Betsaida era, ao tempo de Jesus, uma aldeia quase insignificante a noroeste do lago Tiberíades.
Suas terras férteis respondiam às necessidades de todos quantos ali viviam.
Quase desconhecida, a pequena Betsaida beneficiava-se do clima ameno, que resultava do imenso lago próximo cujas águas repousavam na profunda fossa de Ghor.
A pouca distância das águas piscosas constituía um lugar bucólico e agradável, passagem quase obrigatória dos viajantes que demandavam as regiões altas.
Em Betsaida nasceram Pedro, André e Filipe.
Homens simples e sem cultura escreveríam, com as suas vidas, a epopeia do amor, incorporando-se à Galeria dos heróis da Era Nova.
Jamais lhes havia passado pela mente a dimensão da empresa que ora iniciavam.
O seu Mestre, a Quem amavam, arrebatava-os, e o conteúdo do Seu discurso fascinava-os. Todavia, faltava-lhes sensibilidade, penetração de consciência para aquilatar a grandeza, todo o significado da resolução que o jovem galileu lhes propunha.
Aquelas palavras que fluíam da Sua boca, como labaredas flamejantes, incendiavam-lhes as modestas aspirações. No entanto, tímidos, a sua percepção não os projetava além dos breves limites geográficos dos lugarejos e cidades ribeirinhos, no máximo, das margens do mar, que lhes parecia imenso, face à sua extensão de vinte quilômetros de comprimento por dez quilômetros de largura...
Por esses e outros fatores, a pequena Betsaida entraria na história dos fastos estoicos da Boa Nova e parecería, à posteridade, um risonho lugar, cercado de rosais delicados, verdejante na sua policultura doméstica.
Nos arredores de Betsaida vivia um jovem que era cego.
A cegueira é amarga provação.
Os olhos são a candeia do corpo, como Ele próprio o dissera.
Graças a essas lâmpadas luminescentes o ser pode deslumbrar-se com a beleza da paisagem, penetrar o insondável das coisas, entender o mistério da vida.
São, os olhos, as janelas abertas para o firmamento, para o fascínio dos. astros.
Ser cego é permanecer no sombrio corredor da solidão emocional.
A cegueira torna-se fardo pesado, especialmente quando ocorre na juventude.
Diz-se que aquele que nasceu cego, porque não tem conhecimento da luz, certamente não experimenta mais profunda frustração, mais angustiante aflição.
Está acostumado — assevera-se, e assim diz-se, porque não se conhece a marcha pela rota em sombras.
O jovem era cego do corpo e desejava enxergar. Não havia, porém, possibilidade, perspectiva alguma para esse tentame.
Entregue à sua realidade, seguia, a passo lento, sem aspiração em favor de um amanhecer clareado pelo sol da alegria visual.
Ele era cego e quase feliz. Quase feliz, porque há outros cegos, aqueles que enxergam, porém não querem ver a verdade, não procuram discernir.
O discernimento é fenômeno da razão e do conhecimento, que norteia o destino do homem honrado, que se lhe entrega antes de agir.
O cego do espirito, aquele que se recusa a utilizar a consciência que discerne na aplicação dos valores éticos, este, sim, é realmente infeliz.
O cego dos olhos tropeça nos caminhos por onde seguem os seus pés. O outro, o da alma, corrompe os sentimentos e destroça os valores íntimos da dignidade, da paz.
Aquele jovem, sabendo da presença de Jesus em Betsaida, acercou-se, com ansiedade, e sem palavras rogou socorro. Era, o seu, um apelo profundo que partia do coração. Nele misturavam-se aspirações e receios, necessidades e incertezas. Ele intumesceu a alma de esperança e aguardou.
O Amigo Divino, que penetrava o mundo íntimo de todos, recebeu-lhe a rogativa e compreendeu a sua aflição.
Jesus amava as criaturas e o Seu amor era feito de compreensão e ternura.
Sabia que elas ainda estagiavam nos patamares inferiores do imediatismo, do prazer. E porque as entendia, descia, anuindo às suas necessidades, favorecendo os seus desejos, a fim de erguê-las, depois, aos degraus mais elevados da vida.
O Senhor tomou o jovem pelas mãos e levou-os aos aforas da aldeia.
Não desejava testemunhas para o que iria fazer. Seria uma terna ação de amor, discreta e rica de bondade.
Tão logo se encontrou a sós com o ansioso candidato à luz dos olhos, umedeceu os dedos com saliva e tocou-lhe a vista apagada.
Certamente, não necessitaria fazer desse modo. A saliva, porém, simbolizava o hálito da vida, e como Ele se dizia a Vida, transmitia, dessa forma, a energia vital ao padecente, cuja harmonia de conjunto estava alterada.
— Vês alguma coisa?
̈iu o jovem, emocionado — vejo os homens; vejo-os como árvores a andar.
A imagem era perfeita.
Sua visão das criaturas era sem contornos, sem discernimento, sem parâmetros de forma e de cores.
A sua era outra realidade.
— Agora vejo!
Havia uma indefinível alegria bailando na sua face e a fulgurante luz estuante nos olhos desmesuradamente abertos.
— Vai — disse-lhe o Terapeuta — e não o digas a ninguém. Nem sequer entres na aldeia.
O silêncio, naquele momento, era necessário, indispensável à fixação da cura.
O tumulto, a pressão psicológica da massa, a suspeita dos frívolos, as tricas sacerdotais e dos principais da aldeia certamente o perturbariam.
Imprescindível que fruísse do benefício, que se adaptasse à situação nova, inusitada.
O amor de Jesus prossegue ainda hoje dirigido especialmente aos cegos espirituais, aos soberbos e déspotas, aos vãos e dominadores...
Multiplicam-se as Betsaidas na atualidade humana e escasseiam filhos como aqueles três que alargaram o reino, que então se iniciava e do qual participaram com abnegação e entrega total.
Eles viam através dos olhos e enxergavam o futuro mediante a percepção transcendente. Não tinham dimensão do que aconteceria, entretanto, ofereceram-se ao comando do Amor não amado.
Ele era cego e Jesus fê-lo ver por amor.