—Sabeis que daqui a dois dias acontecerá a Páscoa e o fuho do Homem será entregue para ser crucificado.
A ideia de que deveria ser eliminado tomara corpo junto à cúpula do judaísmo.
Que fosse submetido a sumário julgamento e condenado à morte, imprimindo-se foro de legalidade à criminosa iniciativa.
A providência inicial, sua prisão, deveria ocorrer de forma discreta.
O profeta galileu contava com a simpatia do povo.
Beneficiara muita gente. Não seria prudente qualquer ação passível de gerar tumultos, com sérios embaraços junto às autoridades romanas.
Foi quando entrou em cena Judas.
Espontaneamente, procurou os sacerdotes, oferecendo-se para entregá-lo aos seus algozes, na calada da noite, em local ermo.
Enigmática figura.
Pouco se sabe dele, além do fato de que o chamavam 1scariotes, para distingui-lo de outro discípulo, Judas Tadeu. O sobrenome indicava sua naturalidade: Queriote, na Judeia.
Não era, portanto, galileu, como os companheiros.
Tendo exercido a profissão de comerciante, fora encarregado de controlar a economia do grupo, cuidando do dinheiro.
A tradição o situa como mesquinho e avarento, mas é difícil conceber que Jesus tenha convocado para seu círculo íntimo alguém com esse perfil.
Provavelmente, essa concepção surgiu posteriormente, inspirada na indignação da comunidade cristã, em face de sua lamentável iniciativa.
Judas teria vendido Jesus por trinta dinheiros.
Equivalia ao salário mensal de um trabalhador braçal, quantia insignificante, que de modo algum justificava a traição.
Bem mais poderia subtrair das economias do grupo, se o desejasse.
Há quem diga que o apóstolo o fez movido pelo ressentimento.
Jesus o teria criticado por sua avareza.
Esse argumento carece de fundamento, porquanto havia um clima de cordialidade no colégio apostólico.
As admoestações do Mestre eram sempre carinhosas, sem o caráter de agressividade que justificasse tão maldosa iniciativa.
Alguns cronistas vêem em Judas um mau caráter, mas peça indispensável no Drama do Calvário, que exigia um traidor, à semelhança das tragédias gregas.
As forças do destino o teriam colocado naquela posição, em que fatalmente cederia às próprias fragilidades.
Essa ideia parece-me inconsistente.
Seria o mesmo que justificar as atrocidades de um facínora que mata muita gente, situando-o como um instrumento de Deus, porque suas vítimas assim devem morrer.
Por outro lado, Judas me parece personagem secundária, pouco mais que um figurante.
Se o eliminarmos, nada se perderá, em substância e dramaticidade, nos acontecimentos que marcaram o final do apostolado messiânico, mesmo porque ele não foi o único traidor.
Quase todos os que cercavam Jesus traíram sua confiança, na medida em que se omitiram.
O colégio apostólico desagregou-se.
Os simpatizantes de sua doutrina permaneceram longe.
Nem mesmo os ex-cegos, mudos, paralíticos, surdos, beneficiados por suas mãos abençoadas, estiveram presentes.
O medo foi mais poderoso e convincente do que o dever, a amizade, a gratidão! O medo nivelou todos, situando-os por indignos beneficiários daquele homem admirável, que, mesmo ante as perspectivas da morte degradante, não perdería, por um instante sequer, a serenidade que marcava seu comportamento.
Só há uma maneira de desvendar as motivações de Judas: ouvir o seu próprio testemunho.
Em 1937, em pleno apogeu de sua produção mediúnica, Francisco Cândido Xavier psicografou o livro Crônicas de Além-Túmulo, ditado pelo Espírito Humberto de Campos, famoso e querido escritor brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras.
O autor descreve, num dos capítulos, a viagem que fez a Jerusalém, sonho acalentado por muitos cristãos.
Transitar pelos lugares sagrados, pisar o mesmo solo por onde andou Jesus.
Idosa senhora desejava, ardentemente, realizar essa peregrinação.
O marido, um tanto preocupado com o clima de beligerância entre árabes e judeus, e bem mais com a preservação de suas economias, procurava contornar a situação.
—Vamos esperar um pouco.
Viajaremos de graça.
—Verdade! Alguma promoção?
—Não, meu bem.
E que dentro de alguns anos nos livraremos da carcaça de carne.
Invisíveis, ninguém nos verá no avião...
Bem, não sabemos se Humberto de Campos viajou de carona, ou volitando, como o fazem os Espíritos que já se desvencilharam do lastro pesado das paixões humanas...
