à catarse de todos os conflitos que permanecem ditatorialmente governando a existência quase fanada, facultando que, por intermédio das associações, abram-se horizontes adormecidos e surja o sol do bem-estar e da harmonia interior.


Já não lhe será necessário o refúgio infantil da lamentação nem da acusação, mas a lucidez para compreender o sucedido,

facultando-se renovação e entusiasmo nos enfrentamentos que proporcionam a descoberta da alegria.

A tristeza que, periodicamente, assalta a casa emocional do ser humano não é negativa, quando se apresenta em forma de melancolia, por falta de algo, por desejo de conseguir-se alguma coisa não lograda...

Essa expressão da emoção vibrante caracteriza o bom estado de saúde mental, porque é uma fase de curta duração, abrindo campo para novas percepções dos valores mais elevados que não estão sendo considerados e logo se transformam em recursos portadores de bem-estar.

Nada obstante, a experiência deve ser de breve duração ou vigência, a fim de não criar um clima psicológico doentio que venha a transformar-se em condição patológica.

Somente as pessoas normais, em equilíbrio, experimentam as várias emoções que constituem o painel da sua realidade emocional.

Saúde e bemestar sustentam-se nos alicerces das experiências diversificadas vividas pelo indivíduo em equilíbrio e harmonia.

Ninguém espere felicidade como uma horizontal assinalada somente por alegrias e ocorrências satisfatórias, que não existem de maneira permanente, mas como uma grande estrada sinuosa, com altibaixos, sendo que a próxima descida jamais deve atingir o nível inicial de onde se começou a marcha...

Nas duas parábolas das perdas da ovelha e da dracma, enfrenta-se uma situação muito delicada, que é, no primeiro caso, deixar-se todo o rebanho, a fim de ir-se buscar a extraviada, ou preocupar-se, no segundo caso, exclusivamente com a moeda que desapareceu...

Quando ocorre um problema no comportamento emocional, como se fora uma ovelha que se desgarra do conjunto psicológico, a necessidade de trabalhar-se a sua falta e encontrar-se a melhor solução, não exige que se distraia das outras faculdades, de modo a não vir o desfalecimento do entusiasmo e da alegria de viver.

As demais ovelhas no deserto, normalmente estão guardadas por cães pastores que se encarregam de mantê-las unidas, enquanto não chega o condutor...

De igual maneira, é necessário que a vigilância interior, o cão atuante, esteja cuidando dos demais valores, a fim de que a harmonia do conjunto não seja perturbada, e, ao encontrar o perdido, realmente o ser se permita invadir pelo regozijo, a todos comunicando, mesmo que, sem palavras, o júbilo de que se encontra possuído.

Todos necessitam de vivenciar, vez que outra, alguma perda, a fim de melhor valorizar o que possui.

Enquanto se encontram em ordem os valores, as emoções seguem o curso harmônico das ocorrências, o Self acomoda-se à sombra e às injunções do momento.

Um choque, um acontecimento representativo de perda produz uma reação emocional correspondente à qualidade do perdido, ensejando a busca, a reconquista do que se possuía e agora se transforma num valor cuja qualidade não era conhecida, porque existia e estava à disposição.

É comum afirmar-se com certa razão, que somente se valoriza algo quando se o perde.

É certo que há exceções, no entanto, diante dos problemas humanos, os apegos às coisas levam o indivíduo a desconsiderar todos os tesouros que possui e, momentaneamente, não lhes concede o mérito devido, a qualidade que possuem.

Uma organização física saudável, em que os sentidos sensoriais atuam com automatismo, constitui um precioso recurso que muitos somente consideram quando vitimados por qualquer problemática em algum deles.

Enquanto isso não se apresenta, utiliza-lhe a função sem a real consideração que merece.

O mesmo sucede com a bela imagem da dracma, em considerando o seu valor para a subsistência da mulher e a manutenção da sua dignidade social.

Os Espíritos frágeis na luta, os enfermos emocionalmente, deixam-se vencer pelas perdas de muitos bens emocionais, sem envidar o menor esforço pela sua preservação ou mesmo reconquista, deixando que o tempo se encarregue de solucionar aquilo que lhes diz respeito, complicando, cada vez mais, a sua saúde comportamental.

