907. Será substancialmente mau o princípio originário das paixões, embora esteja na natureza?
O desenvolvimento da afetividade decorre do amadurecimento psicológico do ser que cresce, a esforço moral, ampliando a capacidade de entendimento emocional e cultural. Nem sempre, porém, resulta da aquisição de cultura, mas sim da perfeita harmonia entre sentir e saber, de modo que se possam evitar os distúrbios que, não raro, surgem durante o processo de evolução.
A afetividade é de incomparável necessidade para a afirmação dos sentimentos e da consciência humana, em razão da constituição espiritual, emocional e psíquica de que todos são constituídos.
Quando irrompem as emoções em catadupas, ante o encontro com outra pessoa, que produz impacto de alta expressão, que se transforma em desejo, esse não é um real sentimento de amor, mas sim de paixão. A paixão, invariavelmente, é um fenómeno de transferência psicológica, mediante o qual o indivíduo se deslumbra por si mesmo, refletido naquele que o atrai e lhe provoca encantamento. A sua porção feminina, quando se trata de um homem, ou masculina, quando seja mulher, expressas nos conteúdos psicológicos anima eanimus, é projetada para o outro, que passa a habitar uma galeria mitológica, tomando-se um alguém irreal que necessita ser conquistado.
Todo o empenho é desenvolvido para consegui-lo, e os estímulos orgânicos se tornam poderosos, em face da atração magnética de ordem sexual que é experiênciada, atuando de maneira a levar o apaixonado a triunfar sobre a sua presa que, adorada, sintetiza todas as ambições e necessidades do conquistador. É semelhante às ocorrências do mesmo género no panteão mitológico dos deuses. O ser humano, no entanto, não é deus algum, mas ser com sensibilidade e sentimentos comuns...
No começo o relacionamento é intenso, a admiração é constante, porque a imagem projetada inspira todo esse encantamento e interesse.
À medida, porém, que a convivência demitiza o sobrenatural da afetividade desequilibrada, a realidade assume o inevitável papel de controle das emoções, e o despertamento traz o desencanto e a amargura que passam a conviver com os parceiros, quando não o desentendimento, a agressividade, a violência, o crime...
Normalmente, após o estabelecimento de qualquer fenómeno de paixão afetiva, surgem o acordar da consciência e o conflito de comportamento, que levam a sofrimentos que poderiam ser evitados, caso se houvesse agido com equidade e maturidade psicológica.
Esse tipo de arrebatamento que conduz ao imaginoso, à fantasia, ao mítico, atribuindo virtudes e belezas a outrem, que as não possui, de um para outro momento, é como o fogo-fátuo, de efémera duração, sendo efeito da combustão de gases que evolam dos cemitérios e pântanos, que brilham e logo desaparecem...
Nessa projeção de belezas com promessas de felicidade perene, em breve tempo sucumbem as aspirações cultivadas e logo surgem os conflitos perturbadores, que também são reflexos da personalidade atribulada e insatisfeita que busca prazeres sexuais e outros, distante das emoções enriquecedoras e de alto significado.
Esse tipo de busca - a do sexo sob impulsos de desordenadas aspirações do prazer - não satisfaz, deixando sempre um sentimento de culpa, quando não se dá também o de frustração, que envilece e amargura.
Raramente se transforma em motivo de aprimoramento moral, porque o indivíduo se escraviza e se entrega, perdendo a sua realidade, quando se prolonga por algum tempo mais esse tipo de chama abrasadora.
As consequências são sempre infelizes. A história da literatura oferece exemplos muito significativos que merecem reflexão.
O poeta Shakespeare encontrou a solução para deixar a imaginação humana continuar a paixão de Romeu e Julieta, mediante a tragédia que elaborou para consumi-los, desde que ela não suportaria o desgaste da convivência diária, os conflitos de conduta no relacionamento constante.
Marco António, o vitorioso de Roma, e Cleópatra, a rainha do Egito, são também um exemplo trágico da paixão por projeção, que termina em caos.
Abelardo e Heloísa igualmente experimentaram as consequências da irreflexão e sofreram a abrupta interrupção do encantamento, pagando o alto preço que se transformou em belas páginas escritas pelo primeiro, que assim eternizou os sentimentos de ambos, que não puderam consumar.
A relação é muito grande dos célebres enamorados, que a paixão devorou, pela falta de estrutura e da presença do amor real.
O amor é dúlcido, sem violência nem arroubos desesperados, que incendeiam e aniquilam. A sua mensagem é real, sem o imaginário do desequilíbrio nem do fantasioso, constituindo estímulo para quem ama sem sofrer desgaste, tanto quanto para o ser amado que não se submete.
Na paixão, sempre existem os componentes da dominação, do ciúme, da insegurança, do desespero, enquanto que, no amor, todo sentimento se enriquece de paz e de alegria, construindo o futuro a dois, sem perda da identidade nem da personalidade de qualquer um deles.
Enquanto a paixão é feita de impulsos imediatistas e extravagantes, o amor se expressa pela ternura e pela confiança, contribuindo para o crescimento moral do indivíduo que avança no rumo de mais altas aquisições.
Na raiz de muitas conquistas do género humano encontra-se uma admirável história de amor, que não se desfaz em tragédia nem se despedaça no fragor dos desentendimentos afetivos.
O ser humano é convidado pela vida ao encontro da própria alma, à conquista do seu espaço interior, que não pode ser violado por ninguém, e o amor é o inspirador dessa viagem de segurança, que faculta o descobrimento da realidade e o equipa com instrumentos próprios para administrá-la de maneira eficiente a serviço do progresso moral e da plenitude.
Sob a inspiração do amor a alma é conquistada, mas, por outra forma, a alma não pode prescindir dos estímulos do amor.
Eis por que se pode asseverar que o amor é de conteúdo divino, enquanto que a paixão é uma consequência dos tormentos humanos.
A paixão se nutre dos desejos que defluem do magnetismo sexual, enquanto que o amor é fruto do amadurecimento psicológico e do discernimento espiritual.
A paixão é rápida e deixa escombros, enquanto que o amor é duradouro e oferece sementeira de bênçãos.
O Evangelho de Jesus é o poema que canta o Seu amor pela Humanidade de todas as épocas, retratando em páginas de incomparável beleza a Sua doação de vida e de entendimento em relação a todas as criaturas que Lhe constituíam o objetivo a que se entregou.
Oferecendo-se em holocausto humano, permaneceu fiel à Sua mensagem de libertação afetiva, sem frustração nem angústia, encerrando aquela fase do Seu messianato com insuperável declaração de entendimento da incoercível inferioridade dos Seus perseguidores: - Perdoa-os, meu Pai, porque eles não sabem o que fazem.
A grande paixão de Jesus é a criatura humana, mas as paixões humanas, normalmente são caracterizadas pelos instintos e desejos desenfreados, exceto quando direcionadas para as construções do bem e do amor em qualquer lugar onde se apresentem.