Mateus
Naqueles deploráveis dias a estes semelhantes, a aridez dos sentimentos confraternizava com a crueza dos comportamentos e das arbitrárias leis, decantadas umas como divinas e outras como humanas.
Havia prevalência, na cultura vigente, da preocupação imediata e angustiante em favor da sobrevivência de cada um e exclusivamente do seu clã, aventurando-se os excluídos do convívio social nas mais arriscadas arremetidas, sem escrúpulos nem respeito por qualquer código de justiça, que não os havia sequer razoáveis quanto mais de natureza justa.
A existência física dos homens e mulheres valendo menos ou quase o mesmo que uma alimária de carga era relegada ao desprezo, particularmente quando lançada ao baixo calibre social pelo dominante grupamento perverso.
Os aflitos e miseráveis formavam nuvens de necessitados e famintos, de párias desprezíveis que os sofrimentos crucificavam nas duras traves da amargura.
Formavam bandos como alcateias perigosas em luta pela sobrevivência.
Tomar aquilo que lhes era negado constituía lhes o princípio ético.
A separação hedionda de classes imposta pelas autoridades insensíveis, civis e religiosas, era humilhante, e os contatos humanos faziam-se agressivos e quase impossíveis.
Embora a Lei Antiga estabelecesse socorro aos esfaimados, pelo menos uma vez ao ano, quando se deveriam abrir as portas das propriedades para que se fartassem, o preceito foi sendo restringido de tal forma que somente o desdém escarnecedor lhes era oferecido.
Surgiu Jesus naquela grande noite como uma estrela polar e clareou-lhes a alma, em razão da Sua decisão de viver com eles, elegendo, preferencialmente, os enfermos de todos os tipos, a fim de curá-los, de elevá-los a Deus, pelo restituir-lhes a dignidade. Para tanto, participou das suas penosas e escuras aflições, sem imiscuir-se, porém, nas suas misérias. Comeu com eles e os estimulou à observância dos valores supremos da vida, que estão além das fórmulas e aparências...
Censurado, discriminado e combatido, continuou buscando lhes a convivência, em razão de ser o médico e o remédio, a porta de libertação do cárcere moral e a escada de ascensão de que podiam dispor, em vez de distanciar-se, piorando-lhes a situação de hilotas...
Peregrina luz que oscula o pântano, Jesus não se permitiu infectar pelo seu bafio pestilencial.
Qual lótus Divino abriu-se em flor miraculosa, abençoando o charco e drenando-lhe a podridão.
Ele era um Sol que a todos atraía, arrancando-os da escuridão em que fossilizavam...
Mas os soberbos serventuários da crueldade, os fâmulos da hipocrisia, acostumados à postura estudada e vazios de humanidade, não podendo diminuir-Lhe o brilho resplandecente, optaram pela morbidez da censura, essa filha espúria do despeito que os asfixiava.
O Cantor Sublime, porém, em contrapartida, adornava as vidas destruídas ou quase, com as refulgentes metáforas de sabedoria de que era portador.
As parábolas, em consequência, fluíam da Sua boca semelhantes a notas musicais da sinfonia de eterna beleza.
Naquele período, vivia-se o auge da revolução do Amor que atraía as multidões e as arrastava.
Os ventos brandos de uma primavera atemporal levavam a Sua voz por toda parte, diminuindo a sordidez humana e amenizando as angústias superlativas em predomínio na alma sofrida do povo.
O poema das bem-aventuranças alterara a marcha dos acontecimentos sociais, políticos e religiosos para sempre, assi-nalando um dos momentos magnos da epopeia de vida eterna.
Oportunamente, enquanto cariciosa brisa perpassava pela praia, Ele surgiu e assentou-se na barca de Simão, cravada nas areias de seixos miúdos e negros, destacando-se em silhueta emoldurada de luz que fascinava os súditos do Seu Reino em construção na Terra, e, porque muitos interessados se Lhe acer-cassem, Ele pôs-se a cantar parábolas.
—(...) O reino dos céus é semelhante ao homem que semeou a boa semente no seu campo; mas dormindo os homens, veio o seu inimigo, e semeou joio no meio do trigo, e retirou-se. E, quando a erva cresceu e frutificou, apareceu também o joio.