A negligência a esse respeito é muito grande e, por isso, a maioria dos padecentes emocionais somente busca ajuda quando se encontra experimentando a fome das algarobas duras e raras, caindo, então, em si, quanto à própria situação em que se encontra.

É nesse momento, que eles se recordam que têm um pai misericordioso, e somente o buscam porque têm necessidade, já que o sentimento de amor e de respeito não foi levado em conta.

Cair em si, portanto, é uma forma de conversão, de voltar-se para algo novo ou redescobrir o valor do que possuía e desperdiçou.

Ninguém pode assumir uma postura madura e equilibrada sem o contributo da reflexão profunda que lhe permite mergulhar no Si, valorizá-lo e entregar-se com coragem, rastreando os caminhos percorridos e retificando as anfractuosidades que ficaram na retaguarda.

A coragem de autodcSCobrir -se, identificando os erros que se permitiu, e o desejo real por uma nova conduta facultam que o Self aceite a sombra e integre-a harmoniosamente, facultando-se a alegria da recuperação.

Como Psicoterapeuta invulgar, ao narrar as duas parábolas Jesus tomou como exemplos um homem e uma mulher, colocando em igualdade psicológica o anima-us, para demonstrar que as necessidades e emoções são iguais, embora as diferenças de sexo.

O pastor, que sai à procura da ovelha desgarrada, é estimulado pela sua anima, e quando a encontra, condu-la maternal mente, com carinho ao rebanho, rejubilando-se como a galinha que agasalha todos os seus pintainhos sob a sua segurança...

Por sua vez, a mulher que perdeu a dracma é automaticamente comandada pelo seu animus, que a leva a varrer a casa, a acender uma candeia para conseguir luz e põe-se afanosamente a procurá-la até o momento em que a encontra, e então, funde-selhe o anima-us, e exultante, a todos notifica o acontecimento.


Para muitos pacientes, libido é a alma da vida, utilizando-

— se de toda a sua pujança para a autorrealização que não ocorre dessa forma.

Quando, porém, qualquer circunstância gera um conflito e os mesmos têm a impressão de a haverem perdido, transtornam-se e a tudo abandonam somente pensando no retorno da sua função, da sua aspiração preponderante...

Essa atitude pode parecer muito bem com a do pastor, diferindo em essência, quando este último ama a todas as suas ovelhas com igualdade, não desejando, como é natural, perder nenhuma.

O paciente, no entanto, valoriza, à exorbitância, essa energia que expressa vida, e logo faz o quadro depressivo, considerando-se indigno e incapaz de viver.

A sua busca é ansiosa e assinalada pelos tormentos da incerteza, enquanto o pastor estava consciente do êxito do empreendimento.

A existência terrena, portanto, deve ser considerada em conjunto, em totalidade, de modo que todos os valores que constituem a sua realidade mereçam igual interesse e valorização.

Nenhuma função é mais relevante do que outra, porquanto, na harmonia da organização fisiológica devem prevalecer o bem-estar psicológico e a claridade mental.

Em razão disso, os fenômenos orgânicos acontecem como resultado do bem elaborado projeto psíquico responsável pela marcha evolutiva.

Qual de vós? Interrogou Jesus, demonstrando que todos os seres humanos experimentam as mesmas angústias e ansiedades, buscam as mesmas realizações e, quando convidados ao sofri mento, sentem necessidade de paz e de renovação.

Não importa se têm haveres ou se vivem com carências, porque, mesmo no desvalimento sempre se possuem outros recursos de natureza emocional e moral, que lhes são de alto significado, não abdicando, por exemplo, do orgulho, da presunção, do egoísmo...

Não é difícil encontrar-se na miséria econômica os indivíduos dominados por sentimentos de rancor e de mágoa, vencidos pela sombra, que teima em preservá-los no primitivismo...

Esses sentimentos inferiores constituem tesouros para muitos afligidos, que não se incomodam de sofrer, desde que não se vejam impulsionados à mudança interior de atitude perante a vida.

Quando possuírem outros bens, considerados de alto significado, a eles apegándose, tornam-se mais déspotas, vingativos e desditosos.

Se perdem algo, aturdem-se, deblateram e revoltam-se, considerando-se injustiçados pela vida, até o momento em que o sofrimento os leva a cair em si, quando tem começo a sua renovação.

A partir desse momento, atiram-se na busca da ovelha ou da dracma perdidas, rejubilando-se ao reencontrá-las.

