Lições para a Felicidade

CAPÍTULO 24

SÓRDIDOS PORÕES



"A caridade, segundo Jesus, não se restringe à esmola; abrange todas as relações em que nos achamos com os nossos semelhantes, sejam eles nossos inferiores, nossos iguais, ou nossos superiores. (...) (Comentários de Allan Kardec à resposta de n°
886) A civilização, dita cristã, no ocidente, ainda não compreendeu que Jesus é o exemplo da centralidade mais admirável que se conhece. Em todo o Seu ministério jamais houve lugar para a exclusão, para a exceção. Ele sempre se caracterizou pela proposta de solidariedade humana e pela igualdade dos direitos humanos.

A Sua proposta renovadora tem uma direção certa: a transformação moral da criatura para melhor, sempre e incessantemente. Nesse sentido, ninguém se pode considerar indene ao crescimento interior ou pelos demais excluído da oportunidade.

Jamais o Mestre preferiu aqueles que têm mais ou que pensam ser mais, preterindo aqueloutros detestados, marginalizados, esquecidos.

À semelhança dos profetas antigos, Ele veio resgatar os mais sofridos, os mais perseguidos, os mais desesperados. Não há lugar em Sua palavra para qualquer tipo de preconceito. Ele próprio pertenceu a um lugar de excluídos, conforme anotou João no comentário feito por Natanael, quando convidado por Filipe para conhecê-IO: - Pode vir alguma coisa boa de Nazaré? (Jo 1:46) Não poucas vezes Ele sofreu o opróbrio, a humilhação, o acinte, a perseguição sistemática.

Conhecendo, portanto, a hediondez da perversidade e da injustiça humana, Ele coloca no centro aqueles que são empurrados para a periferia, para a marginalidade, fazendo com eles um pacto de amor. É esse amor que viceja em toda a mensagem neotestamentária, renovando as esperanças do mundo e apontando um rumo de segurança onde predomine a vera fraternidade.

Os indivíduos que se apresentam como sendo mais poderosos, mais possuidores, também não foram rejeitados, porquanto Ele sabia que esses igualmente são infelizes, refugiando-se no terror, na opressão, na vingança, na exploração do seu próximo, por cujos artifícios se sentem seguros nos tronos de mentira em que se assentam.

Os opressores, os perseguidores, são pessoas que perderam a direção de si mesmas, tornando os corações empedrados, por não se permitirem a doçura que tanto desejam e de que sentem irresistível falta, invejam-na, em quem a tem, e por isso, mediante a projeção do seu conflito, perseguem-no implacavelmente, com violência, como se a houvessem roubado do seu sacrário íntimo.

Jesus respeitou todas as vidas, concedendo o direito de cidadania igualitária a todos quantos adotassem o reino de Deus e se empenhassem pelo conseguir.

Os modernos cristãos, conforme ocorreu com muitos outros no passado, não compreenderam esse ensinamento, que registraram no cérebro, mas não insculpiram nos sentimentos. São capazes de abordar o tema da solidariedade com lágrimas, no entanto, não saem do pedestal em que se encastelam para proporcionar centralidade ao seu próximo, arrancando-o da periferia marginalizadora.

Não obstante as gloriosas conquistas culturais, científicas e tecnológicas, o ser humano ainda mantém o seu próximo em muitos porões de exclusão, que são habitados pelos que se fizeram ou foram tornados marginais: crianças que se prostituem por imposição da crueldade moral, geradora da miséria socioeconômica, pela escravidão do indivíduo que não tem escolha e perdeu a liberdade de decisão e de movimento, e os que vivem nas ruas do mundo, desconsiderados e sem quaisquer direitos, perfeitamente descartáveis pela sociedade hedonista.

Suas dores, suas necessidades, são propositalmente ignoradas, e não raro, tidos como lixo social, são assassinados, exilados, expulsos dos seus guetos, porque enxovalham a sociedade que os excluiu.

Trata-se de hediondez da modernidade, que somente pensa no crescimento horizontal do seu poder e da sua libertinagem, esquecendo-se do ser humano em si mesmo, que é o grande investimento da vida.

Nesse lixo socialencontram-se também muitas joias perdidas: homens e mulheres de bem e de valor, que derraparam nas ruelas da existência e não tiveram resistência para enfrentar e vencer as vicissitudes, enveredando peio alcoolismo, pela toxicomania, pela perversão de conduta nos vícios sexuais, vivendo nos escuros porões que lhes servem de refúgio.

Perdida a dignidade humana, eles relutam para permanecer nesses sítios de vergonha e sombras, sendo denominados como criminosos, mesmo que crime algum hajam cometido.

Rotulados de lixo, criminosos, excluídos, gentalha, vidas inúteis, perdem a identidade e não se encorajam a recuperar a sua humanidade, aquela que lhes foi tirada e nunca devolvida.

Afirma-se que esses irmãos da agonia se recusam a sair dos porões onde se encontram, e que, ao serem retirados, fogem de retorno aos mesmos lugares nos quais se entregam aos disparates da vergonha moral. Talvez tenham razão com a exceção, jamais com a totalidade.

Ocorre, muitas vezes, que se encontram enfermos, sem autoconfiança, sem nenhuma autoestima, e autopunem-se, após haverem sido torturados, estuprados, pervertidos. A sua terapia de recuperação é lenta, quanto o foi a imposição da degradação, da perda de sentido existencial.

É impressionante observar como poucos cristãos dão-se conta do que está ocorrendo à sua volta e poderá atingir o seu castelo de refúgio e de ilusão. Mesmo quando vêm à superfície as denúncias contra a dignidade do seu próximo e eles aparecem como fantasmas apavorantes, esses cristãos cerram os olhos para não os ver e tapam os ouvidos, a fim de não escutarem o clamor das suas vozes, porque isso os perturba e inquieta, tirando-lhes alguns momentos de sono ou de excesso de alimentos.

... E confessam a crença em Deus, a Quem dizem amar, em Jesus, que tomam por modelo teórico, mas não Lhe seguem os ensinamentos libertadores.

Perfumados e bem vestidos, evitam o contato com eles, nunca se permitem ir aos porões, temem-nos e abandonam-nos, quando deveriam visitá-los e amá-los, procurando conviver com eles, trazendo-os à luz do dia da compreensão de todos.

Eles ficam nos seus porões, e os cristãos nos seus esconderijos de luxo e de proteção, com medo deles, aqueles a quem Jesus procurou trazer para o centro, retirando-os do abismo escuro em que se refugiavam.

Felizmente, nem todos os cristãos se escondem do seu próximo retido nos porões. Eles denunciam a sua existência, tentam arrancálos dos sórdidos lugares onde jazem, esquecidos e perseguidos, recordando-se de Jesus e imitando-O.

Raia uma luz na treva em favor dos excluídos, ainda muito débil, é certo, mas que se expandirá como o rosto brilhante da manhã após a noite renitente que vai devorada pela claridade.

O novo Cristianismo propõe que se acabem com os porões, que se recicle o lixo social mediante os mecanismos do amor, que se traga para o centro da comunidade todos aqueles que têm sido excluídos, de forma que a sociedade se torne verdadeiramente digna do Mestre e Senhor, que é Modelo e Guia para todos através dos evos...