Como seria inevitável, o escândalo explodiu na comunidade curiosa e perversa, após o jantar faustoso na vivenda famosa.
Simão, o fariseu, desejara exibir-se ao receber Jesus no seu lar, entre os seus amigos, de forma que O pudesse examinar com argúcia e ferocidade disfarçadas de gentilezas e respeito.
Uma refeição facultava maior intimidade entre o anfitrião e o convidado.
Ninguém poderia esperar que Jesus lhe aceitasse a invitação, porque sempre invectivava contra a ostentação e o luxo, a hipocrisia e a aparência de superioridade daqueles abutres de Israel.
Embora Simão o soubesse, arriscou-se, na tentativa de tê-lo sob o seu teto, e, para surpresa geral, Jesus aquiesceu em jantar com ele e os seus corifeus.
A sua preocupação era com a aparência, com os preceitos da Lei, com as vestes impecavelmente limpas, embora a podridão interior que a muitos assinalava.
Assim mesmo, necessitava de tê-lo perto, no convívio dos seus amigos igualmente ricos e insensatos.
Aquele desfecho terrível, em face da invasão da sua propriedade pela mulher vulgar, fora além dos limites do con-vencional.
Simão a humilhara com o olhar de reproche e de indignação. No entanto, a atrevida enfrentou-o, desafiadoramente, porque o sabia também seu cliente no silêncio da noite, quando lhe buscava a perversão...
Por isso, ele voltara-se contra o convidado, que poderia ter revertido a situação, negando-se à oferta estranha do bálsamo com que Lhe lavava os pés.
Antes, pelo contrário, Ele o constrangeu com a interrogação, que era uma armadilha, a respeito dos dois devedores que foram perdoados pelo seu senhor, atirando-o ao ridículo...
O seu ressentimento contra Jesus fora expressivo, a partir de então, prolongando-se, cada vez mais feroz através dos tempos.
Dele se utilizou, muitas vezes, para provocar reações inamistosas de referência ao Seu ministério.
As marcas do tempo aprofundaram-lhe o rancor e ele exultou de contentamento, quando soube, mais tarde, da sua crucificação...
A verdade é que nunca O esquecera.
Aquela mulher recuperada pelo Amor, no entanto, seguiu-O por onde quer que Ele fosse alimentando a alma com o Seu verbo de paz, transformando-se para sempre.
O Amor, em forma do perdão que recebera, tornou sê-lhe a razão da existência, e, mais tarde, ela dignificou-se, entregando a existência aos hansenianos.
Simão, no entanto, que vivia intoxicado pela presunção da classe social em que se movimentava, lentamente passou a experimentar peculiar melancolia.
As festas, a ostentação, o orgulho exacerbado, já não o faziam sorrir, e quando aparentava alegria no grupo social, apenas aparentava.
Algo profundo aconteceu-lhe no íntimo depois daquele jantar.
Os haveres amoedados, frutos da rapina e do excrucia-mento de muitas vítimas, que antes preenchiam as suas horas vazias de ideais, perderam o significado. Estranha falta de motivação, até mesmo para viver, passou a atormentá-lo, devorando-lhe as carnes da alma.
Sua mulher, em cujo afeto se renovava, enfermou durante um longo período até ser arrebatada pelo anjo da morte, e os filhos adultos solicitaram-lhe a herança a que tinham direito legal, transferindo-se para a capital do Império a fim de libertar-se do estigma farisaico, dominador, mas detestado.
Os anos, no seu inexorável suceder, dobraram-se, uns sobre os outros, e Simão acompanhou aturdido o renascimento da Doutrina do Homem crucificado, quando o rabino Saulo de Tarso, honra e glória da raça, expulso do Sinédrio, da família e do círculo dos amigos, pôs-se a divulgá-lO com o seu verbo de fogo.
Simão sentia viva a ferida do ressentimento no coração. Nada obstante, recordava-se, vez que outra, do jantar e a resposta que lhe dera à pergunta: qual deles o amará mais?
— (...) Tenho para mim que é aquele a quem mais perdoou... (Nota) O perdão, sem dúvida, é medido pela qualidade do esforço e pelo empenho do infrator na própria recuperação.
O antigo fariseu com o tempo emurcheceu como as uvas maduras que se-ressecam à medida que envelhecem.
O vinho que antes produziam, saboroso e especial, transforma-se em vinagre desagradável e ácido.
Simão continuava prestigiado pelos seus pares, temido pelo povo, solitário na sua velhice dourada.
No ano 70, após o cerco implacável a Jerusalém por Tito, o jovem filho do imperador Vespasiano, que tombou sob o horror das legiões, dando lugar à diáspora, também se assinalou pelas tragédias da crueldade dos vencedores sobre os inditosos vencidos.
Fariseus, sacerdotes, saduceus e o povo, que tentaram resistir atrás das muralhas da cidade, foram aprisionados pelos romanos, e o jovem conquistador decretou-lhe, quase insano, a pena de morte pela crucificação em que eram exímios os romanos.
Começou, naquela ocasião, o resgate coletivo do povo eleito que matara os profetas e assassinara o Excelente Filho de Deus.
Reduzidos a miseráveis, os orgulhosos representantes da raça, nas enxovias dos cárceres imundos, eram tratados com extrema crueldade, conforme sempre o fizeram com os seus próprios irmãos.
Inutilmente clamavam pela proteção de Deus, daquele deus dos exércitos que afirmavam lutar ao seu lado, sem que tivessem lenidas as aflições ou diminuídas as expectativas do assassinato em massa.
Numa tarde escaldante, nos arredores da cidade, Simão, o fariseu, foi também erguido na cruz e repassou, mentalmente, toda a trajetória existencial entre estertores e aflições sem nome.
Foi nesse ápice que se arrependeu da atitude mantida em relação a Jesus, desejando amá-lo, a fim de que, também, à semelhança da mulher infeliz, fosse perdoado...
Era noite, quando Simão, exangue e transtornado pelas dores extremas, rendeu o Espírito, a fim de recomeçar mais tarde, muito mais tarde, noutro corpo, noutra época, por ocasião da Era Nova, a própria redenção.
(Nota) Lucas