Há muitos valores morais em jogo na existência e no seu curso, alguns quando correndo perigo fogem para o deserto ou perdem-se na sala do próprio lar...

A saúde real consiste no encontro e assimilação desses bens indispensáveis à paz interior e ao equilíbrio emocional, sem perdas, nem prejuízos gerados por culpas ora superadas.

Nessa circunstância, a criança ferida que existe em cada pessoa está renovada, sem cicatrizes nem marcas dos transtornos passados, vivenciando a individuação.


A coragem de prosseguir em qualquer circunstância

A existência humana pode ser comparada ao curso de um rio que busca o mar.

A sua nascente com aparente insignificância, não, poucas vezes, vai formando singelo curso que aumenta de volume à medida que recebe a contribuição de afluentes, vencendo obstáculos, arrastando-os, seguindo a fatalidade que o aguarda, que é o mar ou o oceano...

As experiências da aprendizagem que ampliam a capacidade interior do discernimento e do conhecimento, constituem afluentes que favorecem o crescimento individual do ser humano, à medida que surgem dificuldades e problemas que não podem parar o fluxo.

A força do seu volume, em forma de amadurecimento psicológico, proporciona a capacidade para superar os impedimentos de toda ordem que são encontrados pela frente.

Toda ascensão exige sacrifícios.

O tombo no rumo do abismo é quase normal, em face da lei da gravidade moral, enquanto que a elevação interior, a coragem de descer ao íntimo para subir ao entendimento, constitui um dos desafios existenciais mais complexos, em face do hábito resultante da acomodação em torno do já experiênciado, do já conhecido, sem a aspiração impulsionadora para romper com a rotina e superar o estado de modorra em que se demora.

A busca e preservação da saúde é meta que deve priorizar, dando sentido psicológico à existência.

Desse modo, as perdas impõem a necessidade urgente do encontro mediante os riscos naturais que toda viagem heróica exige.

Mede-se a estrutura moral da criatura não somente pelos êxitos alcançados, mas pelo empenho no prosseguimento das lutas desafiadoras, ferramentas únicas responsáveis pelo crescimento ético-moral e espiritual ao alcance da vida.

A busca do Cristo interior, nesse cometimento assume um papel de relevante importância, que é o esforço pela conquista da superconsciência.

Quando se consegue essa integração com o ego, alcança-se a individuação.

Conceituou-se, por muito tempo, que a saúde seria a falta de enfermidade, e que os indivíduos portadores desse requisito eram mais bem aquinhoados que os demais.

Constatou-se, porém, através das experiências, que a saúde não é apenas o efeito da harmonia orgânica, da lucidez mental e da satisfação psicológica, porque outros fatores, como os de natureza socioeconômica, desempenham também importante papel na sua conquista e preservação.

Enquanto se movimenta na argamassa celular o Espírito estará sempre defrontando as consequências das suas realizações passadas, que lhe impõem compromissos reparadores quando se equivocou, e estímulos de crescimento quando se manteve dentro dos padrões do equilíbrio e do dever.

A harmonia, portanto, que deve existir entre todos os fatores, nem sempre ocorre de maneira perceptível, apresentando-se em formas variadas de achaques, de melancolias, de estresses, todos temporários, sem que se constituam problemas perturbadores, transtornos na área da saúde.

Pode-se estar saudável, embora portando-se disfunções orgânicas ou doenças em tratamento...

O equilíbrio da emoção responde pelo comportamento enquanto se manifestam os fenômenos das alterações celulares, das transformações que se operam em quase todos os órgãos como resultado do seu funcionamento, das agressões internas e externas, sem que afetem o bem-estar geral que deve ser mantido.

Outras vezes, instabilidades emocionais defluentes de expectativas naturais do processo de crescimento, preocupações em torno das necessidades que constituem o mapa da conduta social, aspirações idealísticas, dores morais internas, insatisfações com alguns resultados de empreendimentos não exitosos, contribuem para a ansiedade, porém sob controle da mente administradora, que prossegue estimulando a produção das monoaminas responsáveis pela alegria, pela felicidade: dopamina, crotonina, noradrenalina...

O vento que vergasta o vegetal dá-lhe também resistência e vigor.

De igual maneira, os fenômenos, às vezes, desagradáveis, que têm curso durante a jornada humana, contribuem para vitalizar os sentimentos e fortalecer a coragem, proporcionando valores dignificantes.

