Setenta Vezes Sete

CAPÍTULO 5

JÁ VIMOS ESSE FILME



Lucas 18:15-17 Marcos 10:13-16 Mateus 19:13-
Jesus transmitia seus ensinamentos, preparando os corações para o Reino de Deus,|

quando algumas crianças foram colocadas à sua frente, a fim de que as abençoasse.

Era costume entre os judeus que os homens santos ministrassem suas bênçãos - uma evocação da proteção divina sobre crianças e adultos.

O ato de abençoar enraizou-se no Cristianismo, estendendo-se ao próprio relacionamento familiar, envolvendo pais e filhos.


Não são poucos os que guardam, no tesouro das recordações mais ternas da infância, expressões assim:

—A "bença", pai!

—Deus te abençoe, filho!

—A "bença", mãe!

—Deus te abençoe, filho!

A criançada podia dormir tranquila!

Estava presente a proteção divina, evocada pelos pais!

Gente com mania de originalidade contesta o ato de abençoar, sob a alegação de que tende a estabelecer barreiras entre pais e filhos.

O que abençoa situa-se acima daquele que é abençoado.

Isso inibiría a comunhão afetiva.

Levada às últimas consequências essa orientação, deveriamos eliminar toda disciplina no lar, porquanto, qualquer iniciativa nesse sentido representaria o exercício de indébito autoritarismo, a erguer barreiras entre adultos e crianças.

Ah, esses doutos!

Quando o cérebro se desliga do coração, perde o rumo e envereda por estranhos caminhos.


Raciocínios dessa natureza inibem uma das mais belas manifestações de afetividade no lar: Os filhos que pedem a bênção de seus pais. -

Os pais que abençoam seus filhos.


* * *

Os discípulos aborreceram-se com a presença das crianças, mas Jesus os conteve:

—Deixai vir a mim as criancinhas, porque delas é o Reino de Deus.

Em verdade vos digo que aquele que não receber o Reino de Deus como uma criança, de modo algum entrará nele.

Abraçando os pequenos, abençoou-os, impondo-lhes as mãos.

Situava, assim, as crianças como o símbolo das condições necessárias ao ingresso no Reino de Deus.

Bem, em princípio, uma perguntinha: Onde fica?

Se você não sabe, leitor amigo, não se preocupe.


Em outra passagem evangélica (Lucas 17:21), o próprio Mestre informa:

—O Reino de Deus está dentro de vós.

Então, não se trata de local geográfico, na Terra ou alhures.

E um estado de consciência!

. Céu está em algum recanto, em nosso universo interior.

Obviamente, o inferno também.

Diriamos que são realizações pessoais, condicionadas ao que pensamos e fazemos.

Uma senhora vivia desolada e infeliz!

Dizia-se mal-amada...

O marido não lhe dava atenção; os filhos a desrespeitavam; os vizinhos eram invejosos; o pessoal de sua igreja agia com falsidade; sua vida, um tormento! Quando desencarnou, por uma questão de afinidade, ela, que cultivava um inferno em seu coração, viu-se em região de sofrimentos.

Ali, mais que nunca, sentia-se infeliz.

Mal-amada...

Reclamava que Deus não lhe ouvia as orações. Via-se cercada de gente atormentada; revoltava-se contra o destino ingrato, mergulhada num oceano de aflições...

Depois de muito sofrer, brilhou em seu coração uma réstia de humildade.

Lavou o coração com lágrimas contritas, implorando a complacência divina.

Imediatamente foi socorrida por benfeitores espirituais que a levaram para estágio reparador, em maravilhosa colônia espiritual.

Ali vivia uma comunidade feliz e ajustada, que observava integralmente o Evangelho, cultivando os valores do Bem.

A senhora esteve satisfeita...

por algum tempo.

Em breve caiu nos tormentos a que se habituara. .

Mal-amada...

Ninguém lhe dava atenção...

Havia falsidade nas pessoas...

A ladainha de sempre!

Vivendo em autêntico paraíso, permanecia no inferno que sustentava em si mesma.


* * *

Em Velho Tema, Vicente de Carvalho (1866-1
924) exprime essa arraigada condição humana: a incapacidade de sermos felizes por não valorizarmos o que a vida nos oferece.

Só a leve esperança, em toda a vida, Disfarça a pena de viver, mais nada;

Nem é mais a existência, resumida, Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada, Sonho que a traz ansiosa e embevecida, E uma hora feliz, sempre adiada E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos, Arvore milagrosa que sonhamos, Toda arreada de dourados pomos, Existe, sim; mas nós não a alcançamos Porque está sempre apenas onde a pomos E nunca a pomos onde nós estamos.

Onde estivermos, na Terra ou no Além, sustentaremos o céu ou o inferno, construído na intimidade de nosso ser com as ferramentas do cérebro e do coração, tendo por material o que pensamos e sentimos.

Para ingressar na recôndita região de nosso universo interior, onde está o Reino de Deus, é preciso uma senha.

Ser como as crianças - revela Jesus.

Há algo inerente à natureza infantil que devemos imitar para abrir as portas do paraíso interior.

A senha se compõe de duas virtudes.

• Pureza.

A criança não é maliciosa, não vê o mal no comportamento alheio, não se compraz com a maledicência, não guarda mágoas, desconhece a hipocrisia.

É capaz de relacionar-se com qualquer pessoa, independente da cor, raça, nacionalidade, religião, posição social...

• Simplicidade.

A criança não se sente infeliz por morar em singela cabana.

Diverte-se tanto com um pau de vassoura feito cavalo, quanto o faria o menino rico num palácio, movendo-se em patinete motorizada.


* * *

Para entrar no Reino de Deus, na intimidade de nós mesmos, é preciso resgatar a criança que fomos, aprisionada na teia das ambições, dos vícios e das mazelas.

Evidentemente, não é fácil.

Como diz André Luiz, contra a pálida réstia de luz do presente, simbolizada pelo desejo de melhorar, há montanhas de trevas do passado.

Proclama o apóstolo Paulo (Romanos 7:19): O bem que eu quero, não faço.

O mal que não desejo, esse eu faço.

Temos visto esse filme, no desdobrar de múltiplas existências.

Mudam os cenários, mas o enredo é sempre o mesmo: Começamos a vida como "mocinhos", dispostos a mudar o.

mundo.

Terminamos como "bandidos", comprometidos por vícios e mazelas.

E preciso produzir um filme diferente, nos estúdios da Vida.

Perseverar nos bons propósitos...

Lutar contra nossas tendências inferiores...

Conservar fidelidade ao Bem...

Cultivar ideais que nos permitam sustentar a simplicidade e a pureza dos verdes anos. "Mocinhos", jamais "bandidos".

Bem-aventurados, jamais mal-amados.

No Céu, ainda que enfrentando as agruras da Terra.