Setenta Vezes Sete

CAPÍTULO 4

POR CAUSA DO REINO DE DEUS



Mateus 19:10-
Quando Jesus, instituindo o princípio da responsabilidade matrimonial, proclamou|

que o homem não pode dispensar a mulher ao seu bel-prazer, como quem se desfaz de uma serviçal, seus interlocutores levaram um susto.

A ideia era inconcebível para a mentalidade machista da época.

Como impor submissão à esposa, sem a prerrogativa de despachá-la quando não estivesse agradando?!

Como suportar as impertinências femininas, a se acentuarem com os achaques da velhice?!

Como sustentar a virilidade, sem os estímulos do contato com novas companheiras, de preferência jovens e ardentes?!


Os próprios discípulos ficaram chocados, julgando dura demais semelhante disciplina. E comentaram:

—Se tal é a condição de um homem relativamente à sua mulher, é melhor não casar.


Respondeu Jesus:

—Nem todos podem aceitar este conceito, mas somente aqueles a quem foi dado.

Há os homens-instinto.

Vivem em função dos chamados prazeres da carne, envolvendo particularmente o sexo.

São promíscuos. Enxergam, em qualquer mulher dotada de atrativos físicos, uma aventura em potencial.

Há os homens-sentimento.

Buscam a comunhão autêntica no relacionamento afetivo, envolvendo, além do sexo, o companheirismo, a amizade, a capacidade de se doarem em favor do ser amado.

Estes podem entender Jesus, quando fala em monogamia e indissolubilidade do casamento.


* * *

O Mestre aproveitou o ensejo para abordar um tema paralelo, proclamando:

—Há eunucos, que nasceram assim; outros foram feitos eunucos pelos homens; e outros há que se fizeram eunucos por causa do Reino dos Céus...

Eunuco, como sabe o prezado leitor, é o indivíduo impotente, cujas glândulas sexuais estão atrofiadas ou foram extraídas.


Jesus reporta-se a três tipos de eunuquismo:

• Os que nasceram assim.

Em virtude de deficiência fisiológica congênita, estão impedidos de uma vida sexual normal.


Certamente, guardam embaraçosa dúvida:

—Por quê?


Outra, decididamente perturbadora:

—Por que comigo?

Se aceitamos a existência de Deus e concebemos que é absolutamente justo, será impossível responder a.

essas indagações sem admitir a reencarnação.

O eunuco congênito está em resgate cármico.

Paga por deslizes de pretéritas existências.

O libertino, empolgado com aventuras nos domínios do sexo, que elegeu a irresponsabilidade por padrão de conduta, candidata-se a renascer com problemas dessa natureza.

A impossibilidade de dar vazão aos seus impulsos o ajudará a refrear suas tendências, ao mesmo tempo que o situará em conflitos íntimos, quais tormentas reparadoras em seu Espírito.

• Os eunucos feitos pelos homens.

No passado, potentados orientais tinham em seus palácios uma dependência especial, o harém, onde desfrutavam de mulheres selecionadas dentre as mais belas.

Para protegê-las e ao mesmo tempo evitar que fugissem, eram montados fortes esquemas de segurança.

Mas, como impedir que os próprios guardas molestassem ou seduzissem as mulheres?

Solução simples: eram castrados, tornando-se impotentes.

Nesse segundo grupo podemos situar outro tipo de eunuco, envolvendo as ordens religiosas que impõem a castidade.

E o que situaríamos por castração moral, também geradora de conflitos, porquanto o indivíduo pode ter aptidão para a vida religiosa, sem vocação para a castidade e o celibato.

Frequentemente gera problemas.

Passada a fase heróica, de empenho por seguir tão rígida imposição, quando cessa a luta íntima por forçar um comportamento para a qual não está preparado, o religioso poderá: Cair na hipocrisia, simulando castidade.

Desistir de seus votos e ir cuidar da vida.

Celibato e castidade não encontram respaldo nas tradições cristãs.

Discípulos de Jesus, que pontificaram no movimento inicial, eram casados, tinham vida sexual, cuidavam da prole, a começar pelo próprio Simão Pedro, que a ortodoxia religiosa situa como o primeiro papa.

Na primitiva igreja, sacerdotes, bispos e diáconos, bem como os demais membros engajados na sustentação do serviço, constituíam família, sem nenhum inconveniente.

Ao contrário, era até desejável, colocando-os a salvo das tentações.

Outra vantagem: o relacionamento conjugal lhes dava a experiência necessária para cuidar de problemas familiares dos fiéis.

• Os que se fizeram eunucos por causa do Reino dos Céus.

Espíritos superiores, participando de sagradas tarefas no Bem, fazem-se castos para produzir mais e melhor.

Na energia sexual manifesta-se o impulso criador, estimulado pela procura de prazer que, segundo Freud, é o móvel de nossas ações.

O homem comum realiza-se, canalizando-a para os domínios das sensações, no arrebatamento da comunhão física que gera filhos.

O homem superior realiza-se canalizando a energia sexual para gloriosas realizações nos domínios da arte, da ciência, da religião, da filosofia...

Temos em Francisco Cândido Xavier um exemplo típico.

Lembro-me de que, certa feita, numa entrevista, revelou que jamais experimentou um orgasmo.

Mas, certamente, terá experimentado incontáveis êxtases, o prazer do Espírito superior que sublimou o impulso criador.

Liberando-se das imposições do sexo carnal, fez-se agente do Céu a fecundar a Humanidade para as realizações supremas da Virtude e do Bem.

Na adolescência, quando o Espírito desperta para a experiência terrestre, em plenitude de energias, o impulso sexual, como elemento de perpetuação da espécie, tende a manifestar-se fortemente, estimulando a comunhão carnal.

Com o avançar do tempo, arrefece o ardor físico, mas não cessa o impulso criador do sexo.

É quando somos convidados a sublimar a energia sexual, em favor das realizações mais nobres.

O idoso gera sérios problemas para si mesmo quando não atende à sabia orientação da Natureza e pretende sustentar a virilidade da juventude, apelando para os estímulos das aventuras extraconjugais e do sexo promíscuo, comprometendo-se em desvios que lhe imporão amargas retificações.

Acabará por descobrir que há muito mais prazer e uma satisfação muito mais duradoura na comunhão de ideais, envolvendo pessoas que se decidem a nobres realizações no campo do Bem e da Verdade do que na empolgação de fugaz comunhão carnal.

É a partir dessa constatação que começam a surgir os eunucos por causa do Reino dos Céus, em gloriosa jornada da animalidade para a angelitude.