Ninguém, que se movimentando no corpo físico, não esteja sujeito a tropeços e quedas, de igual maneira, ao soerguimento e à continuação da marcha.

Como elemento vitalizador da luta evolutiva, o amor é de primacial importância, mesmo quando proporciona preocupações e desencantos.

É natural que se ame desejando algum retorno, em face da precariedade dos sentimentos ainda não desenvolvidos.

Ideal, no entanto, será que o amor se manifeste como efeito da alegria de viver e de expandir as emoções, os regozijos de que a pessoa se sente possuída, por descobrir esse dom precioso - a dracma perdida no desconhecimento - que é muito mais benéfico para quem o possui.

O conceito, entretanto, vigente em torno do amor, é que ele aprisiona, reduz a capacidade de entendimento em torno dos valores da vida, elege ídolos de pés de barro que não suportam o peso da própria jactância e arrebentam-se, destruindo o herói.

O medo de amar ainda encarcera muitas mentes e corações que se estiolam a distância, fugindo desse impulso de vida que é vida.

No entanto, somente através do amor, isto é, a serviço dele, é que se estruturam os ideais edificantes e enobrecedores da sociedade.

Não é o amor que aprisiona, senão a insegurança do indivíduo que transfere para outrem os seus medos, as suas inquietações, as suas ansiedades, aguardando tê-los resolvidos sem o esforço que se faz exigido para tanto.


Quando se estabelece o sentimento de respeito e de amizade entre duas ou várias pessoas, há um enriquecimento interior muito grande porque o ego se expande, dilui-se, e o sentimento da fraternidade solidária alcança o Self, proporcionando o bem-

— estar, no qual o indivíduo sente-se realizado, operando cada vez mais em favor do grupo, sem olvido de si mesmo.

Nesse expandir do sentimento afetivo, há valorização sem exorbitância do Si-mesmo, que passa a merecer consideração emocional, libertando-se das traves que lhe impedem o desenvolvimento.

Quanto mais se ama, muito mais se ampliam os seus horizontes afetivos.

É através do amor que a Divindade penetra a consciência humana, por meio dos seus desdobramentos em forma de interesse pelo próximo, pela vida, do labor em favor de melhores condições para todos, incluindo o planeta ora quase exaurido...

Esse Deus está muito além da superada manifestação antropomórfica, sendo a inteligência suprema e a causa primeira do Universo.

Não necessita de qualquer tipo de culto externo, de manifestações formais, das celebrações que deslumbram, dos comportamentos extravagantes...

Deus encontra-se na atmosfera, que é fonte de vida, nutrindo tudo quanto existe, mas também nos ideais, e mais além, em toda parte, nos sacrifícios, na abnegação de santos e de mártires, de cientistas e de trabalhadores, de intelectuais e de idiotas, em todas e quaisquer expressões de vida, desde o protoplasma ao complexo humano.

É através dEle que se alcança o processo de individuação.

Supõe-se que a individuação irá ocorrer somente por meio dos momentos exitosos, das vitórias sobre a sombra, da autoconsciência conseguida.

Sem dúvida, que assim ocorre, mas também, nesse processo de individuação, surgem períodos muito difíceis, que são defluentes das alterações orgânicas, em face do avanço da idade, de conjunturas psicológicas, algumas delas afugentes, de inquietações mentais, no entanto, instrumentos hábeis para o amadurecimento interior, para a visão correta em torno da existência, para o trabalho de autoburilamento.

A individuação não é uma conquista fácil, tranquila, mas resultante de esforços contínuos, devendo passar, às vezes, por fases de sacrifícios e de renúncias.

Ninguém consegue uma vida de bem-estar sem o imposto exigido em forma de contínuas doações de dor e de coragem, enfrentando todas as situações com estoicismo, sem queixas, porque, à semelhança de quem galga uma elevação, à medida que se esforça para consegui-lo, beneficia-se do ar puro, do melhor oxigênio.

A individuação é o oxigênio puro de manutenção do ser.

A conquista desse estado numinoso pode ser comparada a uma forma nova de religiosidade, na qual se consegue a harmonia entre a vida na Terra e no céu.

