Sabedoria do Evangelho - Volume 2

CAPÍTULO 4

ÚLTIMO TESTEMUNHO DE JOÃO



João. 3:25-36

25. Ora, levantou-se uma discussão entre os discípulos de João e um judeu, acerca da purificação.


26. E foram ter com João e disseram-lhe: "Rabbi, aquele que estava contigo além do Jordão, de quem deste testemunho, eis que ali está a mergulhar, e todos vão a ele".


27. Respondeu João: "O homem não pode receber coisa alguma, se do céu não lhe for dada.


28. Vós mesmos me sois testemunhas de que eu disse: Eu não sou o Cristo, mas sou enviado diante dele.


29. O que tem a esposa é o esposo; mas o amigo do esposo, que está presente e o ouve, muito se regozija por causa da voz do esposo. Pois este meu gozo está completo:


30. é necessário que ele cresça e que eu diminua".


31. O que vem de cima, está sobre todos; o que vem da Terra, é da Terra; o que vem do céu, está sobre todos.


32. O que ele viu e ouviu, disso dá testemunho, e ninguém recebe seu testemunho.


33. O que recebeu seu testemunho, esse confirmou que Deus é verdadeiro.


34. Porque aquele que Deus enviou, fala as palavras de Deus, já que Deus não dá o Espírito sob medida.


35. O Pai ama o Filho e tudo pôs em sua mão.


36. O que crê no Filho tem a vida imanente; o que porém desobedece ao Filho, não verá a vida, mas sobre ele permanece o acicate de Deus.

Dessa atuação de Jesus, nasce uma disputa de ciúmes entre os discípulos de João e "um judeu". O assunto era a purificação, rito que os fariseus tanto prezavam, e de que salientavam a parte material, ao passo que Jesus sublinhava o lado espiritual. Os discípulos de João repararam na ascendência cada vez maior de Jesus sobre o povo, em prejuízo de João. E vão "fazer queixa" a seu rabbi. Embora reconhecessem que "Jesus estivera com João além do Jordão" (1:
28) e que o Batista "dera testemunho em favor dele" (1:32), no entanto a causa do ciúme se manifesta contra toda a lógica: "ele está a mergulhar e todo o mundo vai a ele" ... A expectativa era de suscitar um protesto enraivecido de João, pela "concorr ência desleal" ...

Como é HUMANA essa cena, em todas as épocas! ...

A resposta do Batista é magnífica de humildade e consciência de seu papel na História, e encerra em si preciosa lição de espiritualidade: "nada pode receber o homem, se do céu não lhe vier". Nada. Seja" bem" ou "mal", julgue-se "pobreza" ou "riqueza", atribua-lhe o nome de "poder" ou "escravidão", tudo vem do céu, embora possa parecer "justo" ou "injusto". Quem é capaz de JULGAR? Não podemos fazê-lo. O que nos parece bom pode ser mau e vice-versa. Nem julgar os outros, nem julgar-nos a nós mesmos. Incompetência total, por falta de dados: não penetramos o íntimo de ninguém, nem mesmo o nosso. Então, aprendamos a receber tudo com humildade.

Depois o Batista evoca o testemunho de seus discípulos, de que ele já antes declarara não ser o Cristo, mas apenas um enviado diante dele. Quem tenha consciência da Espiritualidade Superior, jamais se fará passar por quem não é. Embora pululem hoje, como sempre pulularam, os "missionários" divinos e os "mestres", todos se apresentam em seu próprio nome, assumindo, de modo geral, uma atitude muito superior à realidade, ou até mesmo forjando situações para engrandecer sua vaidade. O Batista ensinou com o exemplo, como agir certo: nada de arrogar-se prerrogativas imaginárias, frutos de sonhos vaidosos.

Apresenta, depois, uma alegoria bastante elucidativa: num casamento, é o noivo que possuirá a esposa.

No entanto, o amigo do noivo alegra-se ao sentir-lhe a alegria, de que ele participa integralmente. João é o amigo, que está radiante com a vitória de Jesus; e não o concorrente que se entristece por fica "para trás". Essa alegria atinge o grau máximo, pois é mesmo necessário que Ele (Jesus) cresça aos olhos do povo, e que ele (o Batista) se vá afastando aos poucos; tal como a Estrela d’Alva, que anuncia o Sol e que depois empalidece e morre, para deixar que o Astro-Rei envolva e fecunde a Terra com seu esplendor.


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O evangelista assume, então, a palavra e tece novos comentários, comparando Jesus com o Precursor: o que vem de cima (Filho do Homem) com o que vem da Terra (Filho da Mulher); o Homem Liberto das encarnações (samsara, na Índia, e ghilgul, na Palestina), com o que ainda está preso à roda fatídica do mergulho intermitente no ventre da mulher. O que não exclui que este último possa encontrar-se já no último degrau, pronto a passar para o outro nível, como era o caso de João Batista ("entre os Filhos de Mulher, ninguém é maior que João Batista", MT 11:11 e LC 7:28).


