Sabedoria do Evangelho - Volume 1

CAPÍTULO 11

ANJOS E PASTORES



LC 2:8-14

8. Naquela região havia pastores que viviam nos campos e guardavam seus rebanhos durante as vigílias da noite.


9. Um anjo do Senhor apareceu-lhes e a glória do Senhor brilhou ao redor deles, e encheramse de grande temor.


10. Disse-lhes o anjo: "não temais, pois vos trago uma boa notícia de grande alegria, que o será para todo o povo,


11. e é que hoje vos nasceu. na cidade de David, um Salvador, que é Cristo Senhor;


12. e eis para vós o sinal: encontrareis uma criança envolta em faixas e deitada numa mangedoura".


13. De repente apareceu com o anjo uma multidão da milícia celeste, louvando a Deus e dizendo:


14. "Glória a Deus nas maiores alturas e paz na Terra aos homens de boa vontade".


Diz o evangelista que os pastores estavam "no campo", onde "viviam". Realmente, em torno da cidade

de Belém havia numerosas pastagens, onde era hábito viverem os pastores em tendas, a cuidar dos rebanhos. Todavia, após as grandes chuvas de novembro e no rigor do inverno, já nos fins de dezembro, não era provável que lá permanecessem: já deviam ter recolhido os rebanhos aos currais desde novembro. Daí deduz-se que o nascimento de Jesus não deve ter ocorrido em dezembro.

Sabemos, com efeito, que só muito mais tarde, em Roma, para "aproveitar" a festa de Mitra (natalis invicti solis", nascimento do Sol invicto (ou seja, a entrada do sol no solstício do inverno) festejado em 25 de dezembro, é que a igreja de Roma, por volta de 354 A. D. vulgarizou essa data a toda a cristandade, contrariando muitas outras tradições locais que festejavam o natal em datas diferentes. (Cf. Calendarius Philocalus, publicado por Theodor Mommsen, no Abhandlungen d Sachs Alcad. d. Wissensch em 1850). Nessa época os bispos da Síria e da Armênia acusaram os romanos de "admiradores do sol" e "idólatras".


O anunciador é chamado "anjo", e o verbo empregado por Lucas έφίστηµι, é muito usado nos autores profanos para exprimir a aparição dos espíritos (a que eles chamavam "divindades" ou "deuses", tal como o sânscrito os chama "devas", da mesma raiz).
O anjo dá-lhes uma "boa notícia", o que corresponde ao verbo grego εύαγγελίτοµαι, frequentemente usado por Paulo e por Lucas, mas que só aparece uma vez em Mateus (Mateus 11:5) numa citação dos LXX.

Aí também apresenta o mesmo sentido (cfr. 2SM 1:20-1CR 10:9. IS 40:9; IS 52:7; IS 60:1).


Também a palavra Salvador Σωτήρ é a primeira vez que aparece em o Novo Testamento. Mateus e Marcos não na empregam. Lucas emprega-a aqui e em Atos (5:31 e 13:
23) e João em 4:42. Entretanto é muito frequente em Paulo. No Velho Testamento a palavra se refere sempre a Yahweh.

Aparece, a seguir, aos pastores, um grande grupo ("milícia") de anjos, que cantam o célebre versículo, sobre o qual se estabelecem discussões.


Trata-se de um dístico em cuja primeira parte se celebra a glória de Deus nas maiores alturas, e na segunda parte a paz, na Terra, aos homens de boa-vontade. A polêmica nasceu de uma variante dos códices, pois o Sinaítico, o Alexandrino, o Vaticano, o de Beza, e as versões latinas e góticas trazem o geSABEDORIA DO EVANGELHO nitivo εύδοиιας, ao passo que o Régio, o de Wolfenbuttel, o de Tischendorf, o Sangalense, o de Oxford e muitas versões orientais trazem o nominativo εύδοиια. Os que seguem a segunda lição, lêem: "Paz na Terra e Boa Vontade aos homens". Mas essa leitura quebraria o ritmo do dístico, além do que seria indispensável, no grego, a partícula иαί (et), antes do terceiro membro do já então tríptico. Preferível, então, a lição tradicional, mesmo porque Deus tem boa-vontade para com todas as Suas criaturas, poi "não tem acepção de pessoas"; mas só lhe podem recebera paz, aqueles que têm boa-vontade e se voltam para Ele. É o exemplo que tantas vezes demos: a água jorra indistintamente para todos, mas o copo que estiver emborcado jamais se encherá, ao passo que se o virarmos de boca para cima, ele se encherá da água. Deus dá a todos igualmente, mas só recebem aqueles que "se colocarem em posição de receber" . A Lei Divina é a mesma em todos os planos e não tem exceções.