Anteriormente, por não existir a psicologia analítica, a religião albergava todas as necessidades humanas e a confissão auricular produzia um efeito psicoterápico na liberação da culpa, mantendo, no entanto, irresponsável o indivíduo, que achava muito fácil errar e ser perdoado, ferir e ser desculpado, sem realizar o processo de autoiluminação.

Graças, porém, à visão nova de Jung, os mitos religiosos podem ser substituídos pelos arquétipos e os conflitos, ao invés de recalcados e desculpados, devem merecer catarse, diluição, enfrentamento e reparação dos danos que hajam causado.

São os arquivos do inconsciente que conduzem o indivíduo e não o seu ego sujeito às alternativas dos interesses imediatos.

Nesse arquivo grandioso do Espírito, o ego pode e deve manter diálogos com o Self para tomar conhecimento lúcido dos seus conteúdos e melhor conduzir os equipamentos de que dispõe na sua proposta de vida.

É identificando o erro que se aprende a melhor maneira de não o repetir.

O que denominamos como erro, no entanto, trata-se de uma experiência incorreta, aquela que ensina a como não mais proceder dentro dos seus parâmetros, terminando por ser valiosa contribuição à evolução.

O ser humano, portanto, é algo maior do que as expressões exteriores, os êxitos momentâneos, constituindo-se de toda a sua história que registra insucessos e vitórias, tristezas e alegrias, produzindo-lhe o equilíbrio que o segura e mantém no rumo certo.

O pastor que resgata a ovelha perdida, torna-se mais vigilante em relação à mesma, assim como às demais, evitando-se excesso de confiança, porque, à medida que o rebanho avança, existem desvios e abismos perigosos...

Ante a ovelha que foge, a atitude do pastor é o socorro maternal, nada obstante, às vezes, o animal rebelde liberta-se dos braços protetores e novamente desaparece, optando pelo desvão no qual se oculta...

Em tal situação, em seu benefício, o pegureiro assume o seu animus e, vigoroso, aplica-lhe o cajado ou atiça-lhe o cão, encaminhando-o de volta ao aprisco.

É, portanto, inadiável o dever de prosseguir-se no compromisso relevante sob qualquer custo, seja qual for a circunstância em que se apresente.


A insistência de que se dá provas, quando se optando pela situação doentia, pelas sinuosidades do comportamento sem responsabilidade, propele a consciência - o pastor vigilante

—a impor sofrimentos que se encarregam de apontar o rumo correto, de encontrar-se o que se está extraviando ou foi deixado na retaguarda...

O ocidental acostumou-se com os limites da emoção e adaptou-se aos prazeres da sensação de tal modo, que tudo aquilo que o convida à inversão desse comportamento parece-lhe de difícil aplicação e, por tal razão, evita viver a proposta de olhar para si mesmo, para dentro, de autopenetrar-se para descobrir os incomparáveis tesouros da alegria íntima, da vivência elevada, sem cansaço, sem ansiedades nem expectativas.

Esse esforço é realizado somente quando não tem outra alternativa e quando apresenta cansaço em torno do conhecido gozo dos sentidos.

É necessário passar por todas essas experiências, experimentar dificuldades e acertos, sofrer perseguições e ser eleito, porque tudo isso faz parte da constituição arquetípica da evolução, e ninguém pode vivenciar um estágio sem passar pelo outro.

Essas necessárias capacitações desenvolvem os sentimentos, aprimoram a visão em torno da vida, amadurecem o ser psicologicamente, trabalhando-lhe o Self, a fim de que os seus valores profundos abram-se em benefício da individuação.

Normalmente as criaturas queixam-se das cruzes que carregam e as fazem sofrer, parecendo-lhes injusto ter que as conduzir com dificuldades, vivendo em situações difíceis e ásperas.

De alguma forma, o conceito e peso da cruz estão muito vinculados ao complexo da infância que se encarregou de dar a visão do mundo.

De acordo com a educação recebida a criança passa a ter conceitos da existência que são herdados dos pais.

Por essa razão, para alguns, o que constitui fardo, para outros é aprendizado valioso.

A pessoa deve aprender desde cedo a enfrentar os fenômenos existenciais como parte do seu programa evolutivo, o que equivale significar que, se dando conta da própria sombra não a deve transferir para outrem, mas cuidar de diluí-la, mediante a compreensão das ocorrências.