E em sendo assim evoluído, sabe perfeitamente o que se passa no mundo superior, onde permanece nos intervalos de suas descidas à Terra, porque se conserva desperto e consciente, provavelmente já no Plano Mental. E com isso consegue, ao reencarnar, recordar-se perfeitamente de tudo (prova-o, no caso do Batista, a alegria que teve ainda prisioneiro no ventre de Isabel, ao reencontrar Jesus, cfr. LC 1:41 e

44). Por isso, pode o evangelista dizer com segurança: "dá testemunho DO QUE VIU E OUVIU". O Batista viu e ouviu, e veio trazer seu testemunho de que Jesus vem "de cima" ou seja "do céu", das regiões mais elevadas do Espírito; mas, diz ainda, "ninguém recebe o testemunho de João", que afirma ser Jesus o Manifestante Divino do Filho Unigênito de Deus.


Mas, aqueles que recebem o testemunho, confirmam que Deus é verdadeiro (o adjetivo αληθης é a forma negativa do substantivo ληθης que significa "esquecimento", donde "não oculto", ou seja "sincero").

Passa a falar de Jesus: o Enviado (ou Manifestante), cujas palavras são as próprias palavras do Deus Interno, que Ele exterioriza através dos puríssimos canais de Sua humildade e de Seu amor. Isto porque, quando o Espírito está UNO com Deus, não há medida de restrição: "não dá o Espírito sob medida".

O Pai (o AMANTE) ama o Filho (o AMADO) e tudo colocou em Suas mãos. É aí que se declara a razão do livre-arbítrio que foi outorgado aos Filhos de Deus, e que tanto é respeitado pela Divindade que em nós reside: cada um conseguirá sua evolução na proporção de sua livre e espontânea vontade, com a duração maior ou menor, segundo seu alvédrio.

E é por isso que aquele que crê, que se unifica ao Filho (ao Cristo Interno) possui a VIDA IMANENTE; mas quem lhe desobedece, preferindo a matéria, esse não participará da vida espiritual, mas sentirá sempre sobre si o acicate de Deus.

Acicate é o aguilhão que faz os bois morosos caminharem mais rápido. Acicate, pois, moralmente, é a insatisfação que vem de nosso íntimo onde reside Deus, e que nos impele a evoluir bom ou mau grado: se o quisermos, tudo bem; se o não quisermos, o embate contra a Lei causar-nos-á dores e sofrimentos atrozes, que acabarão por fazer-nos encontrar o caminho certo.


A palavra οργη nas traduções comuns é interpretada absurdamente como "ira de Deus", atribuindo à Divindade um dos mais tristes vícios do homem atrasado. Ora, esse substantivo grego exprime literalment "uma agitação interior que expande a alma". Daí se originou o termo "orgasmo" . É exatamente a insatisfação que nos serve de acicate para a conquista das coisas que nos satisfaçam. Essa agitação provém do âmago do coração, ou seja, do Cristo Interno que lá reside, e que nos não deixa parar no marasmo da inação, mas impele-nos a buscar satisfações. O homem, enganado pelas aparências, procuraas nas riquezas, na fama, na glória, no intelectualismo, nos ritos religiosos, ou seja, em tudo o que pertence à personalidade. Por toda a parte o vazio, e, portanto, a dor. Até que, cansado de sofrer, desiludido das aparências, o homem crê, finalmente, nas palavras do Cristo Interno, e então se aproxima da Luz e conquista, enfim, a VIDA IMANENTE.

Precioso esse testemunho de João, pelo qual, mais uma vez, vemos confirmado - como muitas vezes ainda o veremos na continuação nosso ponto de vista a respeito do sentido oculto dos Evangelhos, e sobretudo o de João: a interpretação simbólica e mística que vimos fazendo, é, realmente, o ensinamento profundo de toda a vida do Mestre Inefável, que nos veio revelar o Caminho único para a Verdade e para a Vida (cfr. JO 14:6), isto é, para o Deus Interno, que nos "chama com gemidos inenarr áveis" (Rom. 8:26). Nestes últimos comentários seus, o evangelista é bastante explícito, usando, evidentemente, a linguagem de sua época, mas deixando entrever a realidade. Infelizmente poucos foram os que o tinham compreendido, e esses mesmos não o revelaram senão em meias-palavras. Agora, porém, cremos que já é tempo de "dizer de cima dos telhados, tudo o que nos foi revelado aos ouvidos" (MT 10:27 e LC 12:3).

E todos aqueles que tiverem alcançado certos graus de evolução, perceberão por si mesmos - pela ressonância que estes comentários despertarem em seus corações - que sem sombra de dúvida há um ensinamento mais profundo ("em Espírito de Verdade", JO 4:23-24), oculto sob o véu da letra e sob as aparências dos fatos e dos nomes, e que será percebido por "aqueles que tem olhos de ver, ouvidos de ouvir e coração para entender" (cfr. MC 7:17-18, JO 12:40, e IS 6:10).