—Rabi, tem piedade de mim, que tenho fome...
—(...) O reino dos céus é semelhante ao grão de mostarda, que o homem, pegando nele, semeou no seu campo, o qual é, realmente, a menor de todas as sementes; mas, crescendo, é a maior das hortaliças, e faz-se uma árvore, de sorte que vêm as aves do céu, e se aninham nos seus ramos.
—Rabi, socorre-me na indigência em que me encontro.
—(...) O reino dos céus é semelhante ao fermento, que uma mulher toma e introduz em três medidas de farinha, até que tudo esteja levedado.
—Rabi, se Tu vens em nome de Deus, liberta-nos da miséria que nos enlouquece.
—Também o reino dos céus é semelhante a um tesouro escondido num campo, que um homem achou e escondeu; e, pelo gozo dele, vai, vende tudo quanto tem, e compra aquele campo.
—Rabi, não queremos o Reino do Céu, mas o da Terra mesmo nos serve...
—Outrossim, o reino dos céus é semelhante ao homem negociante que busca boas pérolas; e, encontrando uma pérola de grande valor, foi, vendeu tudo quanto tinha, e comprou-a.
—Rabi, não desejamos palavras, mas sim apoio violento para desapear do poder os injustos e exploradores.
—Igualmente o reino dos céus é semelhante a uma rede lançada ao mar e que apanha toda qualidade de peixes. E, estando cheia, a puxam para a praia; e, assentando-se, apanham para os cestos os bons; os ruins, porém, lançam fora. Assim será na consumação dos séculos: virão os anjos e separarão os maus de entre os justos, e lançá-los-ão na fornalha de fogo;...
Não houve nenhuma outra interrupção.
A ignorância dos desventurados é o madeiro que os crucifica sem cessar.
Naquele momento o tempo se tornou ilimitado, porque os demarcadores das horas cederam lugar à plenitude...
Os dois mundos em longo litígio haviam-se ali defrontado: o ontem, transitório e infeliz; com o de amanhã, de perene liberdade, naquele instante de iluminação.
As necessidades do corpo que pareciam fundamentais são apenas temporárias, e todos aqueles que as sofriam, morreram na sucessão dos dias...
Aqueles que as padeceram, no entanto, renasceram e voltaram a morrer, e ora se encontram de volta ao proscênio terrestre, aguardando as sementes, a pérola, a rede, em saudável despertar com discernimento.
As Suas parábolas permanecem como celeiro referto de esperança e de paz.
Ele continuou, depois daquele dia, cantando uma ple-tora de parábolas, a fim de que ficassem para sempre, conforme antes jamais acontecera e não mais voltariam a suceder.
O homem sábio planta as sementes do trigo sem temer 0 joio infeliz, porque o separará no momento da ceifa, sem nenhum prejuízo para a produção.
De igual maneira semeia também as pequenas obras quais se fossem grãos de mostarda, confiando na sua fatalidade de crescimento e de produção, sem qualquer receio, e aguarda o momento feliz de vê-la crescida e transformada em agasalho das aves dos céus.
Também aquele que se utiliza do fermento da Verdade e o coloca na sua função de levedar, vê-se abençoado pelo volume da farinha transformada em pão de vida, rejubilando-se com isso.
Encontrando-se um tesouro e guardando-o num solo desconhecido, qualquer ser lutará para amealhar recursos, a fim de adquirir a gleba toda e possuí-lo em intérmina alegria.
Muitas pérolas fascinam e provocam admiração, mas a Verdade destaca-se dentre todas e provoca mudança total de conduta até detê-la, enriquecendo-se em definitivo com bênçãos.
A existência humana são redes de pescar que os diligentes trabalhadores devem utilizar com sabedoria, e após reunir todas as experiências delas resultantes, selecionar aquelas que os promovem, enquanto as que perderam o significado sejam dei-xadas à margem, para reter somente as que produzem felicidade.
Jesus permanece o mesmo Cantor Incomparável daqueles inolvidáveis dias, e a multidão atual, algo desvairada, é a Sua meta nas praias do mundo, convidando-a ao Reino dos Céus.