A sombra tem uma vestidura moral em contínuo confronto com a personalidade-ego, exigindo, por isso mesmo, o grande esforço de igual magnitude moral, para conscientizar-se, compreendendo e aceitando os fenômenos perturbadores que lhe ocorrem como inevitáveis.

A maioria, no entanto, não a aceita como inerente, elemento constitutivo de todos os seres, portanto, presente em todas as vidas.

Rejeitar ou ignorar a sombra é candidatar-se a conflitos contínuos que poderiam ser evitados, caso se reconhecesse a ocorrência desse fenômeno próprio do ser humano.

Ela faz parte do ser, de igual forma como o ego, o Self e todos os demais arquétipos, que são as heranças do largo trânsito da evolução.

Na história mítica da Criação, quando Adão comeu o fruto que lhe foi oferecido por Eva, teve que enfrentar a realidade da sua e da nudez em que ela se encontrava, reagindo automaticamente, procurando um arbusto para esconder-se, quando lhe surgiu o discernimento do ético, do bem e do mal, da malícia e do desejo, resultando nessa fissão da psique, o anjo e o demônio, cuja harmonia deve ser conseguida através do enfrentamento de ambos, num processo psicoterapêutico de consciência lúcida.

De igual maneira, a sombra que dali procedeu permanece no complexo psicológico do ser exercendo o seu papel como herança ancestral do conflito inicial.

A inocência bíblica das duas personagens é referencial mítico para ocultar as funções edificantes da sexualidade, que a castração religiosa considerou como manifestação de inferioridade e de tormento.

A semelhança de outro órgão, o sexo tem as suas exigências que devem ser atendidas com a dignidade e o respeito que lhe são pertinentes.

Quando o indivíduo se permitiu a corrupção de qualquer natureza, ei-la refletindo-se também no comportamento sexual, que se torna válvula de escape para a fuga da responsabilidade moral.

Desse modo, os desafios da sombra merecem observação carinhosa a fim de conseguir-se a sua integração no Self, não mais separando o indivíduo do ser divino que ele carrega no íntimo.


Ser-se integralmente

A dicotomia psicológica do ter-se e do ser-se constitui grave questão no comportamento individual e social da Humanidade.

Educa-se a criança, invariavelmente, para ter, para triunfar na vida e não sobre a vida com as suas dificuldades, mas para possuir e gozar.

Como, felizmente, a existência não se constitui exclusivamente das sensações, mas especialmente das emoções, e o ser é mais psicológico do que fisiológico, mesmo quando o ignora, é natural que esse conflito esteja presente em todos os instantes nas reflexões, nas ambições, nas programações existenciais.

Como consequência dessa falsa concepção tem-se uma visão neurótica do mundo e de Deus, que teriam como função precípua e exclusiva atender aos desejos e caprichos do ser humano, destituindo-o da faculdade de pensar e de agir, como alguém numa viagem fantástica por um país utópico, no caso, o planeta terrestre.

Quando algo constitui uma incitação à luta em favor do crescimento intelecto-moral, ao desenvolvimento espiritual, a conduta neurótica espera que tudo lhe seja solucionado a passe de mágica, pelo fenômeno absurdo da crença religiosa, mediante um milagre, por exemplo, ou uma concessão especial, que lhe constitua privilégio, como se fosse um ser excepcional...

Como todos assim pensam, resulta que o conceito em torno desse deus apaixonado e antropomórfico, transferência inconsciente da imagem do pai que foi superada durante o desenvolvimento orgânico e mental, sofrem o impacto da descrença, da decepção, da amargura, que dão lugar a conflitos perturbadores.

Se a educação infantil se preocupasse em preparar a criança para tornar-se um ser integral, sem fraccionamentos, utilizandose de todos os preciosos recursos de que é constituída, à medida que evoluísse não experimentaria os tormentos das frustrações defluentes das lutas pelo ter e pelo poder.

Ao mesmo tempo, o conceito de Deus inerente e transcedente a tudo e a todos, como a força inicial e básica do Universo, evitaria a transferência do conceito paterno, mantendo-lhe, não obstante, a aceitação da Causalidade absoluta.


O Si-mesmo com facilidade identificaria os objetivos reais da existência, evoluindo com os processos orgânicos e psíquicos,

sem apequenar-se diante das necessidades que se apresentam durante o crescimento espiritual.

Esse programa educativo evitaria a criança interior ferida pela negligência ou superproteção dos pais, facultando-lhe um desenvolvimento compatível com o nível de evolução em que estagia cada Espírito.

O conceito de culpa seria examinado sem castrações, demonstrando que é perfeitamente normal a sua presença, resultado inevitável do cair em si após comportamentos irregulares, aceitando-a e liberando-a por intermédio da reabilitação, do processo de recomposição dos danos que foram causados pela presunção ou pela ignorância.

Uma vida saudável estrutura-se no ser e não naquilo que se tem e com frequência muda de mãos.

O ter e o poder transformam-se em algozes do indivíduo, porque se transferem do estado de posse para tornar-se possuidores, escravizando-o na rede vigorosa do egoísmo e dos interesses subalternos.

Produzem conceitos falsos nos relacionamentos humanos, porque dão a impressão de que não se é amado, sendo que, todos aqueles que se acercam estão mais interessados nos seus recursos do que naquele que lhes é detentor.

De certo modo, infelizmente assim ocorre na maioria das ocasiões, havendo exceções respeitáveis.

O indivíduo não é o que tem ou que pensa administrar, mas são os seus valores espirituais, a sua capacidade de amar, os tesouros inalienáveis da bondade, da compaixão, do sentido existencial.

Em face da ilusão em torno da perenidade da vida material, os apegos às posses levam aos conflitos, à insegurança, às suspeitas, muitas vezes, infundadas, porque são fugidios e o que proporcionam é de efêmera duração.

Sai-se de uma experiência dominadora para outra mais escravista, tendo os interesses fixados no ego e nos fenômenos dele decorrentes, quais sejam a ambição de mais ter e de mais poder, responsáveis pela prepotência, pela arrogância, que são seus filhos espúrios, ao invés da luta para conseguir alcançar a realidade interna.

Quando há uma preocupação real pelo autoconhecimento, interpretando as ocorrências normais como necessárias ao processo da evolução, a saúde integral passa a fazer parte do calendário emocional daquele que assim procede.

Esse processo impõe o impositivo da ligação com a alma, o que equivale dizer, uma constante vigilância com o ser profundo, o ser espiritual que se é e não pela aparência de que se veste para a caminhada terrestre.

No passado, as religiões tradicionalistas, e ainda hoje, criaram e prosseguem gerando cultos e cerimônias externas que se encarregam de manter visualmente a vinculação, estabelecendo dogmas em torno delas, responsáveis pelo temor e pela submissão.

Sendo positiva a proposta, perde o seu significado e torna-se perturbadora pela imposição sacramental e rigorosa, de caráter compensatório ou punitivo.

No caso das compensações, dá lugar a uma sintonia falsa, vinculada ao interesse dos benefícios advindos com a prática exterior, o que impede a ligação interna, profunda, significativa.

No referente às punições, compromete o adepto que se preocupa mais com a forma do que com o conteúdo, e aqueles que são sinceros, tornam-se tementes ao invés de conscientes em torno dos resultados psicológicos da identificação com o Si-mesmo.

No entanto, uma análise descomprometida com o formalismo religioso ou com as denominações estabelecidas na área da fé, permite que, na Bíblia, esse notável manancial de inspiração e de sabedoria, separado o trigo do joio, encontrem contribuições valiosas para a interpretação de conflitos e orientações necessárias ao bem-estar, em aforismos e lições de beleza ímpar, nos seus arquétipos e mitos muito bem-estabelecidos, que podem ser interpretados e integrados ao eixo ego-Self.

Mediante esses ensinamentos é possível pela reflexão voltar-se para o mundo interior, encontrar-se a residência da alma, conviver-se com as suas necessidades não perturbadoras.

Nesse cometimento, o amor exerce um papel preponderante porque somente através dele se podem alcançar os painéis da alma, da alma que dele necessita para expandir-se, atingindo a sua finalidade evolutiva.

Através desse esforço contínuo, redescobrindo-se a criança interior saudável, que inspira ternura e amizade, despida de malícia e de ideias preconcebidas, logra-se um estado interno de harmonia, porque a ausência de suspeitas e de insegurança proporciona o bem-estar responsável pela felicidade.

A criança expressa uma confiança no adulto que ultrapassa os limites da razão.

Aquilo que esse lhe promete ou lhe faz assinala-lhe fortemente a personalidade em formação, o caráter em desenvolvimento, e porque não é portadora de incertezas, entrega-se totalmente, deixando-se conduzir.

Alguém afirmou com beleza rara, que diante da criança sempre se encontrava diante de um deus...

É certo que o Espírito em si mesmo, não é criança, mas a forma, a indumentária que o reveste, proporcionando-lhe o esquecimento do ontem e ensejando-lhe a ingenuidade do hoje para a sabedoria do futuro, proporciona essa ternura e afeição que a todos comove.

Tudo quanto, pois, se instala no período infantil, permanece durante toda a existência.

Quando de um dos muitos terremotos que abalam periodicamente a Turquia, houve o desabamento de uma escola infantil onde se encontravam dezenas de crianças.

Todas as providências foram tomadas no sentido de ainda resgatá-las com vida.

Após dias de trabalho exaustivo, os especialistas chegaram à conclusão de que, em face do tempo transcorrido, mesmo que se chegasse até elas, seria tarde demasiado, porque todas estarian inevitavelmente mortas.

Um pai, no entanto, escavando, pedindo ajuda, informando que tinha certeza de que seu filho e outros haviam resistido e se encontravam com vida.

Já não havia mesmo esperança, e os trabalhadores vencidos pelo cansaço começaram a desistir, menos o pai.


...

Por fim, após esforços hercúleos, abaixo do desmoronamento, havia uma brecha, e logo se pôde perceber que algumas crianças estavam sob vigas que se sustentaram umas sobre as outras, permitindo-lhes espaço para respirar e viver.


O genitor aflito chamou pelo filhinho, que lhe respondeu:

—Eu tinha certeza que você viria papai.

A seguir, estimulou todas as crianças a serem retiradas, ficando em último lugar, porque sabia que o seu pai não desistiria enquanto ele não fosse libertado.

O pai tinha o hábito de dizer-lhe que confiasse sempre no seu amor e nunca temesse qualquer dificuldade, porque ele estaria onde quer que fosse para o proteger e amparar.

Essa confiança, a criança transferiu aos amiguinhos, conseguindo sobreviver pela certeza, sem qualquer sombra de dúvida de que o pai os salvaria...

No sentido inverso, quando a criança é estigmatizada, punida, justa ou injustamente, embora nunca seja crível uma punição infantil denominada justa, ela absorve as informações e castigos, passando a não acreditar em seus valores, não experimentando estímulo para avançar, crescer e prosseguir, porque mortalmente ferida, carrega a marca, tornando-se rebelde, cruel, cínica, destituída de sentimentos bons, que estão asfixiados sob o lixo da perversidade dos pais ou dos adultos que a insultaram, mesnoprezaram, condenaram-na...

O ser é, portanto, a grande proposta da psicologia, no sentido profundo ainda do vir-a-ser, conscientizando-se das incomparáveis possibilidades que se lhe encontram adormecidas e que devem ser despertadas pelo amor, pela educação, pela convivência social, a fim de que atinja a individuação.

A realidade da psique propõe, portanto, o desenvolvimento das possibilidades existenciais que se encontram em germe em todos os seres, crescendo no rumo da realidade e do saudável comprotamento, para alcançar o patamar de um ser integral, portador de saúde total.

A conquista da consciência humana iluminada, conforme propunha Jung, rompe a cadeia do sofrimento, adquirindo assim significado metafísico e cósmico.

Romper essa cadeia do sofrimento, representa manter uma conduta superior, elegendo o que fazer ao próximo, conforme recomendava Jesus, nunca revidando mal por mal, por ser a única terapêutica possuidora do valioso recurso de gerar tranquilidade interior.

Quando os adultos compreenderem esse significado, não transferirão para os filhos as suas próprias feridas emocionais, amando-os integralmente e apresentando-lhes a alma, o ser metafísico e cósmico.

Todo o empenho, pois, deve ser aplicado na busca do ser e não do ter...

As parábolas a respeito da ovelha que se perde, assim como da dracma que desaparece, dizem respeito ao ter, convidando ao encontro para o equilíbrio da posse, a que se dá extremada importância na vida social.

No entanto, Jesus, após enunciá-las, coroou a Sua proposta iluminativa, respondendo àqueles que O perseguiam porque convivia com as misérias alheias manifestas dos afligidos e desamparados, ensinando a importância de ser e não de ter, a coragem de cair em si, de recuperar-se, de encontrar-se...