O fato é que lá esteve, certa noite.
Com a sensibilidade dos desencarnados, experimentou, emocionado, a vibração que ainda pairava sobre aqueles lugares santos, onde Jesus dera seus gloriosos testemunhos.
Em dado momento, viu um Espírito em atitude meditativa.
Irradiava cativante simpatia.
Alguém informou: era Judas.
Humberto não resistiu.
—E verdade tudo quanto reza o Novo Testamento a respeito de sua personalidade, na tragédia da condenação de Jesus?
Judas respondeu que em nenhum momento pensou em dinheiro.
Era um apaixonado pelas ideias socialistas de Jesus.
Sem entender os fundamentos do Evangelho, pensava mais em termos políticos.
Não acreditava que, com sua mansuétude e o santo horror à violência, o Mestre conseguisse algo de produtivo.
Imperioso conquistar o poder, a partir de enérgicas iniciativas.
Planejou, então, uma revolução, colocando Jesus em plano secundário.
Imaginava que sua prisão provocasse uma reação popular.
Com o concurso de colaboradores afinados com suas convicções, aproveitaria o ensejo e alcançaria seus objetivos, envolvendo a multidão.
Jamais poderia imaginar o rumo que os acontecimentos tomaram.
Após a tragédia, ralado de remorsos, concluiu que o suicídio era a única maneira de redimir-se.
Judas foi um idealista transviado, a imaginar que seria possível eliminar as diferenças sociais e as injustiças em bases de violência.
Humberto de Campos lhe perguntou se o suicídio teria sido suficiente para redimi-lo.
Judas explicou que o remorso fora apenas uma providência preliminar, em face da reparação que lhe competia.
Durante séculos padeceu, em múltiplas encarnações, o sofrimento expiatório.
Foi cristão em existências que se sucederam. Sofreu horrores nas perseguições aos adeptos do Cristianismo.
Seus tormentos culminaram numa fogueira inquisitorial, quando também foi traído, vendido e usurpado, isto já em pleno século XV, quando fechou o ciclo de suas reencarnações expiatórias, com o perdão da própria consciência.
Humberto de Campos lhe perguntou se estava ali meditando sobre os dias passados.
—Sim, estou recapitulando os fatos como se passaram.
E agora, irmanado com Ele, que se acha no seu luminoso Reino das Alturas, que ainda não é deste mundo, sinto nestas estradas o sinal dos seus passos divinos.
Vejo-o ainda na cruz, entregando a Deus o seu Destino...
Sinto a clamorosa injustiça dos companheiros que o abandonaram inteiramente e me vem uma recordação carinhosa das poucas mulheres que o ampararam no doloroso transe.
Em todas as homenagens a ele prestadas, eu sou sempre a figura repugnante do traidor.
Olho complacentemente os que me acusam sem refletir se podem atirar a primeira pedra... Sobre o meu nome pesa a maldição milenária, como sobre estes sítios cheios de miséria e de infortúnio.
Pessoalmente, porém, estou saciado de justiça, porque já fui absolvido pela minha consciência, no tribunal de suplícios redentores.
— Quanto ao Divino Mestre - continuou Judas com seus prantos - infinita é a sua misericórdia, e não só para comigo, porque, se recebi trinta moedas, vendendo-o aos seus algozes, há muitos séculos Ele está sendo criminosamente vendido no mundo, a grosso e a retalho, por todos os preços, em todos os padrões do ouro amoedado...
Um dia, quando as faculdades psíquicas humanas estiverem mais desenvolvidas, permitindo o acesso aos arquivos espirituais, que registram os eventos humanos, teremos uma historiografia espírita.
Reescreveremos a História a partir das informações que emanam da Espiritualidade, com uma visão objetiva de como as coisas aconteceram, realmente.
Então, a figura de Judas deixará de simbolizar o traidor execrável que vendeu seu mestre por dinheiro.
Saberemos que foi o discípulo iludido, que pretendeu construir o Reino dos Céus à sua moda.
Em seu favor, como ele próprio destaca, devemos lembrar que Jesus continua sendo traído por incontáveis religiosos que sustentam inconcebível coexistência entre os ideais cristãos e suas mazelas.
Era chegado o tempo dos testemunhos, em que o Filho do Homem seria glorificado pelo martírio, segundo suas previsões.
Conforme a parábola, o grão de trigo deveria morrer, para multiplicar-se em bênçãos de renovação em favor da Humanidade.
Seriam momentos decisivos para a própria sorte do Cristianismo, marcados pela fidelidade de Jesus à mensagem que transmitira ao longo de três anos.
É uma outra história...