163. A alma tem consciência de si mesma imediatamente depois de deixar o corpo?
A herança mitológica existente nas criaturas humanas é responsável pela crença de que lhes basta o arrependimento de uma ação negativa para que se libertem das consequências que lhes advêm inevitavelmente.
O comportamento simplista e enganoso que as caracteriza levaas a crer que o fenômeno da morte é também de libertação das penas e dos crimes perpetrados, bastando somente que haja a aceitação de uma ou de outra conduta religiosa, através da qual se pode conseguir a plenitude, sem recordação do passado nem apego aos interesses que constituíram a razão de ser da existência recém-encerrada.
O hábito ancestral do perdão concedido no momento in extremis do ser, mediante ritualística destituída de emoção por parte do celebrante, não consegue proporcionar ao Espírito a harmonia que não cultivou durante toda a trajetória física, ou mesmo conceder-lhe a felicidade para a qual não se empenhou através das atitudes de enobrecimento e de solidariedade que lhe são indispensáveis.
A realidade, porém, é muito diferente.
Morrer é fenômeno biológico de grande significado e de repercussões profundas para aquele que deixa o invólucro orgânico.
De acordo com os hábitos vivenciados e a conduta mental mantida, ele permanecerá vinculado aos despojos, que já não mais o atenderão, ou experimentará rudes aflições de que não tem facilidade para superar.
Imantado ao corpo somático por meio do perispírito, célula-acélula, mediante a circulação sanguínea, o desprendimento somente ocorre quando a mente em equilíbrio se adapta às novas condições do campo vibratório no qual ora se encontra.
As aspirações e necessidades, os vícios e virtudes mantidos, os sentimentos de apego ou de libertação que fizeram parte do seu dia a dia, constituem algemas de retenção aos despojos mortais ou asas para a ascensão aos paramos da felicidade que almeja.
Não se interrompem os anseios do sentimento ou das paixões demoradas pelo simples ato da cessação do fenómeno biológico.
Os automatismos fisiopsicológicos prosseguem sem solução de continuidade, induzindo aos mesmos hábitos, ora impossíveis de realizados, transformando-se, desse modo, em angústias e perturbações que se prolongam pelo tempo necessário à sua libertação.
A perturbação espiritual resulta da surpresa que toma o desencarnado ante a ocorrência para a qual não se preparou convenientemente, constituindo-lhe grande frustração e motivo de arrependimento tardio.
Sensações peculiares àquelas que foram mantidas pelo corpo, através da imantação do perispírito, permanecem afligindo sem consumar-se, o que constitui grave desequilíbrio para o Espírito.
Necessidade incoercível de volver ao corpo ou evitar-lhe a decomposição, torna-se-lhe motivo de desespero incomum.
Acompanhar a matéria entumecida e em degeneração, produzlhe pavor indescritível que o aturde e o enlouquece, como é compreensível.
A surpresa ante a realidade que o toma fere-lhe profundamente o sentimento, que se esfacela sob os camartelos da angústia e do medo.
A presença irónica daqueles com os quais mantinha convivência espiritual enquanto na Terra, constituindo-lhe o grupo de sintonia, aparvalha-o, deixando-se arrastar a regiões de sofrimento e alucinação que se alargam por período indefinido.
Por outro lado, aquele que se afeiçoou ao Bem e administrou as más paixões, os vícios lamentáveis, desperta fora do corpo em estado de torpor, recuperando lentamente a razão e sendo recebido pelos afetos que o precederam, ora em júbilo ante a sua chegada.
A gratidão pela existência vivida com equilíbrio, dignidade e enobrecimento enfloresce a mente de alegria, constatando, então, que a continuidade da vida é bênção de incomum significado, que ora se apresenta como compensação às lutas experimentadas e aos sacrifícios enfrentados.
Quando alguém desperta de um tratamento cirúrgico, conforme o seu estado nervoso habitual, apresenta-se em tranquilidade ou desesperação conforme os hábitos mentais longamente mantidos.
Da mesma forma, a morte ou desencarnação - tratamento cirúrgico de porte total - faz que o indivíduo desperte mantendo a mesma conduta que o assinalava antes da ocorrência.
Inevitável que a perturbação espiritual seja o normal para a grande maioria daqueles que são convocados pela morte ao retorno à Pátria espiritual.
Não são poucos os homens e mulheres vinculados ao sensualismo, aos interesses sórdidos, às posições de destaque e dominação social, que da existência somente souberam experimentar o que lhes interessava ao egoísmo, que chegam ao Além-túmulo sem dar-se conta da ocorrência, continuando, perturbados e aflitos, com exigências descabidas e nunca atendidas, e rebeldias injustificáveis que mais os tornam desditados e infelizes.
Diante da inevitabilidade do fenômeno da morte, devem todas as criaturas habituar-se à reflexão em torno do despertar espiritual.
Conforme seja vivenciada a existência, assim será o acordar além das vibrações do mundo físico.
Não existem milagres que beneficiem alguns eleitos em detrimento dos demais.
Cada ser carrega em si mesmo as algemas e as asas de que se utilizará após a morte do corpo físico.
A perturbação espiritual que acompanha o ser que sai do casulo orgânico pode ser de pequeno ou demorado curso, conforme a necessidade do despojamento das imperfeições que lhe tisnam o caráter e o vinculam ao magnetismo das paixões inferiores ou às vibrações enobrecidas que lhe eram peculiares.
Pensar na morte e no despertar deve fazer parte da agenda de reflexões de todos, porque ninguém se eximirá à desencarnação, preparando-se, desde agora, para o seu momento que, por mais se demore, chegar-lhe-á fatalmente.