O ensinamento é de grande profundidade.

Verificado o Encontro, que se realiza no mais oculto do coração, embora este ainda esteja mergulhado no corpo animal de carne (na estrebaria), o recém-nascido é colocado no intelecto, que alimenta de luzes o corpo animal (na mangedoura), e daí expande suas luzes para todo o corpo. Nessa "região" há pastores que guardam o rebanho, isto é, há o sangue ("o sangue é a vida", DT 12:23); com efeito, é o sangue que guarda e alimenta todo o metabolismo e a vida no microcosmo, como um "bom pastor" que custodia seu rebanho (as células do corpo físico). Ao sangue aparece, por meio do sistema.

nervoso, o "anúncio" do extraordinário e divino fato. No primeiro momento, o sangue se retraí aterrorizado (a criatura empalidece), mas depois que recebe o aviso, se acalma, porque vem a saber que na Casa do Amado (na "cidade de David") - o coração - nasceu o Cristo que é o Salvador, e que lá se encontra sob a forma de uma criança envolta em faixas. Realmente, o Encontro se dá na "célulam ônada" que está fixa no ventrículo esquerdo do coração (exatamente no nó de Kait-Flake e His).

Ora, o sangue poderá dar-se conta desse nascimento, ao encontrar o "menino" espiritual, envolto em faixas (envolto em matéria), cercado do intelecto (José) e da intuição (Maria), que descem ao coração, na meditação profunda, mergulhando em si mesmo. Só quando a mente desce ao coração pode encontrar o Eu Profundo, a Centelha Divina, que lá permanece em estado latente, mas que nascerá um dia.

Ao entrar nesse local sagrado, depois de percorrer outros caminhos, e já purificado pela hematose nos pulmões, o sangue se regozija com o louvor a Deus, que ali jaz "aniquilado em forma humana", o infinito dentro de uma célula, o Verbo feito carne, e que se manifesta aos homens, que visita "seu povo". Aqueles que experimentaram o "Encontro Supremo" percebem, com iniludível clareza que sua circulação sanguínea se acelera e "responde" ao apelo de louvar a Deus. De modo geral, é nessas circunstâncias que percebemos a diferença entre um corpo comum e o corpo de um asceta, totalmente espiritualizado, embora ainda sujeito a todas as vicissitudes e necessidades carnais. De qualquer forma, no entanto, o próprio corpo do místico irradia, através da carne, a espiritualização interna.

Por isso o fato tem também repercussão externa. Qualquer pessoa que tenha a intuição desenvolvida, mesmo que não seja no grau máximo, percebe, sente, que aquela criatura teve o encontro, vive em união com Deus. E a criatura que experimentou essa felicidade não precisa convocar discípulos, adeptos e sequazes: todos a procuram espontaneamente, porque a intuição lhes avisa: "os anjos do Senhor" lhes revelam, sobretudo "durante as vigílias da noite", isto é, nas horas penumbrosas da meditação, e enquanto eles "guardam os rebanhos", ou seja, enquanto pacificamente cuidam de seus afazeres. Avisa-os intuitivamente. Os "pastores" inicialmente temem que possa tratar-se de um equívoco. Mas a insistência e a clareza do aviso os alerta de tal forma que eles resolvem abandonar, nem que seja por curtas horas, os negócios terrenos, para ir também em busca do recém-nascido, do homem novo que surgiu na Terra, Luz para o mundo, Salvação para todos.

Entoa-se, então, o hino místico da Glória a Deus que nasce nas criaturas, e de Paz às criaturas que foram visitadas pelo "nascimento" de Deus em seus corações.

Convém aqui salientar que esse "nascimento" corresponde, simplesmente a um DESPERTAMENTO.

O Cristo interno, a Mônada Divina, existe em tudo e em todos, no mineral, no vegetal, no animal, no homem, mas em estado latente, impulsionando-o à evolução, mas sem ser percebido pela própria cri atura. Quando esta descobre o caminho e "entra" no "reino-de-Deus" DENTRO de seu coração, aí descobre a Mônada Divina, e a ela se unifica no Encontro Sublime. Diz-se que "nasceu" o Cristo interno, secretamente, oculto aos olhos da multidão, colocado num estábulo que é o corpo de carne, e depois deitado na mangedoura, que é o intelecto, alimentador par excelência do